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PEQUENA CONCLUSÃO: VEREDAS

No documento Passagens abjetas (páginas 171-175)

102 Esse pensamento encontra-se no texto “O cinema de Guy Debord”.

PEQUENA CONCLUSÃO: VEREDAS

Esta pretensa “conclusão” se enquadraria mais sob a denominação de “caminhos” do que propriamente uma inferência sobre o conjunto de capítulos. Se os próprios argumentos defendidos aqui já incitam a pensar que a sujeira é uma questão de ponto de vista seria contraditório dizer que isso ou aquilo faz parte do imundo de uma forma generalizada. Com G.H., assim como com Ana de “Amor” e o homem de “Desenlance às três da tarde”, personagens dos livros de Clarice Lispector, o in-mundo sobrevém quando uma ordem é estremecida, é posta fora dos padrões, mesmo que a desordem seja dada através de introspecção e desvarios, pois é aí que as personagens “entram no mundo”, se colocam nele a partir de perspectivas do despojamento, da nudez. Ademais, quando deslocamos nosso olhar para o Oriente ou para os povos primitivos, por exemplo, como poderíamos pensar esses “mundos” se eles não têm os mesmos “padrões” da cultura moderna ocidental? É por isso que a relativização tornou-se o caminho mais pertinente nas discussões acerca da sujeira, tanto étnica, quanto higiênica.

Julia Kristeva, como vimos, defende que a abjeção é necessária para que se viva. Ela é pólo de atração e de rejeição. É preciso descartar. Por isso os dejetos corporais, por isso a morte, que é o limite que “já invadiu tudo”, quando já se perdeu tudo. O abjeto não cessa de desafiar, ela diz. Assim, “esos humores, esta impureza, esta mierda, son aquello que la vida apenas soporta, y con esfuerzo. Me encuentro en los límites de mi condición de viviente” (KRISTEVA, 2004, p. 10). Ao transpormos a experiência mística de G.H., a sistematização metropolitana para o descarte de dejetos corporais, ou a força exercida pelo fascismo e pelo nazismo, veremos que essas são condições limítrofes, se entravam em dicotomias inerentes ao abjeto: categorias de dentro e fora, sujo e limpo, sagrado e profano, mesmo e outro. E o cadáver é a expressão máxima, já que sendo a extrapolação do limite da vida, ainda assim há germinação na terra, ou seja, é a vida imbricada na morte.

Morte, podridão, astros, origem, merda: signos que para culturas primitivas estão inseridos numa compreensão totalitária, global. No resgate, por exemplo, de um mito dos povos mexicanos de Huicholes de Jalisco a respeito do firmamento, temos: “Luna salió de su casa de agua para iluminar el cielo. Quiso distribuir sus blancos

destellos en el firmamento, y defecó. Se esparcieron sus heces, piedras brillantes sobre la negrura” (AUSTIN, 1988, p. 77). A cosmogonia, na visão dos povos primitivos, pode ser também escatológica. Entende-se por que então na trajetória do trabalho tem-se o contato com os mitos, que são resgates muito instigantes das culturas ágrafas. Porém, apesar da sensação de incompletude que os mitos nos trazem (sentimo-nos estimulados a saber mais sobre eles, assim como eles próprios destinam- se a mostrar o mundo de uma maneira totalizante), não cabia aqui dar um novo rumo à dissertação àquela altura da entrega e voltar o olhar especificamente às mitologias sem um estudo mais aprofundado das religiões primitivas, das simbologias, dos bestiários. Caberia ler com mais afinco Claude Lévi-Strauss e outros antropólogos que buscaram na cultura ameríndia os códigos dessas civilizações - e isso demanda tempo. A “passagem” por esses conceitos profundos instigou-me a pensar numa futura pesquisa. O ilustrador de Una vieja historia de la mierda (escrito por Alfredo López Austin), o também mexicano Francisco Toledo, possui um riquìssimo acervo de pinturas “alheias ao pudor”, a padrões sociais pré-estabelecidos. Desenvolve uma temática em que os animais e os humanos se identificam por uma série de fatores, que vão desde a copulação (ou o ato sexual) até as dejeções. Seus Cuadernos insomnes são ilustrados a partir da criação e da recriação de mitos. Um belo material escatológico que ficou de fora desta pesquisa pela impossibilidade de captar suas minúcias, de escavar e recordar (usando uma expressão benjaminiana) tudo o que o material pudesse enriquecer este trabalho. Ficará para um próximo estudo.

Por ora, os filmes, as narrativas literárias e os estudos antropológicos que foram contemplados podem ser pensados, cada um à sua maneira, num estremecimento da ordem (tanto psicológica quanto social). Numa cultura onde a exibição é o que dita valores, o olhar não consegue se prender a nada porque tudo é fugaz. Mas não conseguimos escapar do “olho da consciência”, para falar com Bataille, que nos fixa, uma vez que a barbárie não fica alheia a esse olhar nem mesmo quando se age no escuro que indistingue a catástrofe. A barbárie fica indistinta, mas ainda assim nos olha através da consciência. Jean-Luc Godard é quem lembra do cinema em sua abordagem política, onde até mesmo o preto-e-branco dos filmes pode mascarar verdades e ludibriar o espectador. Como ele afirma, o cinema é a indústria da mentira. Porém, o cinema pode ser também um recurso usado para o “desmascaramento” de uma situação social. Glauber Rocha e Rogério Sganzerla são provas contundentes disso, já que, através do cinema e de seus escritos

tornaram nítida uma realidade de fome e de corrupção, muito difícil de ser assumida pelos próprios brasileiros.

Para este momento, as passagens abjetas são vias de desnudamento de padrões. Pretende-se aqui uma nudez que tem a força do desejo, mas também de crueldade, de desmascaramento, como Bataille propõe. A impureza e o hibridismo são abalos de estruturas cristalizadas, e as tensões trazidas à tona devem intuir como uma “contradición tan extraña como admirable” (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 40). A escatologia, aqui, torna-se uma travessia que pretende analisar diversas produções artísticas para chegar a uma abordagem política abrangida pelo fascismo e pelo nazismo. As produções cinematográficas de Pier Paolo Pasolini, assim como os textos de Clarice Lispector, exemplificam esse estranho fascínio exercido pela abjeção e pelo imundo. Muitos artistas ficam fora deste recorte109 - mas pretende-se, assim mesmo, conduzir o leitor a um corredor escuro e passar por sujeiras diversas, canais de esgoto, sangue, corpos fétidos, merda, vômito, violência (que implica incessantemente no erotismo), ratos, subdesenvolvimento. Imagens abjetas que, se contrapostas, conduzem ao estremecimento da ordem, à profanação, e isso nada mais é do que a dialética da história.

109 Entre eles: François Rabelais, Albert Camus, Augusto dos Anjos e Salvador Dali – que optam também por um viés transgressor.

REFERÊNCIAS

No documento Passagens abjetas (páginas 171-175)