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Pela “Madrugada” a dentro: possíveis encontros homoafetivos

3. CAIO FERNANDO ABREU: UM GAÚCHO DE FRONTEIRAS

3.1 O estilo urbano de Caio Fernando Abreu

3.1.2 O entre-lugar das relações homoafetivas em “Aqueles dois”, “Uma história

3.1.2.3 Pela “Madrugada” a dentro: possíveis encontros homoafetivos

O conto “Madrugada” está inserido no livro Inventário do ir-remediável, que ganhou o prêmio da União Brasileira de Escritores em 1969, sendo publicado no ano seguinte, com o título Inventário do irremediável. Vinte e cinco anos depois, em 1995, Caio Fernando Abreu reeditou o livro e, praticamente, reescreveu todos os contos, além de alterar o título inicial para Inventário do ir-remediável, que, segundo o autor, passou “da fatalidade daquele irremediável (algo melancólico e sem saída) para ir-

remediável (um trajeto que pode ser consultado?)” (ABREU, 2005a, 357, grifos do autor). É esta última versão, definitiva, que faz parte da coletânea Caio 3D: o essencial

da década de 1970, que abrange a produção de Caio F. entre 1970 e 1979.

Publicado na década de 1970, o conto “Madrugada”, assim como outros contos de Caio F., é de uma atualidade surpreendente. O conto é narrado em terceira pessoa e trata-se do encontro (homo)afetivo entre dois desconhecidos até aquele exato

momento em que se encontram, embriagados, em um bar. Seres caminhantes e solitários dentro da noite, os dois homens se reconhecem um no outro através de um processo de identificação mútuo pelo olhar, tão logo um deles entra no bar e vê o outro, sentado, em uma mesa, sozinho, bebendo cerveja. Novamente, não há, inicialmente, palavras entre os dois, apenas gestos e olhares, que são suficientes para confirmar o reconhecimento que iria transmutar aqueles dois desconhecidos em amigos, como em “Terça-Feira Gorda”, cuja afetividade irá extrapolar os limites das normas regulatórias de nossa sociedade. Os personagens, emocionados com a descoberta de um amigo com o qual poderia compartilhar, entre outras coisas, seus problemas íntimos, compreendem que finalmente encontraram alguém que não só os compreenderia como os completaria:

Com a lucidez dos embriagados, haviam-se reconhecido desde o primeiro momento. Ou talvez estivessem realmente destinados um ao outro, e mesmo sem o álcool, numa rua repleta saberiam encontrar- se. O fulgor nos olhos e a incerteza intensificada nos passos fora a pergunta de um e a resposta de outro (ABREU, 2005a, p. 109, grifos nossos).

Um dos personagens, o mais alto e forte, com seu um metro e noventa, já se encontrava no bar há cerca de duas horas, bebendo sozinho em sua infelicidade cotidiana. No bar, um ambiente fechado, cujo nome continha a palavra coruja, o personagem fundia-se a ele, seja na cor do terno igual às da parede do fundo, seja em sua postura e gestos, muito próximos ao de uma coruja, pois estava sentado com “os ombros contraídos e olhar verrumante. Olhar que lançou sobre o outro no momento da entrada” no bar (ABREU, 2005a, p. 109-110).

O outro, bêbado, entrou no bar com passos incertos e inseguros até deparar- se com aquele olhar profundo do outro sentado à mesa, que o observava de longe. Até que um acidente os aproxima mais rapidamente. Oscilando de um lado para outro, mal se aguentando em suas pernas, eis que o segundo bêbado, com um dos braços, que se descontrolou, atinge a mesa ao lado, derrubando todos os utensílios que ali estavam depositados. Na mesa, a loira oxigenada, espantada e enfurecida, deu um grito. O acompanhante, “macho pré-histórico protegendo a fêmea em perigo” (ABREU, 2005a, p. 110), levantou-se para pedir explicações ao outro, que estava perdido, inerte em seu ato, sem saber ao certo o que deveria fazer. Nesse exato instante, o primeiro bêbado,

até então diluído no encolhimento de coruja em que se mantinha. Sem

dizer palavra encaminhou-se para o amigo – pois que seus olhares haviam sido tão fundos que dispensavam ritos preparatórios antes de empregar o substantivo – e tomando-o pelo braço, levou para a mesa. O acompanhante da loura acalmou-se de imediato, enquanto esta ficava ainda mais oxigenada no despeito (ABREU, 2005a, p. 110, grifos nossos).

