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A PEDAGOGIA DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA E A QUESTÃO DAS DIFERENÇAS DE GÊNERO

A TEORIA PEDAGÓGICA DO MST E AS QUESTÕES DE GÊNERO: DESVELANDO CONTRADIÇÕES

3.3 A PEDAGOGIA DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA E A QUESTÃO DAS DIFERENÇAS DE GÊNERO

Vemos que a pedagogia da organização coletiva vem sendo afirmada pela experiência da luta do MST a partir da forma como este movimento reflete e interpreta as relações sociais e os fatores que determinam o processo organizativo dos Sem Terra, onde este situa as necessidades econômicas e sociais percebidas e perseguidas pela ação política do MST, o qual vai afirmar a construção da organização coletiva dos sem terra como necessidade da práxis social. E é a necessidade de caráter coletivo que vai instituir a dimensão pedagógica da coletividade.

Percebendo a centralidade que ocupa a pedagogia da organização coletiva interessa- nos refletir como esta pedagogia evidencia as contradições de classe e gênero, e como lida com os pares dialéticos da coletividade e individualidade, igualdade e diferença.

A nossa compreensão é de que os problemas sociais refletem contradições existentes nas relações de produção e reprodução da existência humana. Desse modo, os problemas que as mulheres têm enfrentado na sociedade são produtos históricos que refletem formas organizativas no plano estrutural, no aspecto cultural legitima valores que a percepção organicista significa.

Compreendemos que conceitos como homem, mulher e família são diferentes em cada sociedade. E que as diferenças entre homem e mulher são culturalmente construídas. Essas diferenças se manifestam nos papéis sociais, na identidade sexual, de etnias e classe social. Por isso, o pensamento econômico, político e cultural, têm origem na forma de viver e conceber as relações entre as pessoas, o que incide nos costumes, tradições e modos de vida.

Ao refletir sobre as inferências do modo de produção nas relações sócio-culturais no campo, a concepção que está presente na práxis pedagógica do MST não é a de sujeito passivo e determinado, e sim a percepção de sujeito ativo, transformador. Onde também o próprio Movimento é percebido como sujeito de ação política como instrumento de organização da classe.

No processo de humanização dos sem-terra, e da construção da identidade Sem Terra, o MST vem produzindo um jeito de fazer educação que pode ser chamado de

Pedagogia do Movimento. É do movimento por ter o Sem terra como sujeito educativo e ter o MST como sujeito da intencionalidade pedagógica sobre esta tarefa de fazer educação. E é também do movimento porque se desafia a perceber o movimento do Movimento, a transformar-se transformando. (MST, 2005, p. 201)

Vemos a centralidade que tem as necessidades comuns do acesso e direito a terra e as políticas agrárias (crédito, assistência técnica, comercialização, infraestrutura, saúde educação). É a partir delas é que os/as sem terra se organiza em diversos espaços seja no trabalho, escola, família etc.

Todavia é organização social que incorre a divisão social do trabalho. E neste sentido que cabe indagar sobre a natureza da divisão social e dos processos de gestão social, as condições de inserção dos homens e das mulheres Sem Terra e os papéis sociais que assumem em diversas instâncias, e esferas da organização social.

Tendo uma posição crítica das desigualdades históricas e dos problemas sociais, e intencionando materializar os valores humanistas e socialistas nas relações entre homens e mulheres, a Pedagogia do MST vem revelando que a conformação destas relações apresenta a ligação entre os aspectos entre subjetividade – objetividade do ser, isto é, entre valores e modo organicista, no sentido dialético desta relação e como afirma Fiori (1987 p. 15), no papel ativo do ser social [...] em que o sujeito que experiência, atua na experiência do ato de experienciar, pois as intencionalidades e a percepção histórica são produtos da própria experiência do MST.

