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Pedantismo X criatividade

No documento marciapeterssabino (páginas 45-58)

2 COMPARAÇÕES ENTRE AUGUSTO DOS ANJOS E ALGUNS POETAS

2.1 Pedantismo X criatividade

Uma característica evidente da obra de Augusto dos Anjos é o largo emprego do vocabulário científico e filosófico, que muitos críticos viram como sinal de pedantismo. De fato, se observarmos a correspondência do poeta, perceberemos que ele usa muitos desses termos em contextos de comunicação familiar, o que nos indica que esse era seu vocabulário corrente que, naturalmente, comparece em seus poemas. Na sua correspondência pessoal, em cartas dirigidas à própria mãe, Augusto dos Anjos faz uso de um vocabulário erudito, de uma sintaxe truncada:

Estou lhe escrevendo às pressas, de maneira que se tornam passíveis de tolerância as palavras de que porventura a presente se achar eivada (carta de 8 de março de 1903. In: ANJOS, 1994, p. 680).

Os exames, porém, têm corrido com a irregularidade característica do povo brasileiro, em antagonismo à invejável pontualidade que distingue os filhos da velha Albion (carta de 22 de março de 1903. In: ANJOS, 1994, p. 681). Fez os tradicionais pastéis tão agradáveis à receptividade gustativa dos nossos estômagos? (carta de 27 de dezembro de 1911. In: ANJOS, 1994, p. 732).

Isto posto, se por ventura nada colhermos de lídima vantagem, devido à atual ordem de cousas, falseadas crassamente nas suas premissas de orientação, restar-nos-á ainda, no balanço final do apuramento, um inconteste proveito. [...] Contrapus-lhe, certas razões que a inibiam de, por ora, o fazer, mas, na minha réplica expositiva, guardei o indefectível recato

que deve sempre velar a face das particularidades íntimas (carta de 25 de julho, de 1907. In: ANJOS, 1994, p. 690).

espero, no decorrer desta hebdômada, receber mais algum dinheiro dos outros alunos que adotam o sistema condenabilíssimo de efetuar pagamentos serôdios. Logo que se me depararem nas mãos ou no bolso semelhantes moedas retardatárias, assistir-me-á o cuidado de lhas enviar com toda presteza (carta de 4 de junho de 1908. In: ANJOS, 1994, p. 703).

O poeta também utiliza, em cartas à mãe, conceitos filosóficos e científicos; tal vocabulário também aparece em suas poesias:

Ao escrever-lhe esta, fico pensando sobre a inteireza eterna do nosso afeto particular, afeto tão grande e tão santo, na nobreza inconfundível de sua substância, que não receio absolutamente aquela bruta dilaceração orgânica produzida pelos comentários mutiladores do mundo. [...] Por outro lado, temo incorrer no vício das lamentações românticas e destarte calo as minhas emoções, deixando que elas me comam, à guisa de vermes silenciosos, o sustento da alma (carta de 7 de novembro de 1907. In: ANJOS, 1994, p. 694).

Desejo que sua saúde não sofra alteração de espécie alguma, continuando destarte Vm. a manter-se com a sinergia vital das organizações mais robustas (carta de 12 de outubro de 1910. In: ANJOS, 1994, p. 711).

Perdeu Vm., destarte, um netinho futuro, que pelo desenvolvimento orgânico, já apresentado, viria a ser talvez uma vigorosa representação típica da morfogênese de nossa família (carta de 04 de fevereiro de 1911. In: ANJOS, 1994, p. 719).

Na hipótese de ele não se adaptar bem ao habitat cuiabano deverá regressar a esta cidade (carta de 16 de julho de 1911. In: ANJOS, p. 723).

Desejo que sua febrícula nervosa haja desaparecido por completo, assegurando-lhe destarte a continuidade policelular das energias vitais (carta de 10 de agosto de 1911. In: ANJOS, 1994, p. 725).

