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Nas experiências narradas pelo pracinha Schnaiderman, um episódio específico é sobre particularidades em que o Exército Brasileiro tinha se comparado ao norte-americano, algo que sempre esteve presente na sociedade: o preconceito racial. Mas em se tratando sobre os Estados Unidos era algo mais discrepante, pois existiam companhias16 militares formadas somente por negros e comandadas por brancos.

No entanto, este aspecto simpático não é o que predomina em minha lembrança. Pois não há como esquecer os outros norte-americanos, a tropa de homens negros, isto é, a 92ª Divisão norte-americana. Muitos deles em nosso país seriam considerados brancos, mas os rigores oficiais ianques frisaram a sua descendência africana.

Os outros, os brancos, falavam deles com desprezo e diziam que era inevitável sofrerem um fracasso. Isto sempre me deixou perplexo. Já no navio-transporte, o General Man, a separação entre negros e brancos era chocante (SCHNAIDERMAN, 2015, p. 144).

A obra de Waack (2015) cita sobre essa 92ª Divisão norte-americana, nela comenta sobre a situação e o quê os nazistas faziam a respeito dessa parcela do efetivo militar dos brasileiros. O preconceito racial havia também pelo inimigo, percebe-se essa discriminação

16 Neste caso específico, faz referência a divisão militar, ou seja, uma subunidade maior que o pelotão e menor que um batalhão.

altamente exacerbado com os negros. A vizualização de um negro por um nazista era algo a ser catalogado. O autor apresenta como essas atitudes ocorriam nesse período:

.

Quando um negro era avistado, mesmo por binóculo, o fato merecia até mesmo ser registrado em comunicado. Na raiz das frequentes confusões (por parte dos alemães) entre brasileiros e “negros” está um comunicado alemão de 10 de outubro, no qual a FEB era tida como subordinada à 92ª Divisão de Infantaria americana. Essa unidade era formada exclusivamente por soldados negros dirigidos por oficiais brancos, fato que impressionou muitíssimo os brasileiros (WAACK, 2015, p. 52)

Em outra parte do livro comenta o desrespeito até com os pracinhas também na questão do transporte que os norte-americanos tinham.

Na mesma época, solicitado a mencionar que unidades (num total de dois corpos com cinco divisões) poderiam ser retiradas do seu teatro de operações e enviadas para a previsível ocupação da Áustria, seu QG vetou a FEB e a 92ª Divisão americana (de negros). Ambas poderiam ser transportadas rapidamente; seu valor ofensivo não era considerado “very high” […] (WAACK, 2015, p. 113).

Há o relato com o testemunho de um outro militar dos Estados Unidos que reconhece tal atitude, considerada um erro, porém, segundo ele não via perspectiva de mudança. Diz Schnaiderman:

Conversei sobre o assunto da discriminação com os americanos brancos. Um deles me disse, então: “Nós sabemos que vocês é que estão certos. Em seu exército há brancos, mulatos, negros, amarelos. Mas para nós é impossível." Deixemos, porém, de lado estas diferenças na apreensão daquele momento histórico. Ele realmente deve ser abordado com a soma das impressões e comentários mais diversos (SCHNAIDERMAN, 2015, p. 145).

Diante do que foi observado nesse episódio, pode-se perceber e entender melhor sobre o quanto essa questão é delicada; não que no Brasil não houvesse casos semelhantes, mas se tratando do exército norte-americano, o desrespeito com o semelhante, os casos de preconceitos raciais eram mais recorrentes na parte do exército aliado.

6 AS VIVÊNCIAS EM COMUM

Venho do além desse monte Que ainda azula no horizonte

Spartaco Rossi; Guilherme de Almeida

Os obstáculos que os pracinhas encontraram foram muitos, sem contar com o deslocamento, pois grande parte deles era de origem humilde, trabalhadores do campo, ou de cidades do interior. Pensar nesses jovens com um olhar contemporâneo traz um grande desafio.

Durante a leitura de “Vozes da Guerra” e “Caderno Italiano" fica evidente como cada jovem enfrentou essa nova realidade, sendo esse homem ou mulher, percebe-se um outro modo de pensar, os depoimentos retratam modos distintos de enfrentar as dificuldades.

Outra questão que vale citar é a solidariedade que os soldados brasileiros faziam aos italianos, as principais vítimas diante daquela situação, reféns de uma ideologia. O escritor Schnaiderman exemplifica bem sobre isso:

Uma das etapas mais importantes da identificação do soldado da FEB com a sua função bélica foi o contato com a população civil na hora do rancho.

O caldeirão fumegante lá estava à sombra de uma árvore e, diante dele, uma fila de praças de marmita na mão. Do outro lado, junto a outras árvores, um magote de população miserável, inclusive crianças maltrapilhas, os olhos acesos dirigidos para o caldeirão.

