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Parece evidente que adentramos em uma nova era histórica e que vivemos em um mundo que se enxerga e ao ser humano de uma perspectiva diferente de antes Talvez seja cedo

No documento As invenções da política (páginas 44-55)

para delinearmos a estrutura da episteme que se forma – em parte porque estamos em uma transição e a formas de percepção do mundo, na medida em que são moldadas pela experiência histórica, ainda não estão plenamente definidas. Mas não é cedo para constatarmos que uma antropologia naturalizante tornou-se a visão mais difundida do homem e que isso está em sintonia com tendências políticas autoritárias – em um contexto onde se acumulam ameaças importantes à humanidade.

Há uma avaliação generalizada, entre os analistas, de que as duas últimas décadas do século XX presenciaram a passagem para um novo período134. Os acontecimentos fundamentais sucedidos entre 1980 e 1991 mostraram tanto transformações profundas no capitalismo, ligadas à globalização neoliberal e a reconcentração dos poderes no mundo, quanto a dissolução do sistema de relações internacionais que prevaleceu no século XX. Apontam para relações políticas muito diferentes das existentes tanto em seu período catastrófico inicial, como em seu período de expansão econômica e estabilidade. A globalização neoliberal alimenta fortes tendências regressivas, com um grande aumento das desigualdades, a concentração das riquezas e o estabelecimento de um mundo unipolar, onde, depois do colapso da União Soviética, os Estados Unidos emerge como a única superpotência militar no planeta, o único império.

O deslocamento das referências que organizavam a percepção do mundo e a ação política é enorme. Ao final de um século marcado pelo protecionismo e pela estruturação de dinâmicas

134 Eric Hobsbawn, A era dos extremos; D. Harvey, Condição pós-moderna; P. Anderson, O fim da história; F.

Fukuyama, O fim da história e o último homem; F. Chesnais, A mundialização do capital; D. Bensaïd, La

nacionais das economias, voltamos a presenciar um novo predomínio do capital financeiro internacionalizad, com semelhanças com a economia liberal de antes da Primeira Guerra Mundial135. O capital escapa dos controles político-sociais que lhe haviam sido impostos e volta a ganhar ampla liberdade de circulação e investimento (mobilidade que, todavia, não atinge a força de trabalho, cuja liberdade de circulação é menor do que no século XIX). Este neoliberalismo vai ser caracterizado como “uma revolta contra o século XX”136. O capitalismo apresenta-se nos anos 90 como a única civilização e o neoliberalismo como pensamento único137. Entram em crise as diferentes visões de mundo e ideologias políticas que coexistiram, se confrontaram e se complementaram durante a expansão do capitalismo no pós-guerra. Deixam de existir simultaneamente, como tem destacado Samir Amin, as três grandes respostas ideológicas do pós- guerra, o comunismo burocrático produtivista, o “terceiro-mundismo” desenvolvimentista e as alternativas social-democratas138; subsiste apenas, muito descaracterizada, uma social-democracia aderida ao liberalismo. Reduz-se o espaço do universalismo da democracia liberal e das ilusões de progresso. A presença do capital organizando todas as esferas de atividade subverte as coordenadas que organizam o tempo e o espaço, a consciência e a ação política, voltando a produzir principalmente instabilidade, desorientação e vertigem.

A globalização coloca juntas sociedades que antes pareciam distantes, a compressão do tempo-espaço acelera a velocidade com que se processam as relações econômicas e sociais e a rede universal de mídia satura todas as populações de informações e imagens. Esta mídia globalizada integra simbolicamente o mundo, esgarçando as fronteiras culturais. Não há mais possibilidade de isolamento cultural e o fundamentalismo é muitas vezes a forma de resistência e reafirmação de identidades que estão sendo solapadas, originando idéias como “guerras de cultura” ou “choques de civilizações” ou, ainda, mais globalmente, a percepção (radicalizada pelo pós-modernismo) de que a cultura teria se transformado em uma instância decisiva da sociedade139.

