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3. A forma breve emancipada: Peça em um ato e outras declinações modernas.

3.5. Peça radiofónica.

A brevidade e a abertura formal parecem também condições desejáveis para o casamento do teatro com as novas possibilidades técnicas surgidas no início do século XX, nomeadamente a rádio. Walter Benjamin, que teorizou sobre esta nova relação e foi ele próprio autor de breves peças radiofónicas para crianças, de caráter pedagógico, entre 1929 e 1932 (uma delas sobre o terramoto de Lisboa de 1755), referiu-se ao encontro de um meio que não possuía atrás de si uma época clássica, como o teatro, mas cuja aparelhagem permitia chegar às massas, com os intelectuais e autores que poderiam sustentar a sua forma de apresentação, numa associação íntima ao serviço do ouvinte (Benjamin 2006: 324). Dada a sua técnica “arriscada”, porque desprovida de um passado, o ensaísta coloca as novas possibilidades oferecidas pela rádio do lado de uma visão “progressista” do teatro. No outro pólo, a visão “retrógada”, indiferente à situação de crise que o teatro atravessava, concebendo-se ainda como “obra de arte total” e apoiando-se em “maquinarias complicadas e gigantescos elencos de figurantes”, tentando concorrer com as atrações de massas, como o cinema ou a rádio (ibidem). Uma tentativa vã, segundo Benjamin, que identifica nos novos meios, sustentados por aparatos muito menores, “um lugar para o velho teatro de sombras chinês e para as novas experiências surrealistas (…)” (idem: 325).

Diferente das retransmissões ao vivo de espetáculos, ou das leituras dramatizadas diretamente do estúdio (de adaptações de clássicos ou mesmo de textos integrais e excertos), a peça radiofónica pressupõe uma criação que leve em conta as condições específicas do meio, que não procure enxertar um modelo que lhe é estranho, mas antes se aproprie das novas possibilidadess, ao mesmo tempo que reconhece as novas dificuldades, para realizar uma forma-outra de teatro. E o que primeiro se destaca, num meio como a rádio, é a subtração do visível (da opsis) e a omnipresença da voz e da palavra. “Na origem desse novo género (…) está o desejo de fazer ouvir os textos literários; esta é uma arte da leitura por vozes particularmente radiogénicas” (Pavis 1999: 321). Tal concentração nas propriedades da voz e na emissão do texto atraiu encenadores embrenhados num teatro literário, como Jacques Copeau, para quem o ator, diante do microfone, “reduzido, enfim, à saudável nudez, purificado por esse tête-à-tête com o texto, a única coisa que alimenta sua inteligência e sua sensibilidade (…) deveria encontrar as condições ideais” (apud Pavis 1999: 322).

Enquadradas pelas possibilidades técnicas da rádio – que permitem, por exemplo, através do controlo do volume e da sequência de sons característicos criar uma orientação espaço-temporal que o ouvinte apreende sem dificuldade –, a voz e as palavras contidas na peça radiofónica poderão gerar uma perceção baseada na “alucinação do ouvinte” que terá, ao mesmo tempo, “a sensação de nada ver e de ver, com os ‘olhos da alma’, a cena representada noutro lugar” (Pavis 1999: 323). Essa “alucinação” chegou a criar o pânico quando o caráter ficcional de A Guerra dos Mundos, de Herbert George Wells, na sua adaptação dramatizada para a rádio CBS, por Orson Welles, em 1938, não foi discernido por um grande número de ouvintes que se convenceu da iminência de uma invasão extraterrestre.

A brevidade como característica da peça concebida especificamente para rádio parece recomendada, entre outros aspetos, como os inevitáveis “compromissos comerciais”, pelo facto de “raramente o ouvinte [estar] concentrado na exclusiva escuta da peça. O transístor multiplica os lugares em que o teatro se insinua” (idem: 322). A própria BBC, “frequentemente considerada a melhor rádio do mundo” (idem: 321) e responsável pela produção de milhares de peças radiofónicas desde os anos 1920, tendo ajudado a revelar nomes como Harold Pinter, Caryl Chrchill, Joe Orton ou Tom Stoppard (todos eles autores de breves peças radiofónicas nos anos 1950/1960); a própria BBC recomendava a pequena extensão dos textos para rádio numa série de useful guidelines que divulgou em 1981. Eis uma passagem significativa: “Of all the media, radio can most easily create boredom — and is fatally easy to switch off.” 16

Esta noção da brevidade como característica apropriada à natureza do meio parece estar presente desde as primeiras experiências de escrita para rádio. A peça A Comedy of Danger, de Richard Hughes, que foi “estreada” numa emissão da BBC de 1924 e é tida como uma das pioneiras na tentativa de criar um drama especificamente radiofónico, decorre numa ação de onze páginas onde dialogam personagens encerradas numa mina de carvão irlandesa, havendo uma utilização abundante de efeitos sonoros. Na restante oferta dramática, que além das retransmissões de espetáculos ou da leitura de excertos de obras de maior duração inclui os folhetins ou as soap operas, a opção pela brevidade parece manter-se, como no caso da série inglesa The Archers, que é difundida na BBC, em pequenos episódios de 15 minutos, desde 1951 até ao presente, sendo a mais antiga ficção radiofónica do mundo.

Além da Inglaterra e dos Estados Unidos (onde as peças para rádio foram perdendo popularidade, a partir dos anos 1960, com o desenvolvimento da televisão, esse verdadeiro “rádio a cores”), também na Alemanha se estabeleceu uma forte tradição de teatro radiofónico, inicialmente com o “particular empenho da Rádio do Sudoeste Alemão” (Benjamin 2006: 323). Em diferentes épocas, autores germânicos como Brecht (com os já mencionados dramas didáticos, convenientemente breves e adaptáveis ao suporte), Alfred Döblin, Heinrich Böll, Friedrich Dürrenmatt, Günter Grass ou Peter Handke escreveram as suas peças radiofónicas [Hörspiele] (Pavis 1999: 321). Em Portugal, a aventura do teatro radiofónico, que teve o seu apogeu entre as décadas de 1940 e 1960, poderá ser conhecida através do livro O teatro invisível. História do teatro radiofónico (Página 4), da autoria de Eduardo Street (1934-2006), radialista, sonoplasta e grande dinamizador do teatro radiofónico no País.

Apesar de considerar que o drama radiofónico “hesita em elaborar as suas próprias estratégias”, que necessariamente passarão pelo aprofundamento das suas especificidades e não pela imitação do “verdadeiro teatro”, Patrice Pavis encara-o como género estabelecido e com um futuro promissor: “Quando as pesquisas eletroacústicas se juntam às regras estritas da dramaturgia, por vezes resulta dessa união uma obra muito forte e original (…)” (idem: 323).

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