Ensina um filósofo sombrio da Germânia, que as verdades fundamentais da Natureza, e alguns acontecimentos efêmeros da vida fenomenal, são revelados, em sonho, pela psiquê de certos espíritos privilegiados. A inscrição da tábua profética, está, pois, realizada (carta de 29 de maio de 1911. In: ANJOS, 1994, p. 721).

Nesse último trecho, especificamente, Augusto dos Anjos revela que considera a si mesmo um espírito privilegiado, capaz de ter sonhos proféticos. Essa excelência que ele enxerga em si mesmo traz, conseqüentemente, um sentimento de superioridade com relação às outras pessoas. Ele revela desprezar tanto o povo quanto os “burgueses”, como podemos

observar nos seguintes trechos de sua correspondência e num verso de circunstância escrito como abertura ao jornal Nonevar de 27 de julho de 1908:

O Maia tem gravatas péssimas, aprazíveis unicamente no gosto burguês (jornal publicado em 3 de fevereiro de 1908. In: ANJOS, 1994, p. 697). Nesta cidade a política e o carnaval, num sentido degradante, ocupam a atenção do público, insuficientemente culto para a verdadeira compreensão dos fins humanos (jornal publicado em 28 de janeiro de 1914. In: ANJOS, 1994, p. 768).

Burgueses! Ante mim, tirai vosso chapéu (Versos de circunstância. In: ANJOS, 1994, p. 500).

Seu pedantismo – e até a intenção de épater le bourgeois – revelou-se, publicamente, em um discurso, lido a 13 de maio de 1909 no Teatro Santa Rosa, em João Pessoa, em comemoração da data abolicionista. Tal discurso teve desastrosa repercussão entre os ouvintes, devido a sua ininteligibilidade; a ocasião era uma festa pública, com entrada franca e bandas de música, constituindo-se uma platéia de cunho popular. O discurso, que durou cerca de uma hora, irritou até mesmo alguns dos amigos de Augusto dos Anjos, que o chamaram de nebuloso, nefelibata e intolerável. Um pequeno trecho desse discurso já nos revela seu elevado grau de afetação:

O escravo é a negação vertebrada do impulso evolutivo que existe ocultamente no fundo de todas as coisas, dando movimentação diuturna ao Universo, esse imenso quadro teleomecânico, na expressão genial de Hartmann, onde o pluralismo dos efeitos é filho direto do singularismo das cuasas, e a atuação assídua dos agentes exteriores, diferenciando a stirpe radiolar primitiva, desomogeniza até as organizações mais estacionárias da plasmodomia haeckeliana!

[...]

De sorte que, pouco a pouco, como que obedecendo a uma fatalidade mecânica de diminuições sucessivas, operadas por um instrumento bizarro de redutibilidade graduada, os elementos psíquicos do escravo vão perdendo o estímulo congênito que eleva o homem acima do pandemônio caótico das predisposições irracionais da espécie e não atende mais à solicitação degenerada da besta ególatra, que dorme, como um velho funcionário permanente, na coesão indispensável de todos os agregados vivos da Natureza (ANJOS, 1994, p. 642-643).

O pedantismo foi um dos maiores defeitos da poesia científica, de acordo com seu críticos, que a acusaram freqüentemente de ser didática. Tal característica pode ser claramente notada, por exemplo, em um poema do Visões de Hoje (1881) de Martins Júnior, no qual encontramos idéias, retiradas da filosofia positivista, que não ganham expressividade poética, mas apenas expressam conhecimentos filosóficos extravagantes, de forma versificada:

Buscando demonstrar pela transformação De uma simples monera a gênese do mundo Orgânico; ensinando o dogma fecundo Do progresso; afirmando a lei da seleção E seu correlativo - a luta na existência! Tentam reconstruir, fiéis à experiência, O vetusto castelo informe do Direito Que precisa de ser, sob outra luz, refeito! Vemos, aqui, - Littré, Spencer, Buckle, Comte; É a filosofia alevantando a fronte.

