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3 A SUCESSÃO NOS VÍNCULOS SOCIOAFETIVOS DE PARENTALIDADE E MULTIPARENTALIDADE

3.1 PATRIMÔNIO E AFETO

Ao longo do trabalho, viu-se como as transformações nas relações familiares de parentesco evoluíram deixando para trás os preceitos tradicionais do patriarcalismo e da conjugalidade cristã, como modelo hegemônico e única forma legal de constituição da família. A legislação tentou assimilar esses novos arranjos que se apresentavam na sociedade, tendo na Constituição de 1988 o grande marco, ao romper com desigualdades existentes entre as formas de constituição familiar, passa- se então a ter um conceito plural de famílias, por isso, alguns autores defendem o uso da expressão Direito das Famílias, como o mais adequado, para fazer referência a todos os arranjos possíveis.

Neste capítulo, será estudado como as mudanças e a atualização nos entendimentos de família, em especial das relações parentais, estão sendo assimiladas por um ramo do direito, intimamente ligado ao direito de família, que é o direito das sucessões.

O grande jurista brasileiro, Orlando Gomes102, no prólogo do seu livro sobre sucessões, traz uma consideração fundamental para se entender a dinâmica que interliga o direito de sucessões com o direito de família:

“O Direito das Sucessões não é um campo aberto a inovações de grande porte, mas, tendo estrita conexão com duas instituições básicas do ordenamento jurídico de qualquer povo, como são a família e a propriedade, é compreensível que receba influências das transformações por que estas passam. Não chegando, contudo, a provocar mudanças radicais no regime hereditário, que continua orientado por três grandes conceitos gerais: 1) o do respeito à vontade do finado; 2) o de que a sucessão legítima é supletiva de sua vontade; 3) o da igualdade das legítimas. ”

Atualmente enfrenta-se uma transformação de paradigma que conferiu a afetividade valor jurídico a ser tutelado pelo estado, provocou uma alteração significativa na concepção de paternidade que passou a centrar sua atenção na realização pessoal das pessoas envolvidas nessa relação (pai e filho) e na sua dignidade, o que consiste no fenômeno da repersonalização. Com isso as questões

102GOMES, Orlando. Sucessões. – 14ed. rev., atual. e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002/ por Maria Roberto Carvalho de Faria. – Rio de Janeiro: Forense, 2007.

patrimoniais que antes eram o norte para as decisões jurídicas envolvendo família, de maneira implícita ou explicita, acabaram por perder o protagonismo, figurando hoje como coadjuvantes.103

O doutrinador Paulo Nader104 traz a importância de se reconhecer os efeitos da parentalidade socioafetiva na prática, dizendo que, uma vez constatada a desbiologização do parentesco, esta não deve manter-se exclusivamente no plano teórico, na afirmação de princípios, mas promover efeitos práticos no ordenamento jurídico como um todo, repercutindo inclusive sobre a sucessão.

A questão do parentesco civil sempre esteve relacionado, tradicionalmente, ao instituto da adoção. Todavia com o progresso dos conceitos familiares e a maior valoração dos vínculos afetivos desenvolvidos pela sociedade passou-se a reconhecer outras formas de parentesco civil, a exemplo da parentalidade socioafetiva.105

Acerca do reconhecimento dos reflexos jurídicos e patrimoniais da parentalidade socioafetiva, foi elaborado um enunciado na V Jornada de Direito Civil (nº 519 do CJF/STJ), afirmando que o reconhecimento de um parentesco em virtude de vínculos socioafetivos, deve ocorrer com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais. Recentemente o STF reconheceu a multiparentalidade, garantindo os efeitos jurídicos próprios das relações de parentalidade, sendo está constituída por dois tipos distintos de vínculos, um biológico e outro socioafetivo com pais diferentes. Pode-se concluir que os vínculos reconhecidos de parentalidade socioafetiva podem e devem gerar efeitos patrimoniais e obrigações reciprocas, idênticas ao parentesco civil de filiação.

3.1.1 Função social da herança

A Constituição Federal de 1988, foi um marco na evolução dos direitos sociais, retirando de uma série de institutos o seu caráter individualista e liberal, e assim ocorreu com a titularidade das coisas, que também ganhou função social. Atualmente

103LÔBO, Paulo Luiz Netto. Parentalidade Socioafetiva e o retrocesso da Súmula 301-STJ. Disponível em:<http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/37.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2017.

104NADER, Paulo. Curso de direito civil, v. 5: direito de família 7ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.p.444

105TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.6:direito das sucessões – 10ed.rev.. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017 p.143

o direito sucessório também está voltado ao cumprimento da sua função social. Desse modo, o interesse social é prioridade, em especial o direito à herança, reduzindo assim o papel do testador. Sendo está a primeira constituição a trazer o direito à herança, como um direito fundamental (CF art.5º, XXX).106

A herança possui uma função social que permite a divisão da riqueza do de

cujus, transmitindo a seus herdeiros. O direito de representação tem seu alicerce no

princípio da isonomia e na função social da herança, na medida em que se propõe dar um tratamento equânime aos herdeiros do autor da herança, buscando resguardá-los da dupla tristeza que seria a perda de seu ascendente imediato e direito, juntamente com os benefícios que poderiam ser garantidos, se não houvesse ocorrido o falecimento daquele.107

No que se refere especificamente a sucessão dos descendentes, na Constituição de 1988 a origem biológica, ou não biológica, a nulidade do casamento, ou o divórcio não afetara o igual direito existente entre eles. Os filhos de qualquer origem devem ser investidos dos mesmos direitos e deveres, inclusive os sucessórios, independentemente de serem matrimoniais ou extramatrimoniais, biológicos ou socioafetivos. Superou-se a questão do filho legítimo e ilegítimo, não existindo mais o filtro da legitimidade, onde o primeiro tinha uma situação privilegiada do ponto de vista sucessório com relação ao segundo. Então, sendo o direito adquirido sem vícios ou restrições, este igualmente será transmitido pelos descendentes do filho, em caso de substituição.108