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CAPÍTULO I – DO CONTEXTO AO TEXTO – CONFIGURAÇÕES DO SÉCULO

CAPÍTULO 3 EM SURDINA: UM CONVITE A „VIVER‟ A VIDA?

3.4. Paulo x Cecília: reflexos de alteridade

A grandeza do homem está em ser ele uma ponte e não um fim. Nietzsche

A atração e a insegurança que os tempos modernos exercem na vida social dos anos trinta são transportadas, em termos simbólicos, para o conjunto da ficção que vimos examinando, sobretudo sobre a personalidade das criaturas ficcionais. Na trama romanesca de Em Surdina, a ficcionista representa esses sentimentos pela ação de um indivíduo sobre o outro. A personagem Paulo transita entre a conservação e a inovação de suas idéias e de suas práticas, o que efetua certa influência sobre os princípios de Cecília.

Conforme Michèle Ansart-Dourlen (2009), a vida psíquica e o conhecimento que o indivíduo tem de si mesmo é alterado pelo contato com o outro. Esclarece ainda que, nessa relação de alteridade, dá-se a formação da identidade e do controle sobre o outro. A dimensão que a alteridade alcança nessa construção do sujeito pode ser exemplificada, na instância narrativa, pela relação estabelecida entre Paulo e Cecília. Esta admirava a liberdade de pensamento que Paulo demonstrava. Ainda Cláudio, sócio de Paulo e irmão de Cecília, cada vez mais se sentia influenciado pelas opiniões do amigo. Como explica o narrador:

entre ambos, cada vez a camaradagem se fazia mais íntima. Cecília, como Cláudio, ia-se deixando dominar pela segurança das opiniões do amigo. Ele lhe dizia:

_ leia Os Sertões; é uma vergonha não conhecer Euclides. Ou:

_ Hoje precisamos ir ao Bar do Leme; andam fazendo lá uns sanduíches de peru, verdadeiramente notáveis.

Imediatamente, ela atirava-se entusiasmada aos Sertões, e devorava beatamente os sanduíches (PEREIRA, 1933, p. 76).

Veja-se que o poder exercido por Paulo se dá desde as instâncias intelectuais até aqueles mais rotineiros costumes da protagonista. Patrícia da Silva

Cardoso (2006) toma nota da possibilidade de interlocução que personagens masculinos, voluntária ou involuntariamente, realizam sobre as protagonistas, jogando com a sedução da vida intelectual e perturbando as suas convicções.

Decorrente da admiração por Paulo, a mudança operada nas práticas de Cecília vai dar lugar, principalmente, a transformações de ordem ideológica. São expressões do condutor da narrativa, ―sobretudo ia aprendendo a raciocinar, a procurar ter uma opinião própria, a ‗estar de acordo consigo mesma‘ (outra expressão de Paulo)‖ (PEREIRA, 1933, p. 76). O uso do parêntese destaca a relevância da ação de Paulo sobre a protagonista que se vê conduzida pelas idéias do outro. Através dos pensamentos de Paulo, Cecília buscava encontrar-se consigo mesma.

Tamanha é a ação de um sobre o outro que Cecília, diante de Paulo, desdobra-se numa condição dual. Ela alberga características próprias do universo masculino, como o racionalismo e o poder em contraponto a uma inocência virginal e de sentimentos. Perante Paulo, deixa sobressair a razão em detrimento da emoção. Assim, escondia dele o seu namoro com o Tenente Veiga, pois, inconscientemente, queria ocultar-lhe a Cecília fútil. Apenas mostrava a ele aquela Cecília que ‗estava acima dessas tolices‘. Diante da intelectualidade do amigo, a personagem central passa a considerar os relacionamentos afetivos como ‗tolices‘. Um discurso paradoxal para uma personagem dotada de tantas características tradicionais. É perceptível que tanto Cecília quanto as outras protagonistas dos romances de Lúcia, assim como a sociedade brasileira, de maneira geral, sentia-se atraída pelas mudanças, mas, criticamente, a narrativa demonstra que algumas mantinham as posturas que lhes dessem prestígios. Daí, a materialização de tão contraditórios discursos.