Ali - Haeckel, Pasteur, Darwin, Lyel, Broca; É a ciência pura e refulgente roca

Que serve à fiação metódica dos fatos

Ou feios como a morte ou belos como os cactos. (apud MAGALHÃES JR., 1977, p. 111)

Primeiramente, há a alusão à teoria de Haeckel, segundo a qual a monera é um organismo rudimentar representante da fase de transição entre o reino vegetal e o animal (Buscando demonstrar pela transformação / De uma simples monera a gênese do mundo / Orgânico). A teoria de Spencer também pode ser entrevista em: ensinando o dogma fecundo / Do progresso; segundo sua teoria, o progresso, universal, é a passagem de um estado de homogeneidade indefinida e incoerente para um estado de heterogeneidade definida e coerente, ou seja, a mudança do geral para o particular. A lei da seleção natural, na qual se baseia a doutrina do transformismo biológico iniciada por Lamarck e desenvolvida posteriormente por Darwin, pode ser notada em: afirmando a lei da seleção / E seu correlativo - a luta na existência; segundo essa lei, através da influência das condições ambientais, alguns seres vivos desenvolvem pequenas variações ou mutações orgânicas, tendo

mais probabilidade de sobreviver na luta pela vida ocorrida devido à tendência de cada espécie multiplicar-se segundo uma progressão geométrica (Malthus); em virtude do principio de hereditariedade, esses seres que sofrem mutações tendem a passar os caracteres acidentais adquiridos aos seus descendentes. O positivismo propõe uma concepção de mundo empírica, concreta, materialista, não-abstrata, naturalista, racional, e adota um método objetivo e descritivo, examinando os fatos, sejam agradáveis ou não, descobrindo suas relações constantes e as expressando na forma de leis causais que permitem prever os fatos futuros; tais idéias são perceptíveis em: fiéis à experiência e É a ciência pura e refulgente roca / Que serve à fiação metódica dos fatos / Ou feios como a morte ou belos como os cactos. Martins Júnior simplesmente lista de forma sucessiva essas teorias, cujo entendimento não é acessível a qualquer leitor, não obtendo com isso efeitos poéticos.

A enumeração contínua de nomes de filósofos e cientistas parece arbitrária e irrelevante. Em outro trecho do mesmo Visões de Hoje de Martins Júnior, há o panegírico ao pai do positivismo e da sociologia, Comte, que neste poema é um ser heróico, que consegue atingir um altíssimo monte, superando e deixando para trás grandes filósofos, oferecendo ao mundo uma nova concepção filosófica:

Mas só Comte

Pôde, estóico, escalar o alevantado monte No píncaro do qual via-se a neve branca Da nova concepção do mundo reta e franca! Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot Newton e Condorcet e Leibiniz – voou

Ele para as alturas mágicas da glória, Após ter arrancado ao pélago da História

A vasta concha azul da ciência Social! (apud LINS, 1967, p. 462)

Embora possamos afirmar que Augusto dos Anjos fosse pedante em suas cartas e discursos, ele conseguiu transformar esta característica em criatividade em suas poesias. Nisso, portanto, ele difere dos outros poetas científicos; na sua poesia há o aproveitamento

criativo do vocabulário técnico, filosófico, científico, incompreensível para a maioria de seus leitores. Podemos afirmar que Augusto dos Anjos incorpora esse vocabulário filosófico- científico, obtendo efeitos poéticos, isto é, utiliza recursos como metáforas, comparações, etc., para tratar de conteúdos científicos, buscando novas relações e imagens. A forte musicalidade de seus versos como que neutraliza a dificuldade provocada pelo uso de idéias e vocábulos filosófico-científicos, permitindo que o estranhamento por eles provocado mantenha-se num nível aceitável, que potencializa os efeitos poéticos produzidos por seus poemas.

