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1- Polineuropatia Amiloidótica Familiar

2.5 Patogénese: os modelos de agregação

Actualmente, o modelo melhor aceite para descrever a patogénese desta doença, baseado em estudos in vitro, assenta na perda de estabilidade do tetrâmero da TTR devido à ocorrência de mutações pontuais, que levam à sua dissociação em monómeros, agregação e consequente formação de fibras amilóides de TTR (Hurshman et al. 2004; Bonifácio et al. 1996; Sebastião et al. 1998). A agregação dá-se por um processo de polimerização em “downhill” (cascata), onde se formam oligómeros, agregados solúveis, agregados amorfos insolúveis e finalmente fibras amilóides (Hurshman et al. 2004; Lawreen Heller Connors et al. 2003; Quintas et al. 2001; Saraiva 2001) (Figura I-5). Do ponto de vista energético, estas espécies (fibras) constituem a forma mais estável dos monómeros misfolded (Hurshman et al. 2004). O processo de self-assembly dos intermediários amiloidogénicos é um processo dependente da concentração e do tempo (Estrada & Soto 2007; J. E. Kang et al. 2009), logo, de acordo com o modelo de polimerização dependente da nucleação a agregação não ocorre enquanto a concentração da proteína amiloidogénica não ultrapassar um determinado nível (J. E. Kang et al. 2009).

Inicialmente foi proposto por Kelly e Colon que os lisossomas seriam os organitos responsáveis pela desnaturação parcial da TTR, dando origem a um intermediário

13 amiloidogénico parcialmente desnaturado que seria por si só suficiente para originar as fibras amilóides (Colon & J W Kelly 1992). Os lisossomas, responsáveis pelo turnover de proteínas através da desnaturação ácida seguida de proteólise, induziriam o rearranjo e dissociação do tetrâmero com o seu baixo pH, e a instabilidade das variantes de TTR correlacionar-se-ia com a agressividade de cada mutação (McCutchen et al. 1993). Na base deste pressuposto esteve a demonstração de que variantes mais patogénicas, como a L55P, apresentam uma estabilidade significativamente menor em relação à TTR wild-type e uma capacidade de desnaturar formando intermediários amiloidogénicos a valores de pH intermédios, enquanto uma variante menos agressiva como a V30M requer um pH mais ácido para que a sua desnaturação seja induzida (pH 5.0 vs 6.15) (McCutchen et al. 1993). Por outro lado, a existência de uma variante não amiloidogénica mais estável que a wild-type, a T119M, veio mostrar que duplos mutantes V30M/T119M são estabilizados por esta ultima mutação, que confere maior resistência à desnaturação ácida e diminui a amiloidogenecidade da V30M (McCutchen et al. 1995). Porém, o mecanismo proposto por Kelly para a formação das fibras amilóides, que visava a dissociação da TTR tetramérica em monómero por um processo dependente do pH e da concentração de proteína, implica que a formação dos depósitos ocorra intracelularmente, o que não é consistente com as observações dos depósitos de TTR a nível extracelular (Adams & Said 1996).

Figura I-5 – Via de formação de fibras TTR. Em condições fisiológicas a TTR existe como tetrâmero (A) em equilíbrio

com os seus monómeros (B) através de um estado dimérico hipotético (C). Após a sua libertação, dá-se o misfolding dos monómeros (D), que rapidamente agrega para formar oligómeros (E), agregados amorfos insolúveis (F) e fibras (G). A propensão do monómero para o misfolding é aumentada pela presença de mutações amiloidogénicas. Adaptado de (Foss et al. 2005).

Quintas desenvolveu um modelo diferente para a formação das fibras amilóides de TTR. Foi a observação dos depósitos amilóides predominantemente nos nervos periféricos e da

14 dissociação do tetrâmero de TTR em espécies monoméricas não nativas a pH 7 e em condições de força iónica fisiológicas que o levou a contrariar a hipótese de que os lisossomas seriam essenciais para a sua formação (Quintas et al. 1997). Assim, foi proposto um modelo de formação de fibras amilóides baseado na dissociação da proteína tetramérica em condições fisiológicas, onde a exposição da superfície hidrófoba dos monómeros ao solvente se apresenta como principal factor (Quintas et al. 1999). De acordo com este modelo foi demonstrado que a dissociação do tetrâmero (primeiro e mais importante passo) e a desnaturação parcial do monómero precede a formação das fibras amilóides (Quintas et al. 2001) (Figura I-5). A presença de uma mutação vai influenciar o equilíbrio que existe entre as espécies tetramérica e monoméricas, onde variantes mais amiloidogénicas favorecem a formação do monómero não nativo (que é menos estável) com maior tendência para formar o intermediário monomérico misfolded.

