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3 INFORMALIDADE, INCLUSÃO E EMPODERAMENTO: METODOLOGIAS DE

3.2 Do encontro restaurativo: quem participa e quais as metodologias adotadas?

3.2.1 As partes do processo restaurativo

A compreensão de que o crime é uma violação de relacionamentos implica em repensar o papel das partes na decisão da possível solução para os problemas decorrentes do conflito e, também, a repensar a relação entre reação ao crime e pena. Quando se trabalha com a ideia de punição, é o autor do crime que está no centro do processo judicial penal. Ao colocar em cena a figura da vítima, a justiça restaurativa desqualifica a ideia de pena, a ideia da imposição de um sofrimento como a moeda que pode equilibrar a balança.

Na visão restaurativa, o elemento que pode equilibrar o descompasso gerado pelo crime é “a conjugação do reconhecimento dos danos sofridos pela vítima e suas necessidades ao esforço ativo para estimular o ofensor a assumir a responsabilidade, corrigir os males e tratar as causas daquele comportamento” (Zehr, 2012, p. 72). Aliás, esse novo elemento é reconhecido pelas próprias vítimas que apontam (1) a necessidade de informação direta sobre causas e circunstâncias da agressão e sobre o contexto do agressor, (2) a necessidade de comunicar-se com o agressor para conscientizá-lo das consequências de seus atos, como expectativas primeiras, antes mesmo da compensação financeira pelos danos (Aerstsen; Peters, 2006a, p. 13).

Essa quebra do paradigma punitivo inicia-se com o chamamento das partes, direta e indiretamente afetadas, a participarem ativamente da recontextualização construtiva do conflito, em um processo colaborativo. Aquelas diretamente afetadas correspondem, na categoria formulada por McCold e Wachtel (2003), às chamadas partes interessadas principais, e não se restringem à vítima e ao ofensor, mas também àqueles suportes que fazem parte da rede primária de apoio: família, amigos, colegas. De forma indireta, o conflito pode gerar danos a membros da comunidade, a organizações e instituições da comunidade, além de autoridades, cujas necessidades são coletivas. Esse grupo é denominado por McCold e Wachtel (2003) de

partes interessadas secundárias, e fazem parte da rede secundária de apoio às partes principais.

Segundo McCold e Wachtel (2003), como o dano às partes interessadas principais foi direto e suas necessidades são específicas, para se alcançar a reparação máxima, a participação delas deve ser ativa. Se as vítimas precisam readquirir o sentimento de poder pessoal para, por meio do fortalecimento, superarem a dor, os ofensores precisam ser fortalecidos para assumirem responsabilidade por seu comportamento e recuperarem a confiança da comunidade.

Além disso, considerando que o processo de comunicação propiciado pelo encontro restaurativo pode desvelar “interesses e necessidades ocultas, bem como as bases em que se enraízam os problemas vividos”, numa lógica espiral de aprofundamento, mostra-se “potente o esforço de ressignificação dos conflitos, através da conexão e engajamento de terceiros – os suportes dos envolvidos na situação de conflito” (Melo; Ednir e Yazbek, 2008, p. 61). Assim, a rede primária de apoio, enquanto comunidade de assistência, deve participar do processo restaurativo para auxiliar na reintegração do ofensor e da vítima (McCold e Wachtel, 2003). Já a rede secundária de apoio pode apoiar e facilitar o processo restaurativo, sem, no entanto, interferir na decisão das partes principais.

É verdade que uma das preocupações principais da justiça restaurativa está na figura da vítima, rompendo com sua posição de expectadora do sistema criminal para colocá- la como protagonista do processo restaurativo. No entanto, é preciso ir além, para se preocupar também com as necessidades do ofensor. A justiça restaurativa, assim como o sistema de justiça criminal, tem como foco a responsabilização daquele que praticou um dano a outrem. No entanto, para não cair na armadilha de se transformar a alternativa à punição em punição alternativa, não basta que a resposta restaurativa advenha de um processo diferenciado, embasado em técnicas, valores e princípios restaurativos. É preciso ir além dessa resposta e identificar as necessidades do ofensor.

O processo restaurativo, ao buscar superar estereótipos, trabalha na perspectiva de que, aquele que ofendeu também tem necessidades que devem ser observadas e, sempre que possível, atendidas. Como reconhece Howard Zehr (2006, p. 413), “nos dedicamos a pensar a justiça restaurativa do ponto de vista das vítimas e da comunidade, mas fizemos muito pouco em termos de articulá-la da perspectiva do infrator ou prisioneiro”. Assim, apesar de na teoria ser mencionada a preocupação com as necessidades do ofensor, na prática, aparentemente, o avanço não correspondeu às expectativas.

Em outras palavras, entende-se que, sempre que possível, a rede secundária de apoio pode atuar ajudando o ofensor na superação de problemas revelados pelo conflito. Compreende-se que essa preocupação com necessidades do ofensor reveladas pelo encontro é interessante sob o ponto de vista social. Entretanto, não se deve perder de vista que a justiça restaurativa, enquanto modelo de resolução de crimes, deve ter como foco a preocupação com os problemas decorrentes do conflito. Esse posicionamento reflete a visão de uma justiça restaurativa como modelo alternativo de resolução de conflitos penais e não como mero instrumento de política social a ser incorporado pelo sistema penal tradicional.