Podemos observar o emprego do recurso da rima como produtora de musicalidade, relacionado a um vocabulário técnico, em trechos como: Fator universal do transformismo / Verme – é o seu nome obscuro de batismo (O Deus-Verme, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 209); Rasgue os broncos basaltos negros, cave / A lâmpada aflogística de Davy (O Fim das Coisas, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 357); Dentro dos quais recalco em vão minha ânsia, / toda a imortalidade da Substância! (Revelação II, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 349); Nessa manumissão schopenhaueriana, / Na imanência da Idéia Soberana! (O meu Nirvana, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 310).

A repetição de sons, utilizada igualmente como recuso para a produção de musicalidade, relacionada ao vocabulário filosófico-científico pode ser notada em: Deus resplandecerá dentro da poeira / Como um gazofilácio de diamante! (Ultima Visio, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 327); Os esqueletos desarticulados, / Livres do acre fedor das carnes mortas, / Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas, / Numa dança de números quebrados! (As Cismas do Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 214). Como os vocábulos técnicos são incompreensíveis para a maioria dos leitores, eles adquirem uma conotação encantatória, em que os sons das palavras, sua combinação musical com os versos, seduzem o leitor.

Além disso, a densidade semântica, obtida a partir do uso do vocabulário filosófico- científico, contribui para a eficácia poética.dos versos de Augusto dos Anjos. São vocábulos que tendem à univocidade mas, nos poemas, produzem poderosos efeitos. Podemos citar como exemplos: para indicar a dualidade que angustia o homem, ele usa conceitos filosóficos: o nôumeno e o fenômeno, o alfa e o Omega / Amarguram-te (Homo Infimus, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 332); referindo-se aos filhos, ele os caracteriza como: culminâncias humanas ainda obscuras, / expressões do universo radioativo, / íons emanados do meu próprio Ideal (Aos meus Filhos, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 328); aludindo ao barulho dos ossos de uma prostituta em atividade, utiliza a mesma lei da seleção natural de Darwin, que apareceu no poema de Martins Júnior: É a dor profunda da incapacidade / Que, pela própria hereditariedade / A lei da seleção disfarça em Vício! (A Meretriz, Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 320); ao imaginar a concepção de seres humanos, prevalece uma visão científica: Livres de microscópios e escalpelos, / Dançavam, parodiando saraus cínicos, / Bilhões de centrossomas apolínicos / Na câmara promíscua do vitellus. (As Cismas do Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 212); para referir-se ao vento: A corrente atmosférica mais forte / Zunia. (As Cismas do Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 212); expressando o frio cortante que sentia: A vingança dos mundos astronômicos / enviava à terra extraordinária faca, / Posta em rija adesão de goma laca / Sobre meus elementos anatômicos. (As Cismas do Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 212); para expressar a grandeza de sua dor, que amplia-se a ponto de ser mencionada como a dor de toda uma população e, ao mesmo tempo, para expressar sua apreensão do sofrimento alheio e coletivo: E a saliva daqueles infelizes / Inchava, em minha boca, de tal arte, / que eu, para não cuspir por toda a parte, / Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis! (As Cismas do Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 212); para mencionar a cor da lua: E o luar, da cor de um doente de icterícia (As Cismas do

Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 215); para caracterizar a morte, utiliza a lei da evolução de Spencer, também utilizada por Martins Júnior, invertendo-a: o homem universal de amanhã vença / O homem particular que eu ontem fui! (Último Credo, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 230); ou então a caracteriza usando um vocabulário biológico: A frialdade dos círculos polares, / Em sucessivas atuações nefastas, / Penetrara-lhe os próprios neuroplastas, / Estragara-lhe os centros medulares! (Decadência, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 256); para referir-se à seca: Secara a clorofila das lavouras. (As Cismas do Destino, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 223); caracterizando a vida: Vida, mônada vil, cósmico zero, / Migalha de albumina semifluida (Mistérios de um Fósforo, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 306).

