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3. DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A PARTICIPAÇÃO IMPORTA?

3.7 Participação, relações de poder e democracia

O projeto geral da democracia deliberativa poderia ser resumido como um esforço de recuperação do ideário participativo. Desde logo é preciso dizer que não se trata de um ideário participativo do passado, como se a participação tivesse ocupado um lugar de destaque em outrora, a ser recuperado, nos diais atuais, pela democracia contemporânea. Na verdade, a participação consiste antes numa certa presença, ainda que mais ou menos residual, daquilo que é originário, ou melhor, daquilo que é parte constituinte da natureza política democrática: acesso e condições de disputar influência política, sobretudo em relação à possibilidade de incorporação dos diferentes interesses e perspectivas, para a legitimidade democrática do processo.

Diante deste contexto, é preciso deixar claro que a centralidade da participação na política não está dissociada com uma maior ou menor aderência ideológica da sociedade política (governo e partidos) em relação à legitimidade participativa da sociedade civil. Como a democracia deliberativa trata de instituições participativas, é necessário que haja nexos da participação da sociedade civil com o sistema

75 representativo, ou seja, tratar a participação no âmbito da democracia deliberativa, em alguma medida, implica lidar com o ideário partidário dentro do processo inscrito em lógicas, concepções ideológicas e estratégias que se dão no Estado, nas relações partidários-governamentais de gestão das políticas públicas. Há, portanto, uma presença partidária associada às concepções dos ideários participativos. Há, portanto, relações entre a esfera deliberativa e a representativa no processo de legitimidade das políticas públicas. Há, por fim, e ao cabo, em cada desenho institucional, características que remetem a dimensão partidária, a dimensão dos interesses de governo, entre outros aspectos, que se imbricam na dinâmica do jogo político e na gestão das políticas públicas. A visão normativa do estatuto da participação política da sociedade civil dissociada destas dimensões parece uma visão normativa pouco aderente à realidade social de funcionamento das instituições participativas.

A perspectiva deliberacionista da participação não pode ser entendida de forma desvinculada da competição político-partidária no jogo político de ascensão ao poder de governo no Estado. A participação não é aqui tratada como uma forma superior de gestão pública ou a-histórica, mas sim como um ideário em disputa político-partidária em função do governo. A força eleitoral do ideário participativo explica em razoável medida a ampliação das instituições participativas com a sociedade civil. Isto porque a participação política da sociedade civil não é apenas instrumento técnico de gestão de políticas públicas. Há sempre uma estratégia de articulação político-partidária e de diretrizes de governos que, ora avançam e ora recuam, em instituições participativas, mas que subjazem as lógicas dos desenhos institucionais, de forma a torná-los mais ou menos efetivos. Então, nesta perspectiva, a mobilização social em prol da participação política da sociedade civil é parte integrante e componente central de uma estratégia político-partidária de associação do ideário participativo como retorno eleitoral no sistema político representativo.

Se for cabível falar em participação nestes termos, não se trata então de retomar, apenas, uma referência normativa qualquer acerca da participação em detrimento de outra, mas sim, ao contrário, de reafirmar a sua natureza de possibilidade de mudança mais moderada, ainda que com aspectos significativos, que influenciam as relações de poder, sobretudo nas políticas públicas. Não se trata de resistência ou fortalecimento da participação política da sociedade civil simplesmente adicionada de forma técnica às políticas públicas, mas trata-se de incorporar a discussão da participação na chave

76 analítica das relações de poder que conformam e prevalecem no sistema político pela disputa entre estratégias eleitorais de acesso ao governo.

Com isso, podemos advertir com mais segurança sobre a importância de se pensar a concepção do ―poder‖ como uma característica-chave que compõe e forja o ideário participativo. Para alguns autores, a crítica da democracia deliberativa é solidária da aposta na mudança das relações de poder, origem do ideário participativo, entre sociedade civil e Estado (YOUNG, 2001; GUTMANN; THOMPSON, 2004). Mas se é possível propor uma razoável unidade entre vertentes da democracia deliberativa, o que está em questão é, no sentido geral, pensar as transformações das relações de poder em curso, diante das experiências participativas de relação entre Estado e sociedade.

Uma primeira compreensão tanto de questões específicas quanto no sentido geral da noção de poder toma como ponto de apoio as contribuições de Paul-Michel Foucault ou simplesmente Foucault. Interessa aqui tão somente destacar alguns breves pontos, mas que são essenciais ao olhar de Foucault sobre as relações de poder.

Ainda no tocante à análise foucaultiana de poder, embora se saliente sua concepção original, não há uma obra especificamente que estude a questão em detalhe e de forma sistemática com a amplitude de seu pensamento. A escolha por Foucault tem suas razões, destaco apenas duas.

A primeira escolha por Foucault é porque suas idéias e conceitos continuam ressoando como fundamentais a pesquisa social; há grande originalidade em suas reflexões. A segunda razão é porque Foucault, fora ser um expoente de trabalhos seminais, também representa de forma clara, expressiva e profunda, o poder como prática social, historicamente construída nas relações do cotidiano, em várias situações da vida. Destaco, então, estas suas palavras, que parecem dar uma espécie de síntese de seu pensamento sobre o poder:

Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ‗apropriação‘, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que se seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou uma conquista que se apodera de um

77 domínio. Temos, em suma, de admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é ‗privilégio‘ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados (FOUCAULT, 1975, p. 29).

Para Foucault, dentre outros aspectos, o poder interessa na medida em que seja entendido em sua positividade, isto é, como propriedade de produzir algo; o poder como relacionamento de forças em que se exerce e dispõe em rede. Esse poder, diz Foucault, não se opera sem pontos de resistência, isto é, "a resistência ao poder não é a antítese do poder, não é o outro do poder, mas é o outro numa relação de poder - e não de uma relação de poder" (VEIGA-NETO, p. 151-152, 2003).

Com Foucault a concepção de poder é tratada enquanto uma prática social, ou melhor, como um exercício de um conjunto de posições estratégicas e disposições de relações entre sujeitos que interagem entre si.

É preciso, nesta perspectiva de relação de poder, afastar-se de certa concepção de participação enquanto um valor em si. Isto é, como se fosse razoável esperar, à priori, que os efeitos e alcances da participação se correlacionem, de forma virtuosa e positiva, na gestão das políticas públicas, imunes à crítica.