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Análise literária e contexto histórico-cultural

III. 1 1 Data e transmissão

III.2. Contexto histórico-cultural

III. 2.1. Império Romano

III. 2.1.3. Pax Romana

Este é o título que recebeu o período em que cessaram as guerras civis romanas e que o Império obteve relativa tranquilidade em suas fronteiras em vista de seu temor da invasão dos bárbaros (29 a.C. a 180 d.C.). Fator alcançado principalmente devido ao estacionamento das legiões romanas em lugares estratégicos do Império e também devido às estradas que permitiam a locomoção das legiões romanas por todo o Mediterrâneo.

Embora tenha ficado conhecida como ―paz romana‖, tal par de termos nos remete à ideologia de imposição de paz pela violência e pela brutalidade, efetuada pelo Império Romano, que chamou assim o massacre e a opressão política e ideológica da população do Mediterrâneo, sem tocar no assunto de que uma verdadeira paz não existiu nem se quer do ponto de vista romano, visto que sempre houve revoltas em algum rincão do extenso território do Império, as quais custaram muitas vidas para ambos os lados.

Klaus Wengst, posicionando-se do lado dos oprimidos, escreveu um breve livro intitulado Pax Romana: Pretensão e realidade (1995), o qual tem como objetivo apresentar a relação do cristianismo primitivo com a pax. Nesse texto sua hermenêutica é metodologicamente questionável, pois coloca todos os textos analisados, um ao lado do outro, a despeito dos gêneros distintos; Wengst Também tem uma visão unilateral do Império Romano, que afirma que toda e qualquer coisa que foi criada pelo Império Romano é má.

Apesar disso, nesse texto, Wengst dedica o último capítulo para apresentar a visão favorável que I Clem tem da pax romana em contrapartida da rejeição que os primeiros cristãos manifestaram, destacando-se a enunciado zombeteiro de Paulo em I Ts 5.3: ―Pois quando disserem: Há paz e segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida e de modo algum escaparão‖.

Wengst destaca, estrategicamente, cinco momentos em que Clemente se associa a

pax. ―Consideremos os soldados a serviço de nossos chefes...‖ (37.1); ―por amor à pátria...‖; ―...que contempla tudo com benefícios‖ (55.5); ―curvar a cerviz e assumir o lugar de obediência‖ (63.1); ―Cada um... no seu compartimento...‖ (41.1). A partir de cada um dos referidas citações de I Clem, utilizadas como subtítulos, Wengst discorre sobre a relação entre

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O último subtítulo da obra de Wengst é profundamente decepcionante, sua narração da relação entre o cristianismo primitivo e a pax romana sofre um declive, pois começa com um ―Jesus-Gandhi‖, passa por um Paulo ambivalente e termina tragicamente com Lucas e Clemente associados ao império e distantes dos pobres. Além disso, seu último parágrafo, ao retomar Harnack e afirmar o mesmo que já havia sido dito há mais de cinqüenta anos antes, Wengst demonstra que seu texto não levou a pesquisa a avançar em nada.

III. 2.1.4. Patronalismo

Na Roma antiga, os laços que envolviam pessoas ricas e pobres libertos em uma relação de reciprocidade desigual era chamada de patronalismo. Instituição nada parecida com a relação entre patrão e funcionário no mundo capitalista, pois, nesse caso, não havia obrigatoriedades de um para com o outro, mas apenas confiança, chamada fides do cliente em relação ao seu patrão, que poderia favorecer o seu cliente ou não, dependendo do seu interesse político, ou interesse de ganhar status, ou apenas para contribuir para a manutenção de uma instituição da qual os homens poderosos faziam parte, às vezes, sem realmente conhecer suas motivações verdadeiras.

Apesar de não sermos ingênuos quanto aos interesses dos patrões ao favorecerem seus clientes, temos que confessar que uma parcela da compreensão dessa instituição do mundo antigo foge à nossa lógica e não podemos entendê-la completamente, pois o interesse, de ambos os lados (pobres querendo favores e ricos querendo destaque) não era a única motivação que movia o patronalismo, havia um denso imaginário por trás dessa estruturação da sociedade que vai além de necessidades e interesses puramente socioeconômicos.

As principais vantagens do protetor eram, a glória e prestigio obtidos pela ostentação de uma numerosa clientela. Esses relacionamentos, buscados e valorizados pelos lados, constituíam um traço cultural profundamente ancorado nas tradições sociais dos romanos (ROUX, 2010, p.79).

O patronalismo também era uma maneira de manter o Império coeso, pois através dele, consequentemente, todos estariam debaixo da autoridade de um patrão que no fim das contas era um representante de Roma. Nas palavras de Paul Veyne:

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Poder social e político: há ainda outra coisa, menor e mais geral, quem possui um nome importante deve estar presente em tudo o que interessa às pessoas e desempenhar um papel honorifico (...) O Império Romano, esse governo indireto, consistia em uma federação de cidades autônomas; todo membro da nobreza, fosse senador ou cavaleiro, devia receber ou merecer o título de uma dessas cidades ou, se possível, de várias (2010, p. 92).

Na relação do patrão com sua clientela e com os superiores que eram alvo de possíveis favorecimentos futuros, havia o chamado ―evergetismo‖; prática na qual os nobres construíam prédios públicos, estatuas honorificas, financiavam espetáculos e banquetes públicos e algumas práticas que hoje chamaríamos de propina, tudo isso como uma espécie de exuberância de seu poder, já que não faz sentido acreditarmos na caridade desses patrões. Paul Veyne afirma que ―o evergetismo não se parece com nada‖, não é a prática maquiavélica que os marxistas insistentemente afirmam, tampouco é algo virtuoso, no entanto é uma arte de brasão, nascida do imaginário da nobreza, uma competição de demonstração de quem pode mais, algo irracional (2010, pp. 109-111).

Pelo lado do cliente as obrigações variavam de acordo com as exigências do patrão, alguns exigiam ser louvados publicamente, receber presentes simbólicos, cumprimentos e saudações de submissão, dentre outros deveres de devoção mais brandos. Era bem comum que os libertos homenageassem seus patrões tomando-lhes o nome de família, e quem não prestava honra ao patrão era tido como ingrato. Como apresentaremos detidamente a baixo (III.2.3.1.), o autor de I Clem parecia fruir de boas relações com seu patrão do qual recebera o nome, de maneira que ordena: ―Respeitemos nossos chefes‖ (21.6).