O uso do vocabulário científico poderia circunscrever a validade dos versos do poeta à época em que foram escritos, limitar sua compreensão aos eruditos que conhecem termos científicos e filosóficos, e conceder um tom retórico e afetado aos seus versos. Entretanto, isso não ocorre: Augusto dos Anjos faz um uso criativo desse vocabulário, conferindo, pelo contrário, um alto teor expressivo aos seus versos. A mistura de expressões coloquiais e eruditas, por exemplo, contribui para a anulação desse possível efeito negativo causado pela utilização do cientificismo, criando rimas inusitadas: “Sou uma Sombra! Venho de outras eras, / Do cosmopolitismo das moneras... [...] / Pairando acima dos mundanos tetos, / Não conheço o acidente da Senectus (Monólogo de uma Sombra, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 195); Eu, filho do carbono e do amoníaco, / [...] A influência má dos signos do zodíaco (Psicologia de um Vencido, Eu. In: ANJOS, 1994, p. 203).

Como já mencionamos, ao contrário de Augusto dos Anjos, que faz um uso criativo de conceitos filosóficos e científicos, os poetas científicos apresentam, na maioria das vezes, versos pedantes e afetados. Podemos, novamente, observar essa característica em poemas que tratam de um tema bastante importante para os pensadores do final do século XIX: a

religiosidade, o espiritualismo. Os teóricos da poética científica, alinhados com a doutrina positivista que combatia a posição filosófica de base espiritualista (então a única existente no Brasil), opuseram-se a dogmas e posicionamentos religiosos. Essa escolha filosófica repercute em sua produção poética, como podemos observar nos versos de Visões de Hoje, de Martins Júnior.

Estendem-se no pó do solo os velhos cultos Mitos fenomenais espalham-se insepultos Numa grande extensão de esquálido terreno. O ar é fino e puro; o espaço azul sereno. Júpiter, Jeová, Osiris, Buda, Brahma,

Jazem no escuro chão sob esta lousa - a lama! Como coisas senis, fossilizadas, negras, Amontoam-se além as bolorentas regras Da Bíblia, do Alcorão, do Avesta e Rig-Veda. Trôpegos, sem valor, curvos de queda em queda, Fogem, na treva espessa, Adon, Moloque, Siva, Ormuzd, Vichnu, Ariman, Baalath...

(apud MAGALHÃES JR., 1977, p. 110)

Nesse trecho há a refutação do espiritualismo, da religiosidade, da teologia: são considerados ultrapassados as interpretações do mundo primitivas e ingênuas, os rituais religiosos (estendem-se no pó do solo os velhos cultos / Mitos fenomenais espalham-se insepultos/ [...] Jazem no escuro chão sob esta lousa – a lama! / [...] coisas senis, fossilizadas), e todo tipo de explicação mística do mundo, tais como a mitologia greco- romana (Júpiter), o cristianismo (Jeová; Bíblia; Baalath; Moloque; Adon), o islamismo (Alcorão), a religião egípcia (Osíris), o budismo (Buda), o hinduísmo (Brahma; Rig-Veda; Siva; Vichnu); o masdeísmo ou zoroastrismo (Avesta; Ormuzd; Ariman).

Percebemos que Martins Júnior adota um tom oratório exagerado, que não contribui para destacar o conteúdo, ao afirmar que: Estendem-se no pó do solo os velhos cultos / Mitos fenomenais espalham-se insepultos / Numa grande extensão de esquálido terreno. / [...] Jazem no escuro chão sob esta lousa - a lama! Além disso, quatro de seus versos limitam-se à enumeração de nomes referentes a sistemas religiosos ou místicos de explicação do mundo, o

que confere ao seu poema um tom didático e pedante, não produzindo nenhum efeito no leitor comum, que dificilmente compreende toda essa terminologia sem recorrer a uma enciclopédia (Júpiter, Jeová, Osiris, Buda, Brahma, / [...] Da Bíblia, do Alcorão, do Avesta e Rig-Veda. / [...] Adon, Moloque, Siva, / Ormuzd, Vichnu, Ariman, Baalath...).

