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Capítulo 4. Para onde se vai dançando?

4.2 Passa-se

Como a dança engendra passagem a alhures, e o que se passa exatamente, não se sabe. Isso fica enquanto uma espécie de aposta, de consentimento no mistério. Aposta-se na impossibilidade de representação, (não) se conta com nada. Nesse contexto, esta dissertação lança-se a estudos mantenedores dessa aposta inesgotável.

Publicado postumamente, O corpo utópico (1966/2010), texto falado de Foucault, atípico e revelador de contradições, aponta dúvidas quanto ao corpo num entendimento fenomênico e empírico. Neste, corpo, espaço e linguagem enredam-se na inevitável gravidade, materialidade imposta a cada tentativa de se desvencilhar dessa rede. Não haveria como escapar do espaço delimitado pelo corpo, e uma utopia, no sentido foucaultiano, surgiria “para apagá-lo”, promessa de um corpo “belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração” (Foucault, 1966/2010, p. 1).

A atipia, as contradições e as dúvidas desse texto diriam respeito à própria condição corporal. Nem aqui, nem ali, quando se delimita uma fala acerca do corpo, ele escapa, mostra- se sempre delimitado alhures, numa impossibilidade de situá-lo. É assim que Foucault questiona se o corpo, na dança, não seria “justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo”. Nesse sentido, é possível considerar a dança atendendo à imprecisão do corpo, exaltando e comemorando o mistério em torno do corpo. Entre uma coisa e outra, parâmetro para o (des)arranjo utópico das coisas, “além do mundo. (...) em nenhuma parte”, o corpo “não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis” (Foucault, 1966/2010, p. 6).

O psicanalista e pesquisador Edson Luiz André de Sousa elucida que a palavra “utopia” surge na pena do escritor inglês Thomas Morus (1480-1535). No texto intitulado Utopia (1516), Morus batiza uma ilha justa e eficiente a fim de indagar e satirizar os impasses da Inglaterra da sua época. Ao pé da letra, essa palavra, de origem grega, designa nenhum

lugar, um lugar inexistente. Sousa destaca a temática da utopia especialmente no texto intitulado Por uma cultura da utopia (2011). Texto de uma riqueza incomensurável devido à pluralidade de ideias e de leituras, esta dissertação limita-se a salientar alguns aspectos em consonância com os capítulos anteriores.

“Todo ato de criação é um ato utópico” (Sousa, 2011, p. 1), eis a frase de abertura, exatamente a primeira frase do texto e justamente assunto primordial de uma criação, bem como, de uma utopia. De acordo com Sousa, uma utopia desperta a um espaço inabitual, atípico, de interrupção e suspensão de um movimento aparentemente contínuo. Ao permitir a transposição de um espaço comum pela proposição de um não-lugar, a utopia abre uma brecha no movimento histórico, um espaço espantoso. Este, isolado de qualquer tendência à repetição, aponta para criações, para um gesto enquanto “potência transformadora” (Sousa, 2011, p. 1).

Com o fotógrafo esloveno Evgen Bavcar (1946-), Sousa evidencia o olhar como construção e estruturação significante. Cego da visão, Bavcar radicaliza as possibilidades do olhar e situa a utopia num jogo de “quero ver”. Ao contrário de uma imposição, de um imperativo como “veja isto”, “quero ver” indica um não saber, uma indeterminação, não se sabe o quê se quer ver, mas se aposta justamente no advir de algum olhar, na passibilidade a algo novo. É possível considerar a utopia e a criação enquanto suportes de uma indeterminação, da disponibilidade para correr riscos, por isso todo ato criativo é um ato utópico.

A presente dissertação nota a importância de considerar a utopia como passagem a prováveis trilhas a seguir, a passar. Dentre as questões deixadas, a utopia provoca-as na justa abertura misteriosa a incitar movimentações. E, conforme os capítulos anteriores, movimentações disruptivas, de corte, pela novidade de um gesto.

Num outro texto, Uma invenção da utopia (2007), Sousa frisa o inacabamento da utopia enquanto potencialidade de sempre mais um passo. Ao invés de paralisia motora, fascinação imobilizante ou petrificação medúsica, o referido inacabamento descortina o irrepresentável. “Aqui, este real é necessário como a maré que apaga as pegadas na areia e assim outra escritura e percurso é possível” (Sousa, 2007, p. 25), movimento no sentido de alguma invenção, aposta na construção de alguma novidade, de uma nova janela, mas “‘uma janela utópica’” através da qual se vê “‘uma paisagem’” (Jimenez citado por Sousa, 2007, p. 33). Por se tratar de uma janela utópica, é presumível que essa paisagem apareça deformada, disforme, uma passagem utópica, posta a impossibilidade de saber onde ela vai dar, qual será seu foco, seu ponto de mirada. Por essa janela, conta-se com a possibilidade de olhar através dela.

Esse olhar imprescinde da “experiência de um fazer” (Sousa, 2007, p. 34). Experiência de arriscar-se com o insabido, contando com o inacabamento para “reinventar um mundo dilatado e produzir novas configurações a partir do desequilíbrio das formas. Por isso, a utopia traz necessariamente ao mundo uma força de transgressão” (Sousa, 2007, p. 40). Transgressão da forma pela qual colocamo-nos num espaço desenquadrado. Transgredir, portanto, requer o fracasso de qualquer imagem que, no contexto utópico desta dissertação, torna-se o êxito de fracassar imaginar algum saber.

Lembrando Freud e a tendência pulsional em manter a excitação a nível mínimo zero, é presumível considerar a utopia enquanto transgressão da inércia. Nesse sentido, no sentido do movimento, o livro A invenção da vida (2001) traz no título a provocação utópica. Essa vida enreda-se ao olhar por um lampejo de passagem a alguma coisa de invenção, que requer invenção para passar, requer o passo de um sujeito. Passo vacilante, desestabiliza qualquer ponto de vista, em prol da passagem à deformação da paisagem. Essa deformação não comporta qualquer planejamento ou reprodução, pois advém enquanto invento.

A partir de tal deformação, seria possível olhar e se deparar com o que fica do corpo. Ou seja, deparar-se com o inevitável por excelência, o destino cadavérico, a inércia do corpo esvaziado da potência de levantar voo num passo de dança. Corpo perdido para a gravidade da lei simbólica interditora de satisfação, bem como perdido para a gravidade da lei da queda dos corpos. Esse olhar convoca o sujeito a se virar, a se mexer para vislumbrar uma “invenção da vida”, parafraseando Sousa (2001).

Conforme vimos nesta dissertação, a invenção requer jogo com o significante da referida perda. Por esse jogo, cria-se um espaço ilimitado por das Ding e limitado pelo significante primordial, uma marca inscrita no corpo enquanto rastro de uma perda de satisfação, quando o corpo passa à linguagem, ao olhar do Outro. A dança apostaria, justamente, na experiência de satisfação com a falta no campo do Outro, satisfação com o não sentido do corpo enquanto significante.

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