A ideologia neoliberal constrói os valores hegemônicos e referencia as práticas dominantes, legitimando as desigualdades crescentes entre indivíduos e classes sociais, regiões e países e buscando retirar a possibilidade de tematizar o mercado. Ela desqualifica a perspectiva de outra sociedade como irrealista ou mesmo totalitária, sustentando a generalização de um ideal capitalista de felicidade, como se ele pudesse ser alcançado por qualquer indivíduo como

135 P. Hirst e G. Thompson, Globalização em questão. 136 P. N. Batista Jr., Mitos da globalização.

137 I. Ramonet, O pensamento único.

138 S. Amin, Capitalism in the age of globalization.

139 B. Barber, Jihad vs McWorld; S. Huntington, O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial; S.

consumidor no mercado – consumidores do século XXI e cidadãos do século XVIII, dirá Canclini140.

Refluem os dois grandes sujeitos em torno dos quais se organizou a política desde o século XIX: os movimentos que buscavam afirmar a nação e o movimento socialista que se identificava com a organização de classe dos trabalhadores assalariados. Nenhuma instituição política estabelecida parece ter condições de conter as forças estruturantes do mercado mundial e atenuar o peso do poder imperial dos Estados Unidos e das grandes corporações multinacionais que se movem na sua esteira. A crise do movimento socialista expressa não só a alteração da correlação de forças, mas é também, o resultado de uma crise dos projetos postos em prática no século XX e dos discursos constitutivos do próprio movimento. A recomposição social do proletariado contribui para desarticular sua antiga organização de classe. O sindicalismo perde destaque e tende a ser visto como mais um movimento social. Por toda parte encontram-se enormes dificuldades de aplicar políticas anticapitalistas.

O novo capitalismo solapa as condições de exercício da cidadania como participação em uma esfera pública vigorosa. Os indivíduos atomizados – incapazes de forjarem em seu cotidiano coletivos fortes o suficiente para direcionarem as instituições políticas centrais –, são transformados em simples consumidores, engrenagens dos mecanismos de poder estabelecidos, aprisionados por processos que escapam a qualquer controle democrático141. O reencantamento instrumental do mundo pela indústria cultura142 e a difusão do espetáculo amplificam esta crise do sujeito autônomo cantado pelo liberalismo. Reforça-se o que tem sido caracterizado como personalidade narcisista ou depressiva143.

Tudo isso ganhou uma tonalidade muito sombria no início do século XXI, com o governo Bush nos Estados Unidos144. Tomando como pretexto os atentados contra o World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, ele radicalizou a aposta de Washington na dominação mundial145, dando-lhe um caráter abertamente militar, associado a uma cruzada de raiz fundamentalista cristã contra o Islã, impondo um virtual estado de sitio mundial – e exemplificando da maneira mais clara o predomínio da concepção política schmittiana no mundo atual146. A guerra contra o

140 N. Canclini, La globalización imaginada.

141 C. Lasch, A rebelião das elites e a traição da democracia. 142 F. Louçã, A maldição de Midas.

143 C. Lasch, A cultura do narcisismo e O mínimo eu; E. Roudinesco, Por que a psicanálise? 144 S. Zizek, Bem-vindo ao deserto do real.

145 Peter Gowan, A roleta global; N. Chomsky, 11 de setembro.

146 Sobre o tema schmittiano do estado de exceção, ver G. Agamben, Stato de eccezione, e sobre o decisionismo e o

“terrorismo” apresenta-se como uma guerra sem limites, infinita147, que traz de volta as práticas totalitárias da era das catástrofes do século XX. Ela se desdobra, por outro lado, em guerras de expansão neocolonial148 –que parece reintroduzir contradições no plano das relações internacionais, ao reavivar disputas interimperialistas, e portanto eventualmente contribuir para limitar a prepotência imperial norte-americana.

Um fator suplementar intervém nesta conjuntura, uma nova onda de inovações científicas e tecnológicas. Ela está ligada às comunicações e principalmente à informática, de um lado, e às biotecnologias e principalmente à engenharia genética, de outro, fortalecendo as tendências à redefinir a condição humana e impulsionar uma naturalização das concepções antropológicas dominantes.