Ambos, bêbados, dividem a sua infelicidade. O primeiro, casado, desconfiava que a mulher o estivesse traindo. O segundo, noivo, também tinha a mesma impressão. Novamente, temos dois personagens que se encaixam em uma matriz heterossexual, um casado, outro noivo. Entre mágoas, tristezas e infelicidades do dia a dia, tornavam-se mais próximos e mais íntimos, ali, naquela mesa de bar. Para os dois, era como se nada além deles existisse naquele momento. O que havia eram as imagens de um diante do outro, simplesmente dois homens, cuja cumplicidade instantânea gerada pelo álcool era contagiante. Além disso, os dois estavam insatisfeitos com o trabalho:

Operários, planejavam greves, piquetes, sindicatos, falaram mal do governo. Um deles, que tinha lido uma frase de Marx num almanaque, citou-a com sucesso. E o engajamento era outro elo a reforçar a

corrente já sólida que os unia. De elo em elo, ligavam-se cada vez mais. A tal ponto que simplesmente não cabiam mais em si mesmos.

Os copos colocavam-se em pé, oscilando como se estivessem em banho-maria, os cabelos despenteados, rostos vermelhos, olhos

chispantes – furiosos e agressivos no diálogo. Nas outras mesas, seres provavelmente frustrados no desencontro farejavam briga e

ergueram as cabeças, espreitando. Não sabiam que, por deficiência de vocabulário, a amizade não raro se descontrola e pode levar ao crime (ABREU, 2005a, p. 110, grifos nossos).

É certo que o elo entre os dois personagens tornava-se cada vez mais intenso e forte à medida que ambos conheciam um pouco mais da vida do outro, suas vivências, suas experiências e os seus ideais políticos, entre outros aspectos. Empolgados em suas descobertas sobre uma amizade e uma afetividade que os contagiava. Os dois não perceberam que seus atos e atitudes, sobretudo naquele espaço enclausurador, cuja atmosfera é sugerida no conto, haviam chamado a atenção dos outros homens que também estavam no bar. Essa aproximação entre os dois provoca naqueles outros homens certa indignação com a demonstração pública de afetividade e de amizade entre aqueles dois. Nos demais convivas do bar, verificamos como o álcool pode liberar a agressividade que existe no ser humano: “farejavam briga”. Nesta expressão percebemos a animal agressividade humana que floresce pela frustração “dos que enchiam o bar”, que talvez sentissem nos gestos de amizade entre os dois amigos a falta deste sentimento ou mesmo de amor neles mesmos, como se não fossem felizes os outros dois também não poderiam ser.

Em pleno sábado à noite, já tarde, os diálogos enfurecidos dos outros convivas do bar, os seus gestos e os seus olhares condenatórios vão tornando-se mais fortes e expressivos, levando o dono do bar, com a sutileza daqueles que já estão

acostumados a perceber uma possível briga, e, devido à forte hostilidade no ambiente, solicitar aos dois amigos que se retirem daquele ambiente, para o bem de todos:

Apoiado em seu metro e noventa, um deles quis reagir. Mas o outro, mais fraco e portanto menos heróico e mais realista, advertiu-o da

inconveniência da reação. E olharam ambos os outros desencontrados nas mesas – subitamente encontrados no mesmo ódio – formando uma muralha indignada. O mais alto, menos por situação financeira do que por força, caindo em si fez questão absoluta de pagar todos os gastos. De braço dado, saíram para a madrugada (ABREU, 2005a, p. 111, grifos nossos).

O elo de amizade e de afetividade entre os dois homens bêbados é recriminado, considerado uma atitude ofensiva, em um ambiente no qual reina a frustração e a ausência de diálogo humano e fraterno. Uma atitude considerada um atentado aos ditos “bons costumes”. Enfim, como se essa atitude fosse um crime, havendo a necessidade de punição aos dois. A hostilidade e o ódio dos demais convivas no bar revelam um espaço homofóbico no qual os dois personagens estão inseridos, assim como a indignação dos outros diante da relação daqueles dois homens.

