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Partilha do Sensível Polícia, Política e Estética

A Política, conforme Rancière a entende, aparece então como uma suspensão ou

rutura com a ordem policial, que, independentemente de se manifestar através de instituições governamentais, sistemas económicos ou da organização funcional de uma cidade, cria inevitavelmente estruturas que diferenciam e hierarquizam os indivíduos, estabelece uma desigualdade na forma como somos vistos e que tipo de capacidades ou qualidades nos correspondem — normalmente organizadas segundo regimes de identidade dominantes, como o etário, o de género ou o racial. A política corresponde a uma realidade que falta demonstrar, revelar, por oposição à realidade dominante do consenso policial, que estabelece os limites da nossa compreensão e apreensão da realidade dentro de estruturas classistas, uma realidade onde não operam os regimes de identidade conforme os conhecemos e onde estão abertas todas as possibilidades do comum e de liberdade individual. A racionalidade política reside então na confirmação de uma pressuposição, a da igualdade de todos os sujeitos e da inexistência de qualquer critério irrefutável para a governação vertical de um ser sobre outro231.

Na medida em que é uma supressão ou suspensão da ordem social, essa igualdade só se manifesta através daquilo que Rancière identifica como dissenso, “uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível”232. Assim, o dissenso não constitui

mero desacordo entre partes discursivas, mas o gesto pelo qual uma parte até então invisível ou desidentificada acede ao espaço do comum, da discussão e do reconhecimento sensorial. Quando o escravo utiliza a palavra para discutir os seus assuntos, não é tanto o que diz que constitui dissenso, mas antes a sua participação no mundo sensível do discurso, que é incompatível com esse outro mundo no qual o escravo só serve e não tem a capacidade para discutir. Da mesma maneira, quando o artesão encontra o tempo que não tem para lidar com os assuntos que não lhe competem, ele torna-se sujeito litigioso, em inconformidade com a partilha do sensível que lhe atribuía outros espaços e outras ocupações. Assim, mais do que ser um confronto entre dois grupos visíveis que contrapõem formas alternativas da ordem policial, o dissenso ocorre quando “aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política”, cujo discurso percecionamos como “ruído” sem razão ou legitimidade para defender os seus interesses e necessidades enquanto sujeito, se revela como ser falante igualmente apto a falar, a consumar o ato político, a contestar a sua posição na ordem policial — não é, assim, uma questão de defender os interesses dos 99%, mas antes de (se) dar a ver os 0% que não são ainda contados. Se a polícia pretende estabilizar a partilha do sensível, torná- la evidente e estável, a política opera nela transformações sensoriais através do dissenso, de modo a que o que era invisível se torne visível, o que era ruído seja escutado e compreendido e o que era negligenciado ou negado se torne legítimo, atentado, e é nesse sentido que a política tem um estética.

231 O dissenso encontra no sentido original de democracia a expressão direta da sua razão paradoxal: o poder para governar pertence precisamente à classe que não possui nenhum título para governar, seja ele “antiguidade, nobreza, competência, consideração ou riqueza”. Assim, “[a] política apoia-se neste fundamento paradoxal que é a ausência de qualquer fundamento da dominação”, que “ninguém possui título para governar”, interrompendo “o poder de uma superioridade determinada sobre a inferioridade que lhe corresponde.” (Rancière, “O Dissenso”, pág. 370). Sendo esse o princípio fundador da política, uma espécie de negação

radical da legitimidade do governo, a política é destrutiva, e precisa de atuar constantemente sobre as instituições que geram o consenso. É nesse sentido que democracia releva a radical racionalidade política que Rancière tenta recuperar: a política, enquanto verificação da igualdade humana e da constituição de um comum inclusivo pela divisão, interrompe qualquer estrutura de poder e identificação. Assim, o demos é não só aqueles que são identificados como menores e sem título para governar, mas também por aqueles que permanecem desidentificados, como o escravo que discute ou o artesão com tempo para o debate público. O sujeito político é, por fim, caracterizado por um litígio face à ordem normal de uma sociedade, que através do dissenso se exclui de qualquer classe identificável, que pertence a uma não-classe.