De acordo com as formulações do MST vimos que a pedagogia da organização coletiva construída pelo movimento, além de situar o modo operante das relações sociais e da divisão social do trabalho na sociedade torna explícito o que lhe fundamenta e justifica: os interesses comuns dos trabalhadores rurais Sem Terra, e dos camponeses, a gestão coletiva e os valores humanistas e socialistas.

Como sabemos, a organização do trabalho também é parte do modo de produção capitalista. Todavia neste, embora o processo de produção seja coletivo, a propriedade dos meios de produção e a riqueza produzida são apropriadas individualmente pelos capitalistas. Daí que o salário pago aos trabalhadores representa apenas o necessário à reprodução da sua força do trabalho. Os produtores diretos, ou seja, os trabalhadores são destituídos da riqueza que produz, recebendo apenas o necessário a subsistência.

A intencionalidade pedagógica do MST é contribuir com a luta da classe trabalhadora para efetivar mudanças na estrutura econômica e agrária, seja na organização e gestão do trabalho, seja no controle e posse coletiva dos instrumentos e técnicas de produção, no

controle social recursos naturais, construindo uma nova cultura de vida onde a coletividade ganha expressão.

Ao tomar o valor da organização coletiva na vida sócio-política e cultural, esta percepção questiona a propriedade individual da terra e meios de produção do campo e questiona a gestão e as relações autoritárias próprias das instituições da ordem capitalista. Isto significa dizer que para o MST a coletividade se afirma enquanto instrumento político e organizativo que pode ajudar os sem Terra a articular os interesses comuns e acumular força política para a transformação da sociedade.

No entanto, para o MST a construção da identidade e dos interesses coletivos só é possível pela percepção das diferenças entre os não proprietários e os proprietários de terra, entre os que trabalham e os que controlam e regulam o trabalho. Ao mesmo tempo, esta percepção dos interesses comuns também é um fator que pode revelar identificar as desigualdades sociais entre grupos, classes e gênero. Portanto, a construção da coletividade é mediada pela percepção das desigualdades, semelhanças e diferenças.

Neste sentido, concordamos com as discussões de Ademar Bogo (2008) ao referir-se ao processo dialético de percepção das diferenças no mesmo processo de construção da identidade coletiva.

A questão de identidade está primeiramente ligada à categoria dialética ‘unidade dos contrários. Uma coisa não pode existir sem que aja o seu oposto, e somente se chega à verdade quando se consegue encontrar o seu contrário assim como a vida e morte senhor e escravo, burguesia e proletariado etc. (idem, p.27)

Considerando a relação dialética e contraditória das classes sociais no campo é que concordando com Bogo, entendemos que a consciência da necessidade de defender interesses comuns é decorrente da percepção das diferenças e semelhantes de interesses entre indivíduos e grupos que se conformam no território rural.

A diferença de interesses entre os latifundiários dos (as) trabalhadores (as) rurais sem terra é que vai fortalecer a identidade do grupo que vai dar origem ao MST que se constrói quando os Sem Terras identificam os latifundiários como o diferente e com interesses opostos aos seus.

Os trabalhadores rurais ao se reconhecerem como Sem Terras, compreende a necessidade de mudanças tanto na realidade objetiva como nos aspectos subjetivos da sua vida. Neste processo compreendem as diferenças de condições e formas de existência entre eles e os proprietários de terra; entre os homens e mulheres e somente então podem conceber a necessidade de mudar o jeito de trabalhar, viver construindo novas relações sociais, que dê conta de formar o “um novo homem e uma nova mulher”.

A expropriação do território significou a expropriação da cultura, da identidade, dos conhecimentos e dos saberes dos trabalhadores e da população camponesa. Significou também a construção de uma pedagogia de subordinação, controle, e a exploração dos que vivem do trabalho. Essa pedagogia reproduz uma ordem social que impôs o controle do trabalho, do corpo e da vida das mulheres.

Podemos dizer que a Pedagogia do MST vem se contrapor ao seu oposto: a pedagogia que da classe hegemônica a qual expressa enquanto essência uma divisão social e sexual do trabalho que constrói e reproduz a expropriação, exploração e opressão que se impôs sobre as populações do campo.