Ganham ímpeto e reconhecimento os esforços desenvolvidos, desde meados do século – inicialmente sem muito sucesso – para reinserirem o homem, seu comportamento e sua cultura no mesmo marco analítico que a natureza (teoria dos sistemas, estruturalismo, complexidade), movimentos recentemente potencializados pela informática e genética. Com o Projeto Genoma Humano, esta estaria decifrando o livro da vida, permitindo prevenir doenças, retardar o envelhecimento e moldar comportamentos149. O avanço do naturalismo é a combinação de práticas ideológica decorrente da nova correlação de forças político-social, com o que podemos considerar um efeito de ótica – porque ao mesmo tempo observamos por todas as partes sinais da dissolução do conceito de natureza como o “outro” do humano, pelo menos no tocante à vida150. Mas dos dois lados, busca-se reduzir o comportamento humano a determinações genéticas ou condicionamentos sistêmicos, segundo a metáfora de computadores ou robôs biológicos151.

As tentativas de articular a relação entre o homem e sua cultura e a natureza tinham se dado, no século XIX, sob a égide do darwinismo. Mas “todo o movimento crítico do início do século XX fez com que o pensamento darwinista sofresse um expurgo do seu lado cultural... Especialistas agrupados em disciplinas estudavam fenômenos naturais ou sociais a eles designados, sem se preocuparem em indagar sobre a interferência de fatores biológicos no domínio cultural e vice-versa”152. Este processo é agora revertido pela força de atração principalmente (mas não só) da genética.

147 Arundhati Roy, The algebra of infinite justice; Ana Esther Ceceña y Emir Sader (coord.), La guerra infinita:

hegemonia y terror mundial.

148 Tariq Ali, Bush na Babilônia e Confronto de fundamentalismos; Gilbert Achcar, The Clash of Barbarisms. 149 Francis Fukuyama, Nosso futuro pós-humano; Jeremy Rifkin, O século das biotecnologias.

150

Neil Evernden, The social creation of nature; Kate Soper, What is nature?; Ted Benton, Biology and social theory

in the environmental debate.

151 D. Dennett, A perigosa idéia de Darwin. 152 Scott William Hoefle, op. cit., p.128.

Mudanças substanciais se deram também em outros campos de saber, que podiam contar com o apoio de técnicas cada vez mais sofisticadas. Em 1959, os Leakey revolucionaram a paleontologia ao encontrarem, na garganta de Olduvai, restos de um hominídeo depois datado de 1,75 milhões de anos, o primeiro de inúmeros fósseis que comprovariam a visão darwinista do homem, em 1974, Johanson encontraria Lucy, uma australopitecus de 3,2 milhões de anos, e ao longo de quatro décadas, a nossa árvore evolutiva, abrangendo hoje cerca sete milhões de anos, passaria a ser integrada por dezenas de espécies, permitindo rastrear a história de nossos ancestrais. A biologia evolucionista se tornou incontestável como “a” ferramenta teórica para explicar a origem e evolução humana. A arqueologia, compartilhando técnicas semelhantes, reconstituiu a história da evolução social dos hominídeos a partir do momento em que passaram a produzir ferramentas e de nossa espécie, o homo sapiens, através dos vestígios de cultura simbólica deixados na medida em que desenvolvíamos nossa inventividade, abandonávamos as savanas africanas e colonizávamos o planeta. A integração da arqueologia com a ecologia ofereceu, por sua vez, explicações reveladoras sobre a trajetória dos humanos pelo planeta, e novas técnicas de investigação desvendavam aspectos significativos das primeiras civilizações.

Nos anos 60, alguns cientistas (Lorenz), escritores (Ardrey) e divulgadores científicos (Morris) começaram a propagandear a aplicação de idéias da zoologia (como a agressão e a territorialidade) à explicação do comportamento humano, sem qualquer reconhecimento real pela comunidade científica. Um salto qualitativo nesta direção foi dado por Edward O. Wilson, que publicou Sociobiologia: uma nova síntese, em 1975, e Richard Dawkins, que no ano seguinte publicou O gene egoísta. As premissas do darwinismo social voltavam à tona, apoiadas em sofisticados argumentos genéticos e matemáticos. A reação nas ciências sociais, de paleontólogos e biólogos evolucionistas (defensores da teoria da “equilíbrio pontuado”) foi muito forte, demonstrando a força do paradigma culturalista e da rejeição a toda visão reducionista do comportamento humano. As raízes desta corrente no mundo anglo-saxão eram, todavia, bastante fortes e desdobraram-se, nos anos 80, em argumentações mais sofisticadas, as da psicologia evolucionista e das ciências cognitivas, que gradativamente ganharam legitimidade institucional e penetraram no senso comum.

