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Vimos, no capítulo anterior, fundamentado no referencial teórico da área, que o conceito de patrimônio pode ser entendido como uma invenção, uma construção social e cultural e que, atualmente, abrange objetos de natureza materiais (individuais ou conjunto deles, móveis e imóveis), imateriais e naturais que são carregados de valores dos mais diversos, de uma espiritualidade e alma. São representações sempre em constante transformação, que contribuem para a

evocação e fixação de memórias e na afirmação e consolidação de identidades de um grupo ou sociedade, seja no presente, ou no futuro, para as próximas gerações.

Em síntese, buscamos eleger um objeto como patrimônio para preservar memórias e afirmar identidades. Notamos, como visto no capítulo passado, uma “vontade de memória” (NORA, 1993), por parte dos sujeitos e grupos. Podemos pensar o patrimônio como um processo cíclico, que começa pela relação e olhar do sujeito e termina para ser utilizado/apropriado, geralmente, de modo simbólico, para si mesmo. (Ver figura 13 abaixo).

Figura 13 - Quadro do patrimônio pensado de forma cíclica

Mas, quais seriam os mecanismos e/ou processos que levam e efetivam determinado objeto a chegar à categoria de patrimônio, a fim de ser preservado, conservado e comunicado? Podemos aqui citar dois deles, sem excluir outras possibilidades de preservação: a patrimonialização e a musealização.

Para facilitar nossa compreensão sobre ambos os processos que foram mencionados durante esse trabalho, nos propomos, nesse subcapítulo, a identificar e compreender as suas principais diferenças e semelhanças para a efetivação de determinado objeto à categoria de patrimônio.

Começaremos essa reflexão pelo viés do processo de patrimonialização, buscando entender o que compreendemos por esse conceito.

Objetos com potencial patrimonial Objeto patrimonial Evocar memória/a firmar identidade Sujeito Vontade de memória

Para Motta (2015, p. 33), a patrimonialização pode ser entendida como:

um ato que tornam público e oficial a preservação de um bem por parte do Estado, reconhecendo sua importância nesta esfera. Assim, coloca-se o bem sob a responsabilidade de um órgão de tutela (o qual, na maioria das vezes, encontra-se no âmbito governamental), que fica então responsável por desenvolver uma estrutura jurídica e administrativa para sua gestão.

Ainda para ela, esse processo corresponde ao ato de selecionar determinados objetos como bens culturais, com o intuito de construir um discurso (de valor, de símbolo e história) sobre esses. A patrimonialização tem um caráter institucional e político em que se chancela a proteção e importância de determinados

bens em relação a outros. Além disso, esse processo “possui também um lado

menos institucional, menos formal e, de certa forma, mais inconsciente e emocional. Trata-se da aceitação deste por parte da sociedade, principal interessada na preservação patrimonial” (MOTTA, 2015, p. 34). Voltamos, aqui, para a reflexão trabalhada no capítulo anterior. Se o patrimônio não for reconhecido, se não tiver importância, ressonância perante a sociedade a que pertence, sua relevância, existência e elevação à categoria de bem patrimonial será posta em xeque.

Segundo Lima (2012, p. 34), a patrimonialização é compreendida

como ato que incorpora à dimensão social o discurso da necessidade do estatuto da Preservação. Conservação a ser praticada por instância tutelar, portanto, dotada de responsabilidade (competência) para custodiar os bens. E conservar, conceito que sustenta o Patrimônio, consiste em proteger o bem de qualquer efeito danoso, natural ou intencional, com intuito não só de mantê-lo no presente, como de permitir sua existência no futuro, ou seja, preservar. E a palavra salvaguarda, tão usada pelas entidades competentes nos seus documentos normativos, exprime, adequadamente, o pensamento e a ação que aplicam.

Vemos que essas autoras compreendem o patrimônio sob a esfera jurídica. Como medidas de preservação e conservação convencionadas por pessoas autorizadas para tal fim, geralmente, de uma esfera estatal. O conceito de tutelar também ganha essa acepção: uma organismo/instituição pretensamente legitimada e com as credenciais para operar a preservação e conservação, sob a égide de leis que determinem por quais caminhos seguir. Vemos, ainda, aqui, que a patrimonialização, para as duas autoras, apresenta um caráter institucional e político.

Outra forma encontrada de preservar e divulgar os bens culturais, como já mencionado, dá-se por meio do processo de musealização. Esse deve ocorrer por duas facetas. Na primeira, a musealização é vista como fenômeno, em que resulta

na relação da sociedade com os bens patrimoniais (fato museal e musealidade), em que se reconhece o valor memorial, identitário, documental e informacional dos objetos. E numa segunda, que procede do processo técnico-científico que se sistematiza nas operações de aquisição, salvaguarda e comunicação. Na verdade, como visto anteriormente, ambas as formas se complementam e devem ser pensadas de forma mútua e interligada. Entendemos que a musealização é um processo independente da patrimonialização e se desenvolve de maneira diferente. Entretanto, ambos os conceitos servem como importantes mecanismos de salvaguarda, difusão e transmissão do patrimônio, conferindo-lhe status de documento.