Essa ambição de redefinir o visível e o invisível e o dizível e o indizível está no cerne de práticas performativas contemporâneas que têm como ambição revelar códigos constrangedores ao mesmo tempo que atualizam as possibilidades de uso dos lugares. A título exemplificativo, podemos assinalar as raves que os Space Hijackers, um grupo de “anarquitetos”233, realizaram no metro circular de Londres. Na sua opinião, os transportes

públicos de londres são um espaço urbano que, apesar de alegadamente públicos, estão sob apertado controlo policial e onde os seus utentes seguem normas comportamentais anti- sociais, evitando qualquer tipo de interação entre si ou qualquer manifestação ativa dos seus desejos, algo que o espaço público deveria acolher. O seu principal objetivo seria “(...) quebrar completamente a maneira em que o metro funciona em termos de códigos de conduta”234.

Assim, usando malas que camuflavam um bar, um sistema de som e celofane colorido para filtrar a iluminação, transformaram as carruagens em temporários espaços de celebração, desmontados em cada paragem para evitar o seu desmantelamento pelas autoridades. Se a primeira festa, em 1999, contou com 150 pessoas, a terceira festa, em 2004, teve já 2000 participantes235, testemunhando-se um aumento expansivo deste uso subversivo.

Na medida em que um gesto político corresponde à utilização litigiosa do espaço e do tempo — usar a rua para a manifestação pública, interrompendo o tráfego viário; abandonar a oficina para, enquanto artesão sem estatuto de autoridade, intervir numa discussão governamental; etc. —, ele constitui uma performance espacial, através da qual o indivíduo dissidente - sujeito político - demonstra capacidades que se lhe negavam. Se o dissenso se caracteriza pela sua instantaneidade e transitoriedade, assim como com a prática da liberdade individual e coletiva própria do gesto político, como pode a arquitetura, identificada com as suas formas perenes, produzir dissenso? Se a política se faz através do uso e da desidentificação dissidentes, como pode a forma ou o processo por que a arquitetura emerge promover dissenso? A viabilidade da arquitetura para produzir dissenso residirá então na sua condição artística para esteticamente alterar “os quadros, as escalas ou os ritmos” associados aos usos e sensibilidades (i)legítimos correspondentes a determinados regimes de identidade e de divisão público-privado ou de uso. Assim, compreender a arquitetura dentro de um regime estético onde atua como “agente de desclassificação” dos lugares e dos tempos e como explosivo da relação entre forma e uso devém política e abre possibilidades para a subjetivação do indivíduo. Assim, a arquitetura, além da sua condição policial construtora de sujeitos, permite-se, sob o regime estético da arte, introduzir objetos desidentificados que promovam novas relações de poder e novos sujeitos políticos através da contestação das

propriedades e do uso de um lugar.

Segundo Rancière, a arte ocidental orientou-se historicamente segundo três regimes artísticos, i.e., “tipo[s] específico[s] de ligação entre os modos de produção de obras ou de práticas, as formas de visibilidade dessas práticas e os modos como ambos são

233 No seu segundo manifesto, os Space Hijackers assumem-se opositores da arquitetura, definida como construção de significação e de códigos de uso das formas: “Os Space Hijackers são Anarquitetos, opomo-nos à hierarquia que nos é imposta por arquitetos, urbanistas e proprietários do espaço. (...) É através da corrupção da linguagem e significação da arquitetura que uma forma real de resistência pode ser encontrada. Mitos podem ser desmistificados e signos reescritos. Os Space Hijackers operam aqui, trabalhando para corromper a linguagem da arquitetura.” Para consultar o manifesto completo, ver Space Hijackers, “Second Manifesto of the Space Hijackers” [online], disponível em https://www.spacehijackers.org/html/manifesto.html [2019, setembro] 234 Space Hijackers, “Circle Line Party” [online], disponível em: https://www.spacehijackers.org/html/projects/circle.html [2019,

Setembro]

235 Ver Space Hijackers, “Circle Line Party 5” [online], disponível em: https://www.spacehijackers.org/html/projects/circle5/ circlelineparty5.html [2019, setembro]

concetualizados”236. O regime estético, do qual nos ocuparemos, terá sido precedido237 pelo regime ético das imagens, que privilegiava a adequação da origem das imagens, distinguida

entre verdade — na maioria das vezes correspondente a uma ortodoxia religiosa — e ‘simples‘ aparência, e os efeitos que provocava sobre os espectadores, que deveriam ficar mais elucidados e educados sobre a verdade revelada (por esta razão a obra de arte neste regime fica refém dos valores morais que se propõe partilhar), e pelo regime representativo da

arte, que por transcrever narrativamente a realidade e estabelecer hierarquias entre géneros