Ao envolver membros da comunidade nos processos de justiça restaurativa, não apenas se reconhece a capacidade da comunidade de assumir seus próprios conflitos, como se espera que ela se fortaleça, tornando-se mais capaz de resolver seus conflitos e de exercer o controle sobre crimes (Rosenblatt, 2015). Acredita-se que, além de sofrer o impacto do crime, as comunidades possuem responsabilidades em relação às vítimas, aos ofensores e a si mesmas, de maneira que atribuir papel relevante aos seus membros na tomada de decisão sobre o caso concreto tenderá a fortalece-la ao oportunizar que suas necessidades, enquanto vítima secundária, possam ser debatidas; ao oportunizar a construção de um senso comunitário e de responsabilidade mútua e estimular a assunção de obrigações pela coletividade que contribuam ao convívio social (Zehr, 2012, p. 44-45).

Para justificar o empoderamento da comunidade, além da compreensão de que ela também é afetada pelo crime, está a ideia de que os leigos exercem melhor a função de conduzir o processo decisório do que os profissionais do direito. Em muitos projetos de justiça restaurativa, a tese defendida por Nils Christie (1992) de que a especialização, relacionada à profissionalização, é o grande inimigo, influencia, segundo Fernanda Rosenblatt (2015, p. 44), a ideia de que a comunidade convidada a participar dos encontros deve ser leiga. Como enfatiza a autora, a comunidade é chamada a participar não na qualidade de expertises ou de advogados, mas sim porque são os donos do conflito e com mais condições de decidir “como aqueles diretamente afetados no conflito devem ser ajudados ou responsabilizados” (Rosenblatt, 2015, p. 44).

Às pessoas comuns da comunidade abre-se a oportunidade de atuarem como mediadores, ajudando e apoiando os ofensores na reparação e arrependimento (Johnstone, 2011, p. 12). No entanto, além da condução do encontro restaurativo, a literatura restaurativa atribui outra função aos membros da comunidade: a de apoio ou de suporte às vítimas e a ofensores. A chamada comunidade “de apoio” ou “de suporte” (comunity of care) são aquelas pessoas que, de alguma forma, em razão da proximidade com o ofensor ou com a vítima, também sofrem os impactos do delito, sejam aqueles mais evidentes ou aqueles decorrente das repercussões que o crime ocasiona na vida dos envolvidos.

Especificamente quanto ao ofensor, os adeptos da teoria da “vergonha

reintegradora” (reintegrative shaming), de John Braithwaite, entendem que a participação de

sua “comunidade de apoio” (community of care) contribui na responsabilização do ofensor sem estigmatizá-lo, ao expressar a desaprovação seguida por gestos de aceitação na comunidade. Influenciado pelos programas de justiça restaurativa desenvolvidos na Austrália, Braithwaite

estabeleceu uma ligação entre a vergonha reintegradora e o controle do crime, de maneira que, para o autor, ao utilizar a vergonha reintegradora a justiça restaurativa teria um potencial maior de prevenção de delitos. “A ideia da vergonha reintegradora é que a desaprovação é comunicada dentro de um processo contínuo de respeito ao ofensor”70 (Braithwaite, 2004, p. 48).

Para mostrar o respeito, é essencial ser justo, saber ouvir e abster-se de preconceitos em razão de idade, sexo ou raça. Mas como garantir que os ofensores estarão expostos a uma vergonha reintegradora que diverge das sanções vergonhosas? Um caminho, segundo Gerry Johnstone (2011, p. 100), é utilizar justamente a ‘comunidade de apoio’, porque, ao conseguir enxergar tanto as coisas más como as boas dos infratores, ela consegue ser rígida com o malfeito sem esquecer que está lidando com uma pessoa por quem querem bem. Na teoria, a vergonha reintegradora significa desaprovar o ato sem esquecer do respeito ao ofensor: “a vergonha deve vir acompanhada do perdão”71 (Johnstone, 2011, p. 100).

Às vítimas também é conferida a oportunidade de trazer seus apoiadores. Ao ir além da pergunta do “porque você fez isso” para preocupar-se com a resposta ao questionamento sobre “o que há para ser feito” (Braithwaite; Roche, 2001, p. 64)72, a responsabilização ativa e passiva pretendida pela justiça restaurativa dependerá do bom envolvimento das vítimas e, se elas se sentirem mais confortáveis e seguras na presença de seus apoiadores, o espaço para eles deve ser assegurado nos encontros restaurativos.

Dessa forma, restaurativistas defendem o estímulo à participação de membros da comunidade, seja na condição de voluntários na facilitação dos encontros restaurativos, seja, por terem sido afetados pelo crime, em razão de seu envolvimento com o ofensor ou com a vítima, na qualidade de ‘comunidade de apoio’. Empoderamento que é difundido como valor central da justiça restaurativa justamente porque é por meio dele que se encoraja a comunidade a exercer responsabilidade ativa, isto é, a ter responsabilidade quando algo precisa ser feito para lidar com um problema ou para ‘endireitar’ as coisas73 (Braithwaite; Roche, 2001, p. 64), aproximando a comunidade do sistema de justiça penal em direção a um propósito maior: o de alterar a relação entre o sistema de justiça e a comunidade (Rosenblatt, 2015, p. 43). A

70 No original: “The idea of reintegrative shaming is that disapproval is communicated within a continuum of

respect for the ofender”.

71 No original: “Shaming must be followed by forgiveness”.

72 No original: “The central question is: ‘Why did you do it?’ (...) the central question here [active responsibility]

is: ‘what is to be doen’”.

comunidade deixa de ser mera destinatária dos serviços do Estado para exercer papel decisivo na prestação de serviços relacionados com crimes.