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2 O CINEMA MODERNO DE ÉRIC ROHMER

2.2 Paris vista por

Em 1964 é possível decretar o “fim” de um sentido de coesão e preponderância da nouvelle vague como um “movimento” artístico14. O cinema francês tem uma grande queda de público, os realizadores se dispersam em seus caminhos e enfrentam dificuldades para viabilizar seus projetos pessoais.

13 “Fontes confidenciais alegam que devido à sua participação na Les Films du Losange, o que garante uma

porcentagem das vendas externas, Rohmer consolidou uma considerável pequena fortuna – um rumor que o cineasta sempre discreto com certeza não vai confirmar e nem desmentir” (SCHILLING, 2012, p. 47).

14 Em A Nouvelle vague e Godard, Michel Marie tenta definir um ano de “fim” da nouvelle vague. A conclusão é

No começo de 1965, é lançado o filme Paris vista por... (Paris vu par..., 1965), produção idealizada por Barbet Schroeder e capitaneada por Rohmer, que foi gravado durante todo o ano anterior. A ideia era produzir um longa-metragem barato, que pudesse ser lançado nos cinemas e alavancar lucros para a Les films du losange. Por isso é um filme de episódios, todos rodados em 16mm, com duração de cerca de 15 minutos e dirigidos por Claude Chabrol, Jean Douchet, Jean-Luc Godard, Jean-Daniel Pollet, Jean Rouch e o próprio Rohmer. Cada cineasta representou uma região de Paris, estabelecendo sua história em algum bairro específico e filmando com bastante liberdade.

Os episódios são:

1. Saint-Germain des prés. Jean Douchet mistura um início documental com uma trama de enganos amorosos baseada em um jogo de espelhamento entre dois personagens que se envolvem com a mesma mulher – um pouco como os roteiros de Rohmer. As semelhanças não são aleatórias, já que Douchet comprovou-se um dos maiores defensores de Rohmer e talvez o crítico mais próximo a ele no curso das décadas. O filme também é fotografado por Néstor Almendros, assim como o episódio de Rohmer. É um dos únicos filmes de Douchet, que dirigiu apenas curtas-metragens e se concentrou na sua carreira crítica, tendo escrito um dos textos mais influentes na referência ao próprio ofício – A Arte de amar15, como o crítico sendo aquele que ama o cinema incondicionalmente e escreve para dar prosseguimento a essa paixão.

2. Gare du Nord. Jean Rouch faz tour de force ficcional em plano sequência, um tanto à maneira do cinéma vérité. Um dos protagonistas, inclusive, é Barbet Schroeder. O filme é fundamental para a compreensão da filmografia de Rohmer e é analisado na sequência.

3. Rue Saint-Denis. Dirigido por Jean-Daniel Pollet, o menos notório do grupo, mas bastante admirado por Rohmer. Seu filme mostra a relação entre uma prostituta e um tímido e desajeitado cliente, que acaba sendo motivo de chacota para ela, invertendo a relação de poder inicialmente apresentada.

4. Place de l'Étoile. Rohmer dirige uma comédia de humor negro sobre as dificuldades de se cruzar a Place de l'Étoile, do Arco do Triunfo, com a localização espacial sendo minuciosamente construída e explicada para o espectador, de maneira didática. É o único

filme da filmografia de Rohmer a ter relação direta com a comédia. Importante marco é o fato de ser a primeira parceria com Néstor Almendros, que na época era um conhecido de Barbet Schroeder e pedia para frequentar sets de filmagem. Espanhol de nascimento, já tinha tido experiência com cinema no Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC), produzindo documentários pró-Fidel Castro antes de ser banido e se refugiar na França. Durante a gravação de Place de l’Étoile, Rohmer teve problemas com seu diretor de fotografia original, que acabou por abandonar o set. Como não havia ninguém mais capaz de cumprir a função, Almendros, que tirava fotos da equipe, se ofereceu, dizendo já ter experiência. Rohmer aceitou e os dois mantiveram uma longa parceria. Almendros se tornou um dos mais importantes cinematografistas a trabalhar com a nouvelle vague (assim como Henri Decae e Raoul Coutard), tendo fotografando diversos curtas e sete longas-metragens com Rohmer, além de outros nove com Truffaut. Ele se tornou muito respeitado fora da França também, trabalhando em Hollywood, e destacando-se por sua sensibilidade e rigor estético.