(artísticos) e a correspondente adequação temática estabelece “uma analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade”. Relativamente a este último regime, a representação não tem tanto que ver com a semelhança entre forma de visibilidade da obra e o tema ou objeto por ela representado, mas antes na “existência de ligações necessárias entre um tipo de tema e uma forma de expressão”238, que contudo constrangem as maneiras legítimas de

se falar ou dar a ver determinadas coisas e relegam várias realidades sensíveis para a esfera da banalidade invisível. A estes dois regimes corresponde uma determinada eficácia política — capacidade de transformar a organização social e/ou subjetivar o indivíduo — derivada das qualidades pedagógicas da obra, “[supondo-se] uma relação de continuidade entre as formas sensíveis de produção artística e as formas sensíveis segundo as quais os sentimentos e pensamentos daqueles e daquelas que as recebem são afetados”239. Ao artista caberia a

organização de signos sensíveis legíveis de maneira a que a arte propusesse ao espectador “modelos de pensamento e de ação que deviam ser imitados ou evitados”. O regime pedagógico da arte permitia ao artista pedagogo usar a obra de arte como mediação do seu saber e transmiti-lo ao espectador através dessa mediação, sendo o espectador objeto passivo da subjetiva intelectualidade/sensibilidade do artista240.

A arquitetura sob o regime ético das imagens poderia ser avaliada a partir de duas experiências muito diferentes: uma mais antiga, cuja escala e simbiose com a pintura e a escultura fabulísticas241 ensinariam o respeito pelas autoridades institucionais e as suas

respetivas narrativas e valores morais, e aquela onde a correspondência entre forma e uso pretende evidenciar uma boa maneira de habitar242, uma maneira moral de habitar (não só

funcional mas também sensível, promovendo maneiras de relação com a luz e a paisagem, por exemplo). Já a arquitetura sob o regime representativo da arte poderá corresponder à tratadística ou aos cânones, responsáveis pela codificação hierárquica da forma construída. Naturalmente não podemos circunscrever praticamente nenhuma arquitetura a apenas um desses regimes, talvez pela sua condição complexa, heterogénea e paradoxal, dificilmente

236 Rancière, Estética e Política. A partilha do sensível, pág. 21.

237 As obras de arte continuam a ser produzidas e pensadas a partir destes três regimes, mas historicamente o regime estético ter- se-á consolidado por último e mantém maior afinidade com a democracia radical contemporânea.

238 Rancière, Estética e Política. A partilha do sensível, pág. 64.

239 Jacques Rancière, O Espectador Emancipado (Lisboa: Orfeu Negro, 2010), págs. 79-80.

240 Segundo Rancière, "(...) em geral [as várias práticas artísticas de resistência] têm por adquirido um certo modelo de eficácia; supõe-se que a arte é política porque mostra os estigmas da dominação, ou então porque coloca em derisão os ícones reinantes, ou ainda porque sai dos seus lugares próprios para se transformar em prática social, e assim por diante. (...) Supõe-se que a arte nos torna revoltados ao mostrar-nos coisas revoltantes, que nos mobiliza pelo facto de se mover para fora do estúdio do artista ou do museu e que nos transforma em opositores ao sistema dominante negando-se a si mesma como elemento desse sistema. Coloca-se sempre como uma evidência a passagem da causa ao efeito, da intenção ao resultado, exceto se se supuser que o artista é inábil ou o destinatário incorrigível." (Rancière, Ibid., pág. 78-9 )

241 Os elementos escultóricos e pictóricos das igrejas românicas talvez sejam o exemplo ocidental mais expressivo desta representação fabulística da verdade.