Os expatriados, desenraizados, explorados e oprimidos, vem negando esta condição e se reconstruindo como sujeitos de uma pedagogia da luta social que objetiva reconstruir as relações sociais alicerçadas nos valores humanistas e socialistas.

Para o MST, a pedagogia dominante no campo foi a que conformou os trabalhadores/as como coisa, máquina, como não visível e contribuiu para expropriá-los do território e da cultura.

Vimos que no MST os princípios pedagógicos assumem orientações em direção a novos propósitos nas formas de viver e se relacionar, intencionando superar as relações de exploração e subordinação, tanto no plano estrutural como no plano cultural da organização de vida dos sem terras.

O MST denuncia alguns hábitos e comportamentos herdados do jeito de se relacionar e viver na sociedade de classe, e propõem ações educativas nas quais os Trabalhadores (as) Sem Terra aprendam a defender seus interesses e expressar suas vontades, e construir com as lutas perspectiva da emancipação humana.

Fazendo uma leitura sobre os documentos compilados no Dossiê MST Escola, vimos como o Movimento foi refletindo a articulação que existe entre a ordem dominada pelo capital e a opressão das mulheres. O texto que segue abaixo foi retirado do documento intitulado O que queremos com as escolas dos assentamentos publicadas em (1991) onde o MST alerta a importância da mudança de hábitos que dificultam a organização e a unidade dos trabalhadores. A escola deve ajudar a construir a nova mulher e o novo homem. Isto só é possível se ajudar a superar os hábitos negativos, como o individualismo, o autoritarismo, a acomodação, a corrupção, o personalismo e todos os ismos que atrapalham o avanço da organização e da luta. (MST, 2005, p. 33)

A referência à cultura patriarcal e machista só será incorporada como uma temática do MST no documento Como fazer a escola que queremos, publicado em (1992).

Democracia. Organização. Trabalho cooperativo. Nova cultura. Tudo isso requer além do esforço coletivo uma mudança pessoal, uma disposição de cada um para viver segundo uma nova ética de comportamento e de relacionamento com as pessoas. Trocar o individualismo pelo espírito de sacrifício, pelo avanço do coletivo. Trocar o autoritarismo pelo diálogo e pelo respeito às decisões do grupo, mesmo quando elas não me favorecem como eu desejaria. Abandonar o machismo e estabelecer o respeito e a solidariedade entre os sexos. (MST, 2005, p. 70)

Vimos que é valorizada nos documentos do MST, a proposição da organização coletiva e da participação política e igualitária de todos os Sem Terra. Neles também encontramos afirmativas que ora destacam a necessidade de novos valores e nova subjetividade, ora reforçam conceitos e tradições que terminam por reforçar papéis sociais onde o homem é colocado como superior à mulher.

[...] constata-se que há duas vias das lutas que atravessam a historia e a vida das mulheres sem terra: a luta pela superação da dominação de classe e gênero, com o acesso a terra e a reforma agrária, pelo fim da discriminação e exploração da mulher que se dá no contexto da sociedade em geral; e a luta no interior da própria classe trabalhadora pela desconstrução dos valores machista, patriarcal e a construção de novos valores nas relações pessoais, sociais e humanas. (OLIVEIRA, 2007, p. 47)

Analisando alguns documentos que tomam parte do Dossiê MST- Escola, constata-se a necessidade de revisar certas afirmativas que terminam por reforçar a cultura androcêntrica. A exemplo do seguinte texto: São os “homens da ação” assumindo o controle do seu processo educativo e passando também a condição de “homens da palavra”. Não seria esta a verdadeira democracia? (MST, 2005, p. 28)

Tal afirmativa destaca a própria percepção da práxis como fruto da ação social dos homens a partir de suas lutas coletivas, trazendo ainda que implicitamente a percepção de que o sujeito coletivo que é o MST organização da qual participam homens e mulheres; o masculino tem a supremacia. Ou seja, no plano cultural, traz um sistema de linguagem que carrega a discriminação do sexo feminino.

