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O PERÁRIO PADRÃO EM DIA DE PESCAR

No documento Chico Buarque : musica, povo e Brasil (páginas 55-68)

Existe um sintomático exemplo da abordagem da figura do trabalhador na obra de Chico. Trata-se da música “A voz do dono e o dono da voz” (1981), que conta as agruras de uma voz vitimada pela indústria fonográfica:

“O dono prensa a voz A voz resulta um prato Que gira para todos nós

O dono andava com outras doses A voz era de um dono só

Deus deu ao dono os dentes Deus deu ao dono as nozes Às vozes Deus só deu seu dó”

Aqui, o trabalho do artista não é diferenciado do de nenhum outro trabalhador – e o ponto fundamental de coincidência é a exploração de que ambos são vítimas. À alienação da força de trabalho do operário, oferece o artista como equivalente a exploração que se dá sobre seu principal instrumento, a palavra, a voz. Isto é: do artista também se extrai uma mais-valia. O produto de seu trabalho é a voz num “prato”, seu labor transformado em objeto de consumo, gerador de lucro que não é percebido por ele, o verdadeiro dono da voz.

Curiosamente, uma afirmação de Chico Buarque corrobora a associação de seu trabalho com o do universo fabril. Em uma reportagem sobre o lançamento do álbum

Malandro (que continha a trilha sonora do filme de Ruy Guerra baseado na Ópera do malandro), o compositor afirma: “Não pretendo mais empunhar bandeiras, sou um

artista, um quase operário que precisa trabalhar” – depois do que o texto