Apesar da coexistência de fibras amilóides e agregados amorfos de origem desconhecida ter sido descrita há cerca de 40 anos, a deposição de TTR sob a forma de pequenos agregados não fibrilares ocorrendo antes da formação de amilóide só foi demonstrada em 2001 (M. M. Sousa, Cardoso, et al. 2001). Sousa et al. testaram os nervos de portadores assintomáticos da TTR V30M para a deposição e presença de fibras amilóide por himunohistoquímica e coloração com vermelho do Congo. Nestes nervos a TTR já se encontrava depositada sob uma forma agregada não fibrilar, logo negativa para a coloração com o vermelho do Congo (M. M. Sousa, Cardoso, et al. 2001). Ao estudar-se a natureza do material depositado, concluiu-se que se tratavam de pequenos agregados amorfos presentes nos nervos PAF antes das fibras serem visíveis, mas que continuam presentes em estadios mais tardios da progressão da PAF, coexistindo com fibras bem estruturadas e maduras. Este possível papel patogénico dos agregados não fibrilares é realçado quando mais tarde se demonstrou que as fibras maduras de TTR não são capazes de causar danos celulares, mas que os agregados de TTR são tóxicos para as células (K. Andersson et al. 2002). O facto dos nervos PAF com agregados de TTR depositados mas ausência de fibras apresentarem sinais de stress oxidativo (Y. Ando et al. 1997; K. Andersson et al. 2002) e inflamatório (M. M. Sousa, S. Du Yan, et al. 2001) levantou a hipótese dos agregados tóxicos terem o potencial de induzir alterações neurodegenerativas (M. M. Sousa, Cardoso, et al. 2001) e das fibras maduras de TTR encontradas nos nervos dos doentes PAF representarem um estádio final inerte.

Embora tenham sido realizados vários ensaios cinéticos e termodinâmicos em proteínas recombinantes de TTR formando híbridos entre as formas wild-type e mutante (ex: V30M), onde se observou que a presença da mutação desvia o equilíbrio tetrâmero-

15 monómero para a forma monomérica (Hurshman et al. 2004; Schneider et al. 2001), o mecanismo subjacente à formação de fibras amilóides de TTR ainda não se encontra totalmente elucidado. Mesmo suportando as premissas do modelo de agregação, a maioria dos ensaios para estudar o processo de formação de fibras é realizada in vitro e afastada das condições fisiológicas. Além disso, o próprio modelo enunciando não permite prever e compreender a variabilidade fenotípica que está associada à PAF, como as diferentes age

onset, os níveis de penetrância entre indivíduos portadores da mesma mutação, homo e

heterozigóticos, pontos que mais tarde serão abordados em maior detalhe.

As mutações não podem, portanto, ser o único factor por detrás da patogénese da PAF, responsáveis por destabilizar a estrutura tetramérica da TTR, promover a sua agregação e deposição sob a forma amilóide. Devem existir outras condições que, directa ou indirectamente, influenciam a progressão da Paramiloidose, como por exemplo a glicação. Esta modificação está presente em várias doenças neurodegenerativas, como as doenças de Alzheimer e Parkinson (Vitek et al. 1994; Castellani et al. 1996). Na PAF também se encontraram provas da presença de AGEs (do inglês, advanced glycation end products), quando em 2005 Gomes et al. identificaram e quantificaram um produto específico de glicação por metilglioxal, a Argpirimidina, dos depósitos amilóides de doentes PAF (Gomes et al. 2005). Dada a importância da glicação face a estas descobertas, será dedicado um capítulo para desenvolver com maior detalhe o seu papel na PAF.