5. Montparnasse et Levallois. Godard é creditado como diretor do filme. Mas, provocativamente, ele chamou Albert Maysles para fotografar, conferindo outra marca autoral, já que Godard admirava o cinema direto americano (de filmes como Primárias, dirigido por Robert Drew e fotografo por Maysles, em 1960). Há câmera no ombro, seguindo os personagens de muito próximo, poucos cortes e decupagem no próprio movimento da câmera. O filme acaba expondo características de Godard, assim como de Maysles. A cartela inicial denuncia: "Un action film organisé par Jean-Luc Godard et filmé par Albert Maysles". “Action filme” também sendo outra provocação de Godard: o personagem, que é artista plástico, cita uma obra sua, um “ready made”, que fica pronta espontaneamente quando ele joga um conjunto de metais no chão e os solda. Brincadeira com as “action paintings” e com Marcel Duchamp, como se seu filme surgisse do encontro de seu roteiro com a atuação de Maysles, que “descobre” suas imagens na ação do momento. Também é uma história de desencontros amorosos, de uma mulher envolvida com dois homens diferentes, um mecânico e um artista. Quando ela resolve definir a situação com eles, envia uma carta para cada um, mas coloca nos envelopes trocados e corre para conversar com eles e tentar antecipar a confusão que viria a seguir.

6. La Muette. Chabrol em seu típico filme de suspense e crítica social: macabro, cínico e fatalista. Um casal de burgueses tem um filho surdo em casa. O marido trai a esposa com

a própria empregada doméstica. A esposa está alheia em suas futilidades e o filho isolado no meio de tudo. Só a morte leva a alguma mudança.

A produção do longa só foi possível porque Schroeder levantou recursos vendendo um quadro expressionista alemão que era de sua família. Com o dinheiro, decidiu fazer o filme com seis episódios, com os diretores sendo indicados por Rohmer. Rivette e Truffaut foram descartados, pelas desavenças na ocasião do afastamento de Rohmer da Cahiers du Cinéma. Outros que foram convidados não aceitaram, como Alexandre Astruc, que se via pessoalmente afastado do grupo mais jovem, e Jacques Rozier, diretor de Adieu Phillipine, admirado por seus colegas, mas que estava finalizando o curta Paparazzi (Rozier era famoso por demorar muitos meses finalizando seus filmes).

O filme permanece como um atestado do amadurecimento da nouvelle vague e, ao mesmo tempo, da sua dispersão. Talvez um atestado de óbito, mas que consolida os caminhos a serem seguidos, ao menos por Rohmer. A participação de Jean Rouch no projeto é emblemática, como será visto a seguir.

Se, como aponta Michel Marie, a nouvelle vague pode ser considerado uma “escola”, como exposto antes, o seu manifesto final é Paris vista por... Filme que, mesmo com a atrofia do movimento, se mostra jovem e energético, como os primeiros filmes da nouvelle vague. É urgente, amador, filmado nas ruas e com a câmera seguindo freneticamente seus personagens. O cinema a qualquer custo. Fazer cinema é única possibilidade, pois, para estes sujeitos, fazer cinema é também viver. E Gare du Nord, de Jean Rouch, é o grande exemplar desse cinema jovial e vigoroso da nouvelle vague, feito por um realizador considerado de uma geração anterior, quando alguns dos “jovens turcos” como Godard e Truffaut já estão “maduros” e apenas se consolidando como verdadeiros auteurs.

No documento Contos morais e o cinema de Éric Rohmer (páginas 50-53)