A ecologia também comparece ativamente nos debates de sociedade. Um pano de fundo duplo se impõe: a continuidade da expansão da população humana que duplicou no último meio século e não mostra sinais de estabilizar-se antes de atingir nove ou dez bilhões de pessoas, pressionando para ocupação de todos os ecossistemas e sua integração em um único ambiente global, tendo como ideal o modelo da sociedade de consumo dos países centrais; e a urbanização do planeta, sem que isso signifique a superação da pobreza. A competição por recursos se torna

mais acirrada e predatória, tendendo apenas a se agravar e na medida em que os problemas ambientais se agravam, mostram pontos cegos do industrialismo desenfreado. A idéia de Gaia, da biosfera do planeta como uma totalidade auto-regulável de infinita complexidade, perante a qual a humanidade atua como aprendiz de feiticeiro, é emblemática da nova visão da relação entre natureza e cultura que vai se estabelecendo153. A cada desastre ecológico fica evidente o equilíbrio cada vez mais delicado entre a sociedade humana e a natureza, reforçando a convicção de que temos que nos ver como parte do mundo natural e que, como primeira espécie a viver não confinada em ecossistema local, estamos criando as condições para uma catástrofe ecológica global e provavelmente para uma sexta extinção em massa na história do planeta154. A idéia de que existem recursos não renováveis passa a ter que fazer parte de qualquer perspectiva de futuro credível, introduzindo a questão da solidariedade para com as gerações futuras155.

De conjunto, nas últimas décadas acumularam-se nas ciências naturais um enorme volume de conhecimentos pertinentes ao problema do que é o homem, sua origem, trajetória, comportamento, mutabilidade, invariâncias, etc. Esta foi a área em que a ciência (embora também a pseudo-ciência) mais avançou. A pretensão paradigmática da biologia genética não é, pois, totalmente imerecida.

Isso aparece ligado a descoberta e adoção generalizada das tecnologias de informação (uma pré-condição para o desenvolvimento da engenharia genética e de modelos ecológicos complexos) e a mutação do processo social de produção de conhecimento científico e técnico, que passa a envolver milhares de universidades em todo o mundo, redes de centros de pesquisa e departamentos de pesquisa de mega-corporações. O que alguns chamam de sociedade da informação é um gigantesco mercado de conhecimentos, que nucleia fortes investimentos de capital nos ramos de ponta da economia e mudanças no processos de gestão e de trabalho.

O avanço do naturalismo, contraditoriamente, ganha inteligibilidade também pelas modificações mais amplas do contexto societário, em que o adensamento da teia de relações sistêmicas parece reduzir o espaço para a ação dos sujeitos políticos. Um liberalismo formal, que favorece o individualismo crescente, e a compressão do tempo-espaço, que reduz as distancias no planeta, nos cercam de um ambiente frenético, povoado por imagens cada vez mais sedutoras e efêmeras, aprofundando a sensação de vertigem e instabilidade, de aceleração das relações sociais156. A sociedade apresenta-se mais e mais como uma gigantesca rede157, extremamente

153 J. Lovelock, As eras de Gaia. 154 Niles Eldredge, Dominion.

155 H. Jonas, Il principio responsabilità: um’etica per la civilta tecnológica.

156 D. Harvey, Condição pós-moderna; P. Virilio, Velocidade e política; D. Kellner, A cultura da mídia e com S.

complexa, que parece escapar a qualquer possibilidade de intervenção consciente, reduzindo os indivíduos a impotência – simples terminais do sistema, peças de maquinaria ou membros de uma grande colméia. Sistemas sócio-econômico-culturais cada vez mais complexos parecem só poderem ser operados de forma maquínica158. A naturalização é, antes de tudo, objetivificação do homem, e pode significa que somos formigas, macacos ou robôs biológicos.

A dinâmica da sociedade burguesa foi marcada, desde o final do século XVIII, pela relação contraditória entre a expansão do espaço de autonomia e autodeterminação das atividades humanas, ancorado nas promessas da ciência, da indústria e do Iluminismo e efetivados na atividade política como exercício da cidadania e da liberdade contra as variadas formas de dominação, de uma parte, e a expansão da macroestrutura econômica representada pelo mercado capitalista, com seu caráter abstrato, regida por uma lógica estritamente instrumental e que procura se apropriar de todas as esferas de atividade humana, de outra. O resultado do choque entre as duas lógicas nunca pareceu, mesmo na “meia-noite do século XX”, pré-determinado.

