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Pensando o papel do artista-pesquisador

1 CAPÍTULO I – Ponto de partida: pistas para começar a viagem

1.2 Pensando o papel do artista-pesquisador

O antropólogo José Jorge de Carvalho (2004), em seu artigo, Metamorfoses das tradições performáticas afro-brasileiras: de patrimônio cultural a indústria de Entretenimento, pontua a necessidade de uma discussão das posturas adotadas pelos pesquisadores frente às comunidades em que vivem os artistas populares. Afirma que todos estes fatores, de certa forma, estão condicionados atualmente pela indústria do entretenimento. Com isso chega-se à discussão em torno da espetacularização das artes populares, na medida em que é também política do Estado brasileiro atual apoiar a indústria cultural e incentivar a exploração comercial dessas formas artísticas tradicionais.

No artigo, Carvalho, fazendo um resumo esquemático de um tema complexo, começa falando do grande esforço moderno em prol do registro do patrimônio cultural da humanidade, na época do imperialismo, sobretudo na segunda metade do século XIX, quando a noção de patrimônio era mundial (ou extranacional): os grandes museus preocupavam-se com os “monumentos da humanidade”, trazidos por grandes expedições científicas, para serem catalogados, arquivados e conservados. Nesse momento o pesquisador se via interessado por tais monumentos, mas sem o comprometimento com o destino das comunidades de onde saíam àqueles documentos. Era a noção de arquivamento e registro que estava sendo executada. Nesse caso, o interesse predominante era o trabalho comparativo, e “desse esforço surgiram as grandes hipóteses sobre as artes performáticas da humanidade como um todo”. (CARVALHO, 2004)

Depois ele nos leva a pensar sobre a relação entre o pesquisador e o artista popular dentro do marco político-ideológico clássico do Estado-Nação. O pesquisador que ia a campo gravar música folclórica imaginava (como Mário de

Andrade ou Carlos Vega), apesar da grande diferença de poder, que os dois sujeitos envolvidos no processo estavam unidos por um pacto nacional. “O pacto que unia (em uma espécie de respeito mútuo imaginado pelo pesquisador) o artista performático popular e o pesquisador era a construção de uma nação futura.” (CARVALHO, 2004). Esse contexto era marcado por um imaginário minimamente eficaz de igualitarismo, expresso numa utopia de nação, o que permitia ao pesquisador sustentar a crença de que seu projeto não era predatório. Ele não se via usurpando a cultura própria do artista popular justamente porque definia seu trabalho como parte do esforço por preservar a memória da nação para o futuro. Assim, se construiu o valor do pesquisador como um servidor público, que como tal, devia um retorno do seu trabalho à sociedade.

Ainda dentro da utopia do Estado-Nação, outro modelo surgiu entre pesquisador e comunidade, que o antropólogo chama de boasiano18. Dentro dessa estrutura de relação, o pesquisador vincula-se a alguma comunidade ou grupo étnico e defende, diante do poder estatal, a dignidade cultural da comunidade pesquisada para que o poder central trate dos seus membros com a justiça que merecem. Com esse ato, o pesquisador sente que cumpriu sua missão por meio de um mecanismo de troca ou “contradom”: procura desenvolver os dons estéticos que recebeu da comunidade na forma de uma defesa de campo específico em que optou por situar-se, qual seja, o das ideias ou da autoridade acadêmica, ele que se vê distanciado do campo da política no sentido estrito do termo. Parece-me ser um pouco por onde configura a prática de Ariano Suassuna, quando como secretário de cultura buscou trazer os fazedores populares para a sua ideia estético-política de arte, o Movimento Armorial, e em suas ações como a criação do Grupo Grial de Dança. Veremos melhor sobre esta prática de Ariano e sua “contribuição” nesta estrutura de Estado-Nação no próximo capítulo quando narro a gênese do grupo.

Outro aspecto importante, criticado por José Jorge de Carvalho, diz respeito a um modelo central de ideologia cultural do Estado-Nação brasileiro. Ele critica a frase clássica do Manifesto Antropológico de Oswald de Andrade: “Só me interessa

18 José Jorge Carvalho chama de boasiano, porque vem do pensamento e prática de Franz Boas na antropologia norte-americana. Boas definia como missão do pesquisador defender e valorizar a cultura daquelas comunidades frente ao Estado, que as desprezava e maltratava em nome de valores eurocêntricos dominantes. Para uma análise dessa vocação boasiana da antropologia, ele indica ver Paul Rabinow (1986).

o que não é meu”. Pensando na relação do artista metropolitano de elite com as comunidades afro-brasileiras ou indígenas, Oswald não questiona os privilégios de classe e de raça do sujeito que pode pronunciá-la. Exemplifica, dizendo que:

Enquanto um coreógrafo do eixo Rio-São Paulo pode “antropofagicamente” apropriar-se de um determinado saber performático de um tambor-de- crioula do Maranhão, por exemplo, nenhum artista desse tambor-de-crioula pode exercer esse mesmo canibalismo cultural sobre um grupo de dança “erudita” que se apresenta no Teatro Municipal do Rio de Janeiro... (CARVALHO, 2004)

Nessa antropofagia (obviamente de mão única), duas classes interligadas celebram mediante símbolos por elas mesmas ditas nacionais, seus privilégios diante dos artistas das comunidades indígenas e afro-brasileiras. Finaliza, pontuando que essa é a atitude de uma elite branca que exige que todas as tradições performáticas afro-brasileiras e indígenas, sagradas ou profanas, estejam à disposição, para satisfazer seus desejos estéticos de consumidor e de performer, como também para tentar resolver a ambivalência e a esquizofrenia política de sua identidade ocidental e do seu eurocentrismo profundo. E levanta um questionamento, que seria o de tentar entender por que subitamente, um setor da classe média branca precisa posar de nativo das tradições populares e, às vezes, até invadir diretamente o espaço expressivo das classes populares em uma tentativa de performar para si mesma que aquela cultura popular lhe pertence. Para tentar responder ele vai discorrer sobre um suposto direito ao espetáculo na era do consumidor como cidadão.

O pertinente texto do antropólogo, que escolhi recortar e colar aqui na narrativa da viagem, me faz pensar muito sobre o panorama dos estudos de cultura popular na contemporaneidade. Não coloco como objetivo aqui encontrar respostas exatas para estes questionamentos, mas considero importante estarmos atentos para este fenômeno crescente, para o papel do pesquisador diante destas tradições e sua responsabilidade, para a espetacularização da cultura popular, para a maneira como a mesma vem sendo sistematizada em universidades e experiências práticas. E digo isto, não para um monitoramento “moral” da vivência com a mesma, mas para pensarmos nos sujeitos que atuam nestes terrenos e seus propósitos ideológicos. Para estabelecer pontes entre os valores e interesses do nosso mundo e os valores e interesses do mundo dos artistas populares de maneira dinâmica e não hierárquica ou colonizadora. Opto em levantar essa problemática contemporânea, porque

encontro relação direta com a ideia de releitura, estilização e identidade cultural, que busco abordar neste trabalho.