Eu vi, então, soldados encherem a marmita e irem diretamente entregá-la a algum dos populares que assistiam à cena. Realmente, nada nos enquadrou melhor em nossa condição de combatentes em meio à população reduzida à miséria mais extrema (SCHNAIDERMAN, 2015, p. 158-159).

Já no livro de Fröhlich (Figura 12), nota-se também a presença de alguns episódios de pracinhas que tiveram a mesma iniciativa em ajudar o próximo, sem saber quem era, trazendo um pouco de esperança àquela gente que vivenciava tanta adversidade. O livro apresenta o relato de João Gonzalez e trata sobre uma situação bem sofrida.

[João Gonzalez] Tudo que eu podia dar para os italianos, eu dava. Fazia surdina, mas dava. Disso eu não tenho remorso. Juntava as latas de comida que não consumia e, na primeira oportunidade, dava tudo aos italianos. Certo dia, chegou uma senhora com uma criança de uns sete anos. Passei para ela algumas latas de comida. Foi triste ver

aquilo: ela abriu uma lata e engoliu tudo de uma vez só. A menina chorando, agarrada à saia da mãe. Só depois de comer umas três latas de comida é que ela deu de comer para a criança. Coitada! Devia fazer muito tempo que não comia. Eram cenas que jamais gostaria que acontecessem aqui. Isso é lamentável! Guerra não é brincadeira!

(FRÖHLICH,2015, p. 176).

Figura 12: População faz fila nas proximidades de um acantonamento da FEB.

Fonte: Fröhlich (2015, p. 168).

Também vale mencionar os horrores que ambos testemunharam, a descrição de serem vítimas no combate. Os detalhes tanto em Schnaiderman (2015) ou em Fröhlich (2015) transmitem sobre como é estar presente numa situação em que não se sabe o que fazer. No primeiro caso no “Caderno Italiano” (2015) relata-se o que poderia acontecer numa situação de combate:

Impressionante também é seu Rubens, padioleiro e, além disso, esclarecedor, isto é, explorador prévio do caminho a ser percorrido pela tropa, e que relata, após alguma vacilação, como ele perdeu a perna em Montese. "A minha perninha!", chega a exclamar depois que a emoção lhe destrava a língua. Isto nos recorda o sacrifício de tantos dos nossos, pois foi muito frequente na FEB. Além das explosões de minas, houve os casos de congelamento durante o quarto de ronda no foxhole (toca de raposa), isto é, cova aberta para ficar observando o inimigo (SCHNAIDERMAN, 2015, p. 63).

Das diversas situações presentes em “Vozes da Guerra” (2015) a respeito de ferimentos em combate, tratando especificamente sobre os que foram feitos por minas terrestres, uma

armadilha "invisível", a qual quando menos se esperasse acarretava vítimas, em alguns casos poderia ser fatal e aumentando o número de baixas nos efetivos ainda mais; são marcas nas memórias dos veteranos. Comenta Geraldo Sanfelice como é presenciar a ação de uma mina:

[Geraldo Sanfelice] Estávamos seguindo por uma lavoura de trigo que vinha até a cintura. Havia uma estrada de chão batido para atravessar. Todos estavam descontraídos, porque a imagem era muito bonita, em um dia ensolarado. O tenente disse que a ordem era avançar. No que pisei na estrada, só ouvi um forte zum! e senti uma ardência na perna. Era uma mina antipessoal que havia sido deixada pelos alemães e explodiu. [..] “Parte do joelho havia sido arrancada, deixando ossos e nervos expostos. Por sorte, a granada que explodiu pegou só na perna, e não morri (FRÖHLICH,2015, p. 159).

Nos dois casos,é possível perceber que uma fatalidade pode acontecer quando menos se espera, em se tratando de uma armadilha. Uma distração rápida, um momento de guarda-baixa, e as cicatrizes são carregadas pelo resto da vida; esses são os enfrentamentos de um conflito bélico que não só causaram vítimas militares, como também civis.

A questão de se trabalhar a memória, estando presente em livros autobiográficos e testemunhos, é que ela se torna uma ponte para o passado, apresentando para as gerações atuais como as pessoas agiram e se comportaram diante de uma situação. Nos exemplos de Fröhlich (2015) e Schnaiderman (2015), há a possibilidade de o leitor conhecer mais sobre um momento histórico e perceber como é a realidade de uma guerra.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Venho do verde mais belo Do mais dourado amarelo Do azul mais cheio de luz Cheio de estrelas prateadas Que se ajoelham deslumbradas Fazendo o sinal da cruz

Spartaco Rossi; Guilherme de Almeida

O estudo aqui abordado teve o intuito de trabalhar melhor com os testemunhos e relatos daqueles que fizeram a história, mudaram o rumo da vida de pessoas que foram castigadas por uma ideologia. Com o tempo essas pessoas foram silenciadas e esquecidas. Infelizmente essa ingratidão assola a sociedade, porém algo interessante é que os “Liberatoris” são até hoje lembrados pelos italianos. Durante os capítulos buscou-se apresentar os fatos indo de uma perspectiva maior chegando de fato ao objeto estudado - as memórias, relatos e testemunhos.