A violência física não ocorre, pois um deles adverte ao outro justamente sobre a inconveniência de reação, tendo em vista, lógico, que estavam bêbados e eram somente dois para lutarem contra vários outros homens, que, embora também estivessem bêbados, obteriam maior vantagem sobre os dois. Se não há violência física, a simbólica se faz presente de modo expressivo, pois ambos são “convidados” a se retirarem do bar, são praticamente expulsos daquele ambiente que, embora hostil, os acolhia em uma noite fria. No entanto, ao demonstrar publicamente uma (homo)afetividade mútua, ao se exporem no espaço público, os dois personagens são

reprimidos, recriminados e isolados do restante do grupo, que queriam uma demonstração de violência e não de amizade.

Após saírem do bar, de braços dados, naquela madrugada fria, não lhes restava muito a fazer, senão se abraçarem e cantarem. Afinal,

Eles não sabiam o que fazer das mãos cheias de amizade e lembranças das mulheres ausentes. Bêbado como estavam, a única solução seria abraçarem-se e cantarem. Foi o que fizeram. Não satisfeitos com os gestos e as palavras, desabotoaram as braguilhas e mijaram em comum numa festa de espuma. Como no poema de Vinícius que não tinham lido nem teriam jamais. Depois calaram e olharam para longe, para além dos sexos nas mãos. Nas bandas do rio, amanhecia (ABREU, 2005a, p. 111, grifos nossos).

Os dois personagens, assim como tantos outros presentes na contística de Caio Fernando Abreu, não são fisicamente representados com traços efeminados ou que denunciem sua orientação sexual. Praticamente todos são homens com atributos físicos muito bem definidos no que se refere aos padrões de masculinidade e virilidade presentes em nossa sociedade. O que os diferencia são seus gestos, suas atitudes, ações, emoções, desejos e afetividades pelo corpo de outro homem. É certo que pode haver amizade entre dois homens sem que haja algum sentimento homoafetivo. No caso desses personagens, ambos estavam bêbados, solitários e frustrados com seus relacionamentos heterossexuais, de modo que é na ambiguidade e nas entrelinhas do texto que percebemos uma possível relação homoafetiva.

É justamente em decorrência dessa atração e da (homo)afetividade, que estabelece um elo entre os dois personagens, que eles são punidos com a expulsão do bar, pois ousaram romper as fronteiras da heteronormatividade em uma época em que a

homossexualidade era extremamente reprimida: o contexto sócio-histórico e cultural da década de 1970, época ainda do regime da ditadura militar no Brasil.

A análise dos contos “Aqueles dois”, “Uma história confusa” e “Madrugada”, exemplares da temática do entre-lugar das relações homoafetivas na contística de Caio Fernando Abreu, revela-nos que em seus contos “o encontro amoroso entre homens dialoga com uma escrita despudoradamente sentimental, [havendo] um

importante questionamento da afetividade no horizonte do masculino” (LOPES, 2002a, p. 37, grifos nossos). Este questionamento de uma amizade e de uma afetividade entre homens coloca justamente em questão os valores, as representações e os discursos sobre sexualidade e gênero que são produzidos e veiculados em nossa sociedade marcada profundamente por uma matriz heterossexual.

Estes paradigmas revelam-nos, de variados modos e em distintas circunstâncias, espaços homofóbicos nos quais os personagens homossexuais, assumidos ou não, ou até mesmo bissexuais, ao explicitarem uma afetividade mais intensa e calorosa por outro homem, são discriminados e rechaçados pelos amigos e colegas de trabalho, pelo chefe, pela sociedade como um todo. Então, por vezes, essa afetividade é reprimida, é negada e tolhida do sujeito que é impedido de se expressar, de se revelar, de amar, de desejar, de estabelecer e de cultivar os laços de homoafetividade. Talvez seja o momento de repensarmos nossos discursos, nossas atitudes e práticas cotidianas em relação àqueles que são considerados “diferentes” por não se encaixarem não somente em uma matriz heterossexual, mas também nos valores ditos hegemônicos e neutros de uma cultura falo e eurocêntrica.

3.1.3 Ritos de iniciação sexual e passagem em “Sargento Garcia” e “Pequeno