Sob a visão histórica, é faculdade feminina a preocupação com os afetos. Com base no exame da sociedade carioca da belle époque ao governo de Vargas, a historiadora Rachel Soihet no livro A subversão pelo riso revela a diversidade de comportamento dos dois sexos imposta pela determinação biológica e social. ―Em oposição a uma natureza masculina racional, autoritária, dotada de uma sexualidade sem freios, a mulher era naturalmente recatada, submissa, frágil; nela, as faculdades afetivas predominavam sobre as intelectuais, sendo sua sexualidade subordinada à vocação maternal‖ (SOIHET, 2008, p. 206). Diante do impasse da protagonista, Patrícia da Silva Cardoso infere que,

já se pode adivinhar o tipo de crise que irá se formar neste romance. De um lado, há a expectativa familiar de que a jovem se case, pois afinal é esse o destino de todas as jovens, de outro, a decisão de Cecília por não se casar implica em uma vida de abstinência sexual, uma vez que para ela sexo e casamento são indissociáveis. E, para complicar um pouco mais a situação, há o problema da afetividade, que se explora pela eventual amizade com alguém do sexo masculino, que é despertada por interesses comuns e não necessariamente desdobra-se em amor ou em atração física (CARDOSO, 2006, p. 503).

Travestida de uma roupagem ora distinta ora condizente com aquela exposta pelos compêndios tradicionais, Cecília conclui que seu receio pelo casamento era decorrente da influência das leituras indicadas pelo amigo. ―Eu penso demais... quem pensa não casa... tia Mariana diz que a culpa é de Paulo, e dos livros que ele me dá... será mesmo?‖ (PEREIRA, 1933, p. 98). O questionamento da personagem sugere outros fatores restritivos do matrimônio para uma mulher nesse período. Dentre eles, Cecília receava ter cerceado o seu direito de liberdade intelectual, tão duramente criticado pelos candidatos a marido. Talvez aqui a autora, como era atuante no campo das letras, queira chamar a atenção para a falta de intelectualidade feminina, aspecto que também motiva a escrita dos artigos dessa escritora. Não é difícil deparar com os manuais de história indicando as restrições sofridas pelas mulheres no acesso à educação. Bárbara Heller acusa que ―as mulheres, principalmente as de camadas sociais mais favorecidas, deveriam ser suficientemente alfabetizadas para que pudessem ler o livro de rezas, ensinar as primeiras letras e operações matemáticas aos filhos, como ensinava a cartilha positivista, adotada pelos republicanos brasileiros‖ (HELLER, 2002, p. 248).

Mulher instruída se tornava algo perigoso aos princípios tradicionais. A maioria das mulheres de classe como aquela da protagonista de Em Surdina não chegava a aprender um ofício, apenas a prática da escrita e da leitura, nas escolas de ensino básico. Explica Bárbara Heller que ―ao contrário: temia-se que mulheres letradas pudessem ler romances considerados perigosos à boa conduta e pudessem trocar bilhetes amorosos. A leitura, portanto, deveria ser vigiada e controlada. De preferência, pelo marido, pelo pai ou pela Igreja‖ (HELLER, 2002, p. 248). Na ficção objeto desta exegese, percebe-se que a protagonista rompe com a aceitação desse perfil feminino quando se empenha nas leituras, motivo que, segundo sua família, tornava-a romântica e sonhadora. Ela mesma chega a duvidar de que as leituras pudessem operar as mudanças, conforme citação acima apontada.

A relação com Paulo a fazia achar-se inteligente e livre. A prática da religiosidade é, para ela, uma forma de prisão, no entanto, Paulo afirma ser cristão. Cecília, porém acreditava-se ser superior, um espírito livre, confessa não acreditar nos mitos religiosos, enumerando Cristo entre deuses pagãos. Preocupada com o julgamento do amigo, reflete; ―simples atitude intelectual; no fundo, não estava muito certa de não crer em Deus‖ (PEREIRA, 1933, p. 82). Na nota do narrador, mais uma vez, as palavras evidenciam as suas ambiguidades, pois se Cecília não estava muito certa de não crer, então também não estava muito certa de crer. Vê-se, por mais essa questão, como a narrativa sinaliza as incertezas das tomadas de decisão e a vulnerabilidade das idéias sobre a personalidade de suas criaturas.

Interessante reiterar que, na criação da estética do texto, a narrativa não destoa do clima ideológico do momento, quando vai polindo a verdade no estilo. Internalizando as contradições daquele tempo, Paulo conquista a toda a família com seu equilíbrio. Contudo, embora personalize um sujeito moderno, em que a honra, a virilidade e a força física passaram a representar referências do passado, como apresenta Sócrates Nolasco (2001), Paulo ainda traz as marcas da tradição, ao mesmo tempo em que é a materialização de sua crítica, mormente no que se refere ao papel feminino no campo social. Daí a decepção de Cecília diante da revelação do amigo frente ao casamento, considerá-lo um emprego para a mulher.