As obras estudadas tiveram o intuito de complementar a pesquisa utilizando o método bibliográfico, dado que a finalidade do trabalho é descritiva, com a busca em aprofundar o estudo sobre a temática, apresentando materiais nas seguintes áreas: História Geral, História do Brasil, Força Expedicionária Brasileira e a Literatura Memorialista. Os principais autores que foram trabalhados: Sírio Fröhlich (2015) e Boris Schnaiderman (2015), Alba Olmi (2006) e Márcio Seligmann-Silva (2003) entre outros que auxiliaram a completar a compreensão melhor sobre o assunto.

Com este trabalho também se objetivou, através das narrativas autobiográficas e relatos, conhecer as experiências de ex-combatentes brasileiros na 2ª Guerra Mundial, inseridos no estudo da Literatura Memorialista. Analisou-se a temática dos testemunhos dentro da Literatura Memorialista, com a apresentação do contexto histórico mundial e brasileiro da época. Isto foi realizado através dos testemunhos e uma narrativa autobiográfica dos veteranos brasileiros participantes na 2ª Guerra Mundial.

Durante os seis capítulos apresentados buscou-se estudar sobre a temática de uma forma que abrangesse o maior número de aspectos possíveis. No primeiro capítulo, apresentou-se a

introdução do assunto que iria ser trabalhado, e o que motivou a pesquisa com o estudo de uma obra literária vista num componente curricular em 2021.

No capítulo 2 o contexto histórico foi o carro-chefe, apresentando a ideia de que a eclosão da guerra se deveu a uma sequência de fatores, partindo do que acontecia no mundo, especificamente na Europa, e se espalhando pelo mundo. Até chegar de fato ao Brasil, apresentando um reflexo de como o Brasil era governado na época, com forte apelo populacional para a entrada dos brasileiros no conflito. Chegando na criação da Força Expedicionária Brasileira, buscou-se tratar cada ponto: início da convocação; o Brasil no conflito; final da operação militar com recebimento da mensagem do encerramento da guerra e, por fim, o retorno para casa, tendo início o silenciamento dos pracinhas e o sentimento de ingratidão que isso foi gerando.

No terceiro capítulo, houve a abordagem sobre a Literatura Memorialista, tratando como esse gênero anda junto com a História, não havendo a possibilidade de separá-las. Como já citado, essa ideia se configura através da leitura das obras em que se vê os relatos dos

“febianos”, com o resgate do passado, e a tentativa de trazer a história para a atualidade.

O capítulo 4, sendo um dos livros que estão presentes no trabalho, trata sobre os relatos reunidos por Sírio Fröhlich (2015). Com o primeiro livro as abordagens são mais específicas:

o desenvolvimento de “ Vozes da Guerra” apresenta como foi iniciada a escrita do livro, passando pelos testemunhos, chegada na Itália em que os ex-combatentes começaram a entender o que estava acontecendo e, por último, o destaque às profissionais de saúde, as enfermeiras brasileiras que deram exemplos de profissionalismo. Cabendo comentar que no final, em anexo, a entrevista com o autor ajudou a compreender melhor sobre a constituição do livro, apresentando a quantidade e como foi feita às entrevistas com os veteranos. Fröhlich explanou as suas experiências, o contato com os pracinhas e os civis italianos, o empenho no trabalho em busca trazer as “vozes” dos veteranos e apresentar outra perspectiva da História.

O capítulo 5 com o trabalho das memórias de Boris Schnaiderman (2015). A segunda obra, "Caderno Italiano” (2015), apresenta uma outra abordagem se comparada com a primeira.

O narrador é também escritor, alguém que testemunhou in loco os horrores da guerra.

Schnaiderman, já idoso, é um autor que apresenta o jovem Bóris. Algo interessante a se notar é que parece se tratar de duas pessoas diferentes, havendo um convite para percorrer, através das memórias, o que esse vivenciara em sua época de juventude. No entanto, considera-se que o

autor, na condição de homem das Letras, e considerando o distanciamento temporal, trabalhou esteticamente suas memórias.

No capítulo 6, o trabalho aqui foi apresentar o que as duas obras, ainda que com olhares diferentes por vezes, puderam compartilhar em comum. De um lado, a primeira obra é constituída de relatos testemunhais, já a segunda é composta propriamente da vivência em combate resgatada pelas lembranças do autor. Mesmo sendo relatos diferentes, as experiências convergem em traumas e resiliência.

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