No início do século XX começaram a se manifestar temores de que esta dinâmica, antes apenas assinalada por conceitos como os de alienação, fetichismo e reificação, pudesse se desequilibrar decisivamente para o lado do sistema. A jaula de ferro weberiana, a possibilidade da derrota de Eros para Freud, a iminência da catástrofe para Benjamin, a dialética do esclarecimento para Adorno e Horkheimer, as distopias de Zamiatin, Huxley e Orwell, as obras de Kafka ou Beckett, manifestavam a vivência da era das catástrofes – o temor de que as forças sistêmicas fossem capazes de domesticar os movimentos no sentido da autonomia humana, que alguma forma de totalitarismo pudesse prevalecer, suprimindo a política moderna. Com a discussão sobre o homem unidimensional em Marcuse e a sociedade do espetáculo em Debord o contexto do capitalismo da sociedade de consumo de massa é incorporado a estas perspectivas críticas.

Desde então, estas tendências se aprofundaram. Nos anos 80, deslanchou-se um movimento, reforçado em 1989-91, cujo sentido ainda não foi alterado – embora seu ímpeto tenha arrefecido depois de 1999 –, de modificação a favor do grande capital financeiro internacional, da correlação de forças entre mercados nacionais e mercado mundial, ou entre burguesias nacionais e burguesias imperialistas159. A capacidade dos governos nacionais, fora dos

157 M. Castells, A sociedade em rede.

158 J.Habermas, debateu com Luhmann, nos anos 70, se as sociedades complexas podiam formar uma identidade

racional de si mesmas, sem chegar a uma resposta taxativa: se isso fosse possível, teria que ter a forma de uma identidade não determinada previamente nos conteúdos e independente de organizações específicas. Para a

reconstrução do materialismo histórico, p.77-107. Uma versão bem diferente deste mesmo tema foi formulada por Peter Sloterdijk em No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica.

centros imperiais, desenvolverem políticas autônomas continua se reduzindo. A impotência das instituições e partidos políticos envolvidos no jogo eleitoral para contrariarem o mercado e adotarem políticas progressistas aprofunda a crise de legitimidade da democracia liberal.

Como reconhece Habermas, o mundo da vida é, cada vez mais, colonizado pelos subsistemas do dinheiro e do poder. Para os pós-modernos, o fim das grandes narrativas era, já nos anos 80, a confissão explícita da impossibilidade de desafiar o sistema. Quando, no início dos anos 90, ideólogos da globalização neoliberal anunciaram o fim da história, das utopias, do trabalho e do estado-nação, expressavam a vontade de que nenhuma alternativa fosse possível160. Por que a arte, as leis ou a política subsistiriam autônomas frente a uma economia capitalista que cada vez mais se apropria dos poderes faústicos da ciência? A capacidade do capital de transformar o poder em pura dominação, retirando-lhe qualquer dimensão política, não estaria crescendo rapidamente na sociedade globalizada do espetáculo? Será que as transformações em curso trazem o risco de suprimir a dinâmica que, desde a Revolução Francesa, possibilitou avanços na emancipação humana pela afirmação do espaço público frente à tendência de reforço do caráter sistêmico da reprodução social subsumida pelo mercado capitalista?

Várias análises tem retomado, nos últimos anos, diagnósticos na linha da tradição mais crítica do século XX: Rancière aponta para a raridade dos movimentos políticos na história humana161; Baumam vê no holocausto um desdobramento da modernidade, fundamentando suas conclusões nos experimentos de psicologia social conduzidos por Stanley Milgran162; Mairet vê no holocausto o indicador da falência da política moderna baseada na soberania163; Agambem diagnostica a transformação radical da política em biopolítica, apresentando o campo de concentração (ressuscitado pelos EUA em Guantanamo) como paradigma do moderno164.

As concepções antropológicas que ganharam ímpeto nas últimas duas décadas estão diretamente ligadas ao horizonte político colocado para nossa época. A naturalização do homem pode ser vista, de uma parte, como o espelho do aculturamento radical da natureza, dos ecossistemas e da vida por um poder fora de qualquer controle, e de outra, como a conseqüência da transformação do homem em materialidade objetiva (vida nua, dirá Agamben), a ser

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