242 Esta moralização espacial poderia ser exemplificada pelos videos promocionais da Bauhaus ou, atualmente, ao marketing corporativo do IKEA.

esgotável numa análise holística. Qualquer tipo de diagnóstico sob esta regimentação da arquitetura encontra dificuldades maiores ao se considerar como algumas formas se mantiveram válidas ao mesmo tempo que o seu significado e utilidade foram variando. Se as ordens clássicas, libertas das suas analogias naturalistas com a palmeira ou a fisionomia humana, constituíram até à modernidade um símbolo válido e adequado na construção da ‘grande arquitetura’, a sua expansão do templo para as villas rurais e, mais tarde, casinos ou armazéns fabris, determinou também a rutura da relação entre esses signos, a sua simbologia e a sua adequação formal para a construção de determinados edifícios, tornando legítimo o seu uso em arquiteturas ‘banais’ ao mesmo tempo que banalizando ou neutralizando esses signos. Isto representa um paradoxo. Ao mesmo tempo que se tenta recuperar a significação cultural dos signos da arquitetura antiga, incorre-se num exercício de indiferenciação se não do estilo então das atividades e personagens a que a arquitetura se disporia. O ecletismo não pressupõe a igualdade estética, porquanto pressupõe o conhecimento das relações adequadas e credíveis entre as formas, os seus fins e os processos que lhe deram origem; mas quando praticado ambígua ou até equivocadamente, sob a forma de anacronismos, hibridismos ou dignificação do banal, consegue aceder a uma igualdade estética. Em certo sentido, é isso que acontece em Climat de France de Fernand Pouillon, mas também em alguns projetos considerados clássicos do “pós-modernismo”, como a Piazza d’Italia. Podemos considerar que a arquitetura acompanhou, ainda que mais lentamente, as outras artes na revolução estética iniciada no século XVIII, destabilizando a ordem preferencial dos programas (a habitação é progressivamente invadida por ambições artísticas, ao mesmo tempo que as igrejas são, em parte, destituídas, dessacralizadas) e minando o código tratadístico, tal como já se referira na primeira parte deste trabalho. A rotura com representação (adequada hierarquia entre temas e formas correspondentes) e a adesão à igualdade estética explicam como aquilo que se entende como modernismo, na sua recusa de qualquer ornamento e o seu alegado pragmatismo pré-ideológico para lidar com qualquer tipo de edifício da mesma maneira, e pós-modernismo, na sua vertente historicista e do seu esforço eclético, partilham uma mesma igualdade estética: não é a simples disponibilidade de todas as formas para a utilidade e o deleite sensorial que determina essa igualdade, mas uma rutura no modo de associar formas específicas a programas ou clientes determinados.

Nas vésperas da Revolução Francesa, este modelo pedagógico, ou de mediação representacional, terá sido questionado de duas maneiras. A primeira e mais frontal, acusava a linearidade entre perfomance, sentido e efeito, assim como a incapacidade e validade da arte garantir esse percurso causa-efeito. Protagonizada por Rousseau, contrapunha ao modelo mimético pedagógico o modelo arqui-ético ou de imediaticidade ética no qual a arte equivaleria à vida243, e onde a separação entre performance representativa e a ação do povo

espectador se reduz a zero244. No entanto, também segundo este modelo de eficácia política se

conserva a relação de causalidade entre formas sensíveis de produção artística — obra artística

per se — e formas sensíveis segundo as quais os sentimentos e pensamentos daqueles e daquelas 243 Esta ideia seria replicada no aforismo Arquitetura é vida, enunciado por Frank Lloyd Wright — “Arquitetura é vida, ou pelo menos é a vida a tomar forma e, consequentemente, é o registo mais verdadeiro de vida tal como foi vivida ontem, é vivida hoje ou alguma vez será vivida.” (Frank Lloyd Wright, An Organic Architecture (Andre Saint, ed.) (Londres: Lund Humphries 2017)) — ou, no panorama nacional, Távora, parecendo nesta perspetiva um slogan para a promoção de uma suposta naturalidade da arquitetura e (desejável) conformidade entre modos de vida e espaço organizado, ainda que estrategicamente se oponha a uma autonomia disciplinar que se predisponha apenas a caprichos intelectuais/sensíveis da elite profissional.

244 “À duvidosa pretensão da representação de corrigir os costumes e os pensamentos substitui um modelo arqui-ético, (...) no sentido em que os pensamentos já não são objetos de lições transportadas por corpos ou imagens representadas, mas são diretamente incarnados em costumes, em modos de ser da comunidade.” Rancière, O Espectador Emancipado, pág. 84.

que as recebem são afetados — efeitos subjetivantes sobre o espectador —, substituindo

a continuidade entre uma e outra por uma total coincidência e contrapondo “à incerta pedagogia da mediação representativa (...) uma outra pedagogia, a da imediaticidade ética”245.