O mesmo tipo de vocabulário também surge em Augusto dos Anjos, no poema Agonia de um Filósofo, no qual ele pretende demonstrar o fim iminente da filosofia metafísica e a inutilidade do conhecimento ou da explicação religiosa e mística do mundo, seguindo o pensamento positivista que também influenciou os poetas científicos.

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo... O Inconsciente me assombra e eu nele rolo

Com a eólica fúria do harmatã inquieto! (Eu. In: ANJOS, 1994, p. 201) Contudo, diferentemente de Martins Júnior, Augusto dos Anjos usa somente dois desses vocábulos mais técnicos, neutralizando sua carga pedante. Na primeira estrofe, o eu- lírico recorre, em vão, a sistemas religiosos e místicos na intenção de compreender o cosmos: o Phtah-Hotep, livro egípcio de sabedoria, e o Rig-Veda, o primeiro dos quatro textos em sânscrito que formam a base do sistema de escrituras sagradas do hinduísmo; esses sistemas, entretanto, não trazem explicações satisfatórias (leio o obsoleto / Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo). O poeta usa os termos Phatah-Hotep e Rig-Veda de forma criativa, indo além da citação gratuita, efetuada por Martins Júnior, dessa nomenclatura; ele usa a carga semântica trazida por esses vocábulos para representar a falência da religião como forma de explicação do mundo, o que nos mostra um uso expressivo, e não pedante, de um vocabulário mais técnico.

Tobias Barreto é outro poeta científico em cuja obra refletem-se as polêmicas anti- religiosas e ateístas do final do século XIX. O poema Ignorabimus, cujo título já é revelador, aproxima-se da heterodoxia ao questionar o fulcro do cristianismo: a própria idéia de Cristo.

Inicialmente o eu-lírico afirma que a perspectiva religiosa é ilusória; a realidade do mundo não se mostra de acordo com a crença cristã; conseqüentemente, o homem, conduzido por sua razão, questiona a existência divina, em versos de teor retórico:

Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo E surdo ao brado do Universo inteiro... De dúvidas cruéis prisioneiro,

Tomba por terra o pensamento altivo.

(apud FERNANDES, 1984, <http://www.secrel.com.br/jpoesia/>)

Em seguida, inicia-se o questionamento dos dogmas e ensinamentos da Igreja: se Cristo, Deus encarnado, veio ao mundo para libertar os fiéis, como é possível que a humanidade permaneça prisioneira, que ainda existam as desigualdades sociais, a exploração, a miséria, o sofrimento? A doutrina cristã é, portanto, enganosa e ilusória.

Dizem que Cristo, o filho de Deus vivo, A quem chamam também Deus verdadeiro, Veio o mundo remir do cativeiro!...

E eu vejo o mundo ainda tão cativo!

Se os reis são sempre os reis, se o povo ignaro Não deixou de provar o duro freio

Da travessia e da miséria o trato;

Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio, Se o homem chora e continua escravo, De que foi que Jesus salvar-nos veio?...

(apud FERNANDES, 1984, <http://www.secrel.com.br/jpoesia/>)

Como pudemos perceber, sua poesia adquire um tom didático, pois ele simplesmente afirma, em forma de versos, idéias unívocas que não possuem grande expressividade e causam pouco impacto no leitor. Seu poema afirma, basicamente, que Cristo falhou em sua missão, pois veio libertar e salvar a humanidade, mas essa continua cativa, desigual e sofredora. Augusto dos Anjos, à semelhança de Tobias Barreto, também irá criticar duramente o cristianismo, questionando não a idéia de Cristo, mas do próprio Deus, de forma muito mais expressiva. O poema O Deus-Verme institui o verme – representante da transformação da

matéria – como um novo Deus para a visão de mundo científica e materialista, em

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