É interessante mencionar, baseados em Scheiner (2009, p. 45), que a

Museologia trabalha com o patrimônio em duas situações:

a) “patrimônio musealizável, ou musealizado - em relação direta ou indireta com

a sua apreensão/institucionalização pelos museus”;

b) “patrimônio como ideia, evento ou manifestação - fundamento constitutivo do próprio fenômeno Museu.”

“Resta, então, situar que modos de olhar se poderá dirigir à Museologia e ao patrimônio: se os vemos como experiências sociais, instâncias simbólicas e de representação, ou de modo mais formal, enquanto campos organizados do saber” (SCHEINER, 2009, p. 51, destaque da autora).

A autora ainda afirma que é preciso conhecer

Patrimônio e Museu como fenômenos plurais, construções simbólicas do pensamento contemporâneo: não mais um conjunto de representações congeladas no tempo e no espaço, mas processos continuados de experiências formando redes interacionais, que partem da multiplicidade e da contradição para articular as novas subjetividades individuais e coletivas que significam, hoje, a relação entre o humano e seus mundos. Nesta relação, todos os tempos e espaços estão presentes: os tempos e espaços da realidade, mas também tudo aquilo que poderia inscrever-se como instância de possibilidade: o projeto, o sonho, a virtualidade. E é na interseção entre eles - fenda, margem,intervalo, dobra - que Museologia e Patrimônio poderão, quem sabe, um dia encontrar o seulugar (SCHEINER, 2009, p. 54-55).

Os processos de musealização e patrimonialização, “embora sejam processos semelhantes, eles não são a mesma coisa, tão pouco processos excludentes” (MOTTA, 2015, p. 31).

Abaixo, procuraremos elucidar algumas diferenças e semelhanças entre os dois processos.

Pontuamos, aqui, que os bens, patrimoniais preservados e conservados pelo

viés da patrimonialização ou musealização, perpassam uma seleção,

necessariamente, permeada por alguma sorte de intencionalidade. Porém,

as memórias são selecionadas, organizadas e, principalmente, expostas de forma diferentes, sob discursos expressos de formas distintas, fornecendo um acesso diferenciado dos bens à sociedade (MOTTA, 2015, p. 52).

Isso orientará, nas memórias que serão lembradas e esquecidas dos diferentes grupos e sociedade no presente. Ao mesmo tempo em que os bens patrimoniais podem ser um importante mecanismo de fortalecimento de memórias e identidades, eles, por outro lado, podem ser um importante instrumento utilizado para o apagamento de lembranças. Os bens patrimoniais e os museus, ao mesmo tempo, podem ser um lugar de memória como de esquecimento.

Outro ponto diferencial que podemos destacar entre ambos os processos é a forma de como determinados bens culturais são efetivados à categoria de patrimônio para serem preservados, conservados e comunicados. Como visto anteriormente, o processo de patrimonialização é visto pelo viés jurídico e político. É um ato que torna público e oficial a preservação e conservação de um patrimônio por parte do Estado, reconhecendo seu valor nessa esfera. Que fica sob a responsabilidade de um órgão

de tutela70, que, na maioria das vezes, se encontra no âmbito governamental.

Já os objetos musealizados, apesar de ficarem sob a responsabilidade de um órgão de tutela, em grande parte, de um organismo/instituição pretensamente legitimada, e que na maioria das vezes se encontra também vinculada ao âmbito governamental, chegam ao processo de musealização por outra rota de atuação, que resulta na relação da sociedade com os bens patrimoniais (fato museal e musealidade). Em outros termos, a musealização está fundamenta na relação sujeito/objeto que busca a apropriação efetiva. Enquanto a patrimonialização tem

70

“Sob a tutela do Iphan, os bens tombados se subdividem em bens móveis e imóveis, entre os quais estão conjuntos urbanos, edificações, coleções e acervos, equipamentos urbanos e de infraestrutura, paisagens, ruínas, jardins e parques históricos, terreiros e sítios arqueológicos. O objetivo do tombamento de um bem cultural é impedir sua destruição ou mutilação, mantendo-o preservado para as gerações futuras”. Bens tombados.

uma acepção mais jurídica, pelo caminho da tutela, deixando para um segundo plano a ressonância.

Quando nos referimos ao museu como fenômeno, ou processo, qualquer sujeito ou grupo também pode musealizar determinado objeto. Como exemplo, as coleções e museus particulares. Vale mencionar que o Museu Gruppelli não é institucionalizado, porém, mesmo assim, isso não impede que possua coleções musealizadas e que zele por sua conservação e difusão. Na acepção da patrimonialização, largamente aceita, tal ação não é possível, porque é o Estado quem tomará a decisão final se determinado objeto será patrimônio ou não, a fim de ser, consequentemente, preservado, conservado e difundido, ficando sob a responsabilidade de um órgão de tutela seja público ou privado.

Para Motta (2015), pode-se destacar quatro pontos principais sobre o processo de musealização, que, em escalas maiores ou menores, também, são aplicados pelo viés da patrimonialização. Seriam eles: caráter seletivo; caráter transformador; caráter info-comunicacional; caráter de valorização.

Podemos pontuar, ainda, outras semelhanças entre os objetos que são patrimonializados e/ou musealizados:

A) Objetos patrimonializados e musealizados surgem da relação e pelo deslocamento de olhar da realidade pelo sujeito. Acreditamos que a musealidade não pertence unicamente ao processo de musealização, mas,

também, à patrimonialização. Porque “a apropriação de objetos depende

sempre do olho de quem os percebe, seja esse olho individual ou coletivo” (SCHEINER, 2006, p. 41). Em outras palavras, é a relação e o olhar inicial do sujeito, grupo ou membros do Estado que, inicialmente, percebe a importância e as características próprias de alguns objetos em relação ao demais para a sociedade, reivindicando sua proteção e a efetivação como patrimônio.

B) Ambos objetos, sejam eles patrimonializados ou musealizados, são únicos. Únicos no sentido de singularização frente a outros, na medida em que cada objeto possui a sua biografia.

D) Em ambos se busca a preservação, conservação, pesquisa e difusão de suas características materiais e imateriais (representações, evocador de memórias

e afirmador de identidades). E) São uma criação do sujeito, que busca preservá-lo, difundi-lo, e transmiti-lo

para si mesmo, no presente e para o futuro.

F) São uma “construção social” (PRATS, 1998). Acreditamos que o patrimônio,

seja ele instituído pelo viés da patrimonialização ou musealização, não deixa de se apresentar como uma construção, e espelho da própria sociedade. G) Apresentam importante papel cultural, social, político, econômico, turístico

para grupos e sociedades a qual pertencem.

H) Precisam ser reconhecidos, ter “ressonância” (GREENBLATT, 1991) junto a grupos ou sociedade para serem valorizados.

I) Atuam como mediadores de (re) significação simbólica (GONÇALVES, 2007). “Por meio da representação e da interpretação desses construtos simbólicos, permite-se que a informação contida nos bens patrimonializados e musealizados possam se comunicar com a sociedade através do tempo e das especificidades sociais” (MOTTA, 2015, p. 44).

Segundo Lima (2012), um ponto chave de semelhança entre

patrimonialização e musealização, é a sua preocupação da salvaguarda dos objetos, seja material ou imaterial, no presente e futuro, para os diversos grupos sociais e culturais.

Ainda para a autora, a patrimonialização e musealização estão sedimentadas nas ações que envolvem a preservação, conservação, pesquisa, informação, comunicação e transmissão dos diferentes patrimônios (musealizável). Mantêm, ainda, em comum, as suas responsabilidades sociais.

As vertentes das modalidades culturais interpretativas compostas pela Patrimonialização e Musealização integram o perfil dos agentes da ação de responsabilidade social e são legitimadas para zelar por um conjunto de bens, detentor de valor cultural e destinado à transmissão como herança coletiva. Emprestam, ainda, tal sentido para determinar a modelagem das suas finalidades em um roteiro comum. Em síntese, um processo que a dimensão da cultura construiu interligando as formas simbólicas exercidas pela Museologia e pelo Patrimônio (LIMA, 2012, p. 48).

Podemos afirmar que, dentro dessa responsabilidade social da

patrimonialização e musealização, está o papel de garantirem ao patrimônio uma função prática adquirindo novos usos e utilidades. Ao mesmo tempo, espera-se, de

todas as categorias de patrimônio, que os diferentes grupos e públicos vejam os objetos patrimonializados e musealizados, como importantes ferramentas, veículos e mediadores de lazer, conhecimento e aprendizagem. E que ajudem na evocação/preservação de memórias e na construção/consolidação de identidades. Tal reconhecimento pelos grupos permite e garante que os objetos sejam valorizados, como ferramentas indispensáveis na manutenção de suas histórias.

4 O Museu Gruppelli, e o desenvolvimento da pesquisa

Nesta parte do trabalho, disporemos um breve histórico do Museu Gruppelli. Falaremos brevemente de como foi sua criação, bem como das principais atividades que vem desenvolvendo atualmente. Traremos, também, a biografia dos dois objetos centrais de nossa pesquisa, a carroça e a foice. Por fim, apresentaremos os principais resultados e análises obtidas na pesquisa de campo inicialmente proposta em nosso estudo.

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