A herança de uma estrutura organicista patrimonial e patriarcal deixou marcas profundas e multifacetadas na estrutura produtiva no campo, como também na cultura onde a língua é um dos sistemas ideológicos. Considerando que a linguagem é um produto das relações e da cultura vemos que o que a mesma impõe uma atitude passiva e de submissão feminina ao domínio do masculino.

A linguagem, como instrumento de comunicação constrói culturalmente conceitos que vão determinar comportamentos aceitos e reproduzidos (VYGOTSKY, 1998 apud AMORIM 2009, p.86). As mudanças culturais exigirão transformações profundas na forma de

organização e produção da existência humana e nas formas simbólicas de expressão do pensamento.

No MST também encontramos expressões simbólicas que expressam a valorização tanto do masculino quanto do feminino, que reconhecem a coletividade como o valor que mobiliza e unifica homens e mulheres Sem Terra. Um exemplo disto, é que na bandeira do MST, criada no ano de 1984, aparecem as figuras de um homem e de uma mulher como uma clara alusão de que a luta pela reforma agrária é tanto dos homens quanto das mulheres Sem Terra.

Daí também a importância de que a pedagogia da organização coletiva deva reconhecer e buscar novas práticas sócio-comunicativas e novas elaborações tendo presente que as determinações ideológicas se manifestam também na linguagem que arrasta consigo as determinações e conteúdos de sua gênese.

Uma contradição que o MST tem enfrentado na implementação de seus métodos de organização coletiva é a imposição do Estado da funcionalidade das estruturas formais no moldes do tradicional associativismo enquanto a condição legal para assegurar a regularização do assentamento, o acesso a créditos, e a assistência técnica. Em função disto, o MST mesmo utilizando estas estruturas como forma de acessar as políticas públicas, ele vem buscando inovar na sua organicidade interna, formando as brigadas, núcleos e setores que representam estruturas mais horizontais de organização e propondo a participação equitativa entre homens e mulheres.

Esses diferentes processos organizativos se misturam e ora um sobrepõem o outro, em função do nível de consciência e de organização dos e das Sem Terra, revelando o limite da luta quando fica apenas no campo econômico. O desafio para o Movimento social é avançar nas conquistas construindo uma a autonomia política frente ao Estado e criando condições para ir além dos limites já instituídos às condições de luta, estruturas organizativas, e pautas dos/das trabalhadores/as.

Outra contradição do MST para efetivar a organização coletiva é que no mesmo grupo social existem interesses comuns e individuais que precisam ser considerados. Assim, torna- se um desafio instituir as condições para a manifestação e a negociação de distintas coletividades que, ora se apresentam como demanda comum, e ora se pauta como singularidades e particularidades como, por exemplo, as distintas situações de homens e mulheres e as diferentes necessidades na luta social. Esta é uma tensão presente no cotidiano, pois implica pensar a relação que tem a sociedade com o trabalho e o corpo da mulher e a

forma como está regulada e distribuída, a jornada de trabalho, os instrumentos de trabalho e os resultados da produção.

Por outro lado, na proposta pedagógica do MST, a ambigüidade entre o individual e o coletivo e as distintas coletividades, não necessariamente, têm efeito de anular as individualidades. Ao contrário, pode tanto potencializar o reconhecimento das diferenças, quanto contribuir para relações sociais que não se tornem segmentadas ou onde se anulem as ações solidárias. Pois, acredita-se que é nos espaços da coletividade onde pode se dá um amplo processo de politização e de reconstrução das relações sociais. E em sua Pedagogia, o MST compreende que é participando que se aprende, que é se organizando que se ampliam as forças para empreender as transformações.

CAPÍTULO 4

PERSPECTIVAS EM MOVIMENTO: A NOÇÃO DE PODER E AS