Pelo contrário, a segunda alternativa, o regime estético da arte, tentava garantir precisamente a autonomia ou independência da arte face à vida, abdicando de qualquer relação causa/ efeito que pudesse existir entre ambas e procurando uma emancipação de significação direta da arte que alargasse a sua liberdade de efeitos: “(...) [a] estética significava que as obras de arte eram apreendidas enquanto tal numa esfera específica de experiência onde — nos termos kantianos — estavam livres das formas de conexão sensorial própria tanto dos objetos de conhecimento como dos objetos de desejo. (...) Eram apenas “aparência-livre” em resposta a um jogo-livre, significando uma relação não-hierárquica entre as faculdades intelectuais e sensoriais.”246.

O regime estético surge assim como alternativa à pedagogia ético-representativa, possibilitando um modelo de eficácia política indiferente à subjetividade exclusiva do artista e dos cânones por que se rege, mas também à pedagogia da imediaticidade ética. Neste regime, a obra de arte e os seus efeitos pressupõem uma distância estética, que se fundamenta, segundo Rancière, na “suspensão de toda e qualquer relação determinável entre a intenção de um artista, uma forma sensível apresentada num lugar dedicado à arte, o olhar de um espectador e um estado da comunidade.”247, sem “relação de causa e efeito” entre cada uma248. Sendo

essa relação descontínua, irracional e imprevisível249, o efeito político sobre o espectador

torna-se imprevisível, e não é certo que determinado espectador esteja mais educado ou melhor predisposto a compreender ou sentir a obra. Além disso, ao suspender a autoridade intelectual para apreciar uma obra, relegando os seus efeitos também para a esfera da confusa e duvidosa sensibilidade emotiva, a estética encontraria uma posição para a obra de arte na qual ela não se esgotaria numa explicação verbal, racional, nem na desatenta apreciação da realidade sensível250. Assim, à efetividade moral e à profundidade representativa, o regime

estético opõe a planitude indiferente, onde os signos e os temas se oferecem sem hierarquia, sem relação imediata entre o que são e o que querem representar ou significar. Este regime estético assenta na eficácia de um dissenso, entendido não como “conflito das ideias ou dos sentimentos” mas como “conflito de vários regimes de sensorialidade”251, onde ao mundo 245 Ibid., pág. 85.

246 Jacques Rancière, “The Politics of Aesthetics” [online], disponível em: http://16beavergroup.org/articles/2006/05/05/rene- ranciere-the-politics-of-aesthetics/ [2019, Março], s.p.

247 Rancière, O Espectador Emancipado, págs. 85-6. 248 Ibid., pág. 87.

249 O regime estético coloca, no entanto, um paradoxo sobre a identificação da obra de arte e da experiência sensível que lhe corresponde. Ao quebrar a relações de hierarquia entre forma e conteúdo, entre maneiras apropriadas de «fazer» correspondentes aos géneros (artísticos), permite que qualquer prática possa ser considerada artística e que qualquer prática artística, por não seguir nenhum procedimento nem obter uma aparência canónica, se possa confundir com outra prática qualquer, com a vida, e seja absorvida pelo consenso. Daí a sua necessidade de se relacionar com o contexto e as contingências, de maneira a colocar em crise as maneiras habituadas que temos de entender e sentir a realidade a partir desses contextos ou contingências. O exemplo mais direto seria a Fonte de Duchamp, cuja eficácia estética depende desse confronto entre o mundo fora da galeria, onde é um objeto utilitário com função evidente, e o mundo dentro da galeria, entregue a um outro tempo e modo de atentar.

250 “O “estado estético” definiu a esfera da igualdade sensorial, na qual a supremacia do entendimento ativo sobre a sensibilidade passiva deixou de funcionar. (…) Schiller opôs essa “revolução” sensorial à revolução policial tal como foi implementada pela Revolução Francesa. Esta havia falhado precisamente porque o poder revolucionário tinha desempenhado o papel tradicional do Entendimento - quer dizer, o estado - impondo a sua lei às questões das sensações - quer dizer, as massas. A única revolução