Na companhia de Paulo, sentia-se entendida sem precisar explicar. ―Habituou-se a ver nele um esteio seguro, que lhe desmanchava, quase pela simples ação de presença, as dúvidas e os descontentamentos vagos. Via claro em si, quando estava perto dele‖ (PEREIRA, 1933, p. 117). Como constata o narrador, Cecília via em Paulo um esteio. Através dele ela conseguia se entender melhor. Estava acostumada a tê-lo como um ponto de referência. Entretanto, diante da revelação de Paulo de que sua existência também dependia dela, de que ele também precisava de amparo, ‗que sua força lhe vinha um pouco dela, experimentava uma sensação de instabilidade‘. Paulo também reclamava o seu carinho e a sua submissão através do casamento. Nesse intento, as convicções e as personalidades das personagens são moldadas através da dinâmica da alteridade. ―Cada um via o seu eu – e o outro como reflexo. Paulo queria-a para si, para o seu amor. E ela também o queria para si, para a sua amizade‖ (PEREIRA, 1933, p. 150). Porque, para ela, ele era seu guia intelectual, não o queria para seu cônjuge.

Admirava as qualidades de Paulo, prudente, intelectual, trabalhador. Julgava que, quando começasse a trabalhar, seria independente como ele. Teria suas relações, seu modo de vida. As palavras do narrador presentificam o pensamento da personagem.

Inconscientemente, imaginava que seria uma réplica feminina de Paulo; que teria a sua nonchalance, a sua liberdade em julgar pessoas e cousas. Misturava-o a essa vida futura; era mesmo, de todas as pessoas que a rodeavam, a única que tomava parte saliente nesses planos; mas não como um marido possível... talvez, mais tarde, viesse a ser sua mulher... quando passasse a sede de liberdade, e sobretudo quando se pudesse julgar igual a ele, ambos livres, ambos fortes, e se quisessem associar para a vida (PEREIRA, 1933, p. 144).

O longo trecho em destaque ressalta a inquietação que norteia a trama narrativa. Cecília conduz a sua trajetória pela nonchalance, termo em francês que significa ‗indiferença‘, pela liberdade de poder escolher seu destino, independente das regras impostas pela sociedade ou pelos princípios que regiam esse tempo. Essa indiferença a que se refere explica também o anseio da personagem em querer-se independente para após esse estado realizar-se no casamento. No desfecho da estória, a protagonista tem sucumbidas essas idéias e revela, por vezes, ela mesma ter vergonha de sua condição de solteirona, postura ridicularizada pela sociedade de então. Nesse ponto também está a contradição da protagonista que admite almejar a liberdade para buscar sua realização sem o casamento e sem o exercício do sexo. Entretanto, como observa Patrícia da Silva Cardoso, Cecília ―até assume que pode encontrar prazeres fora do casamento, mas não está pronta para arcar com o peso social de tal opção e mascara o temor com o orgulho da pureza‖ (CARDOSO, 2006, p. 504). Pode ser entrevisto também, na reflexão da protagonista, o anseio feminino de ver equivalente a condição entre homem e mulher. Para Cecília, o lugar ocupado pela mulher numa relação de gêneros deveria ser de complementaridade ao homem, não de submissão a ele. Nesse pressuposto, o casamento seria uma realização plena quando ambos fossem iguais. Na condição de não alcançar esse estado, prefere que o orgulho de ser livre se misture à vergonha de se tornar solteirona.

Para Cecília, o casamento de Paulo com outra o deixou um pouco vulgar, com um aspecto menos inteligente, pois passou então a perceber o lugar dado por Paulo

a uma mulher, sua companheira. O casamento restringe a intelectualidade. Mesmo assim, a ausência de Paulo a faz questionar o irmão Cláudio, sócio de Paulo no trabalho, ―como é que você vai se arranjar se ele‖? (PEREIRA, 1933, p. 222). Mas ela queria se referir a ‗nós‘, ou melhor, como desconfia o narrador, ‗como ela iria se arranjar sem ele‘. A influência de Paulo sobre ambos é tão intensa que Cláudio, que já era inconseqüente quando da relação de trabalho com Paulo, envereda-se para caminhos de jogos, fica endividado e entra em decadência em seu trabalho, motivo que o leva ao suicídio. Sem Paulo, Cecília prefere viver sozinha, já aos trinta e poucos anos, sem se casar.Apesar de almejar um modo de vida distinto da protagonista Maria Luísa, apesar de serem publicadas no mesmo ano, a personagem central de Em Surdina parece dar continuidade ao temor aos rompimentos e à aceitação, que mesmo consciente, Maria Luísa optou por seguir. Não em direção oposta, mas através de outros desdobramentos, avançamos para a narrativa publicada em 1938, a obra Amanhecer.

CAPÍTULO IV- AMANHECER- NOVAS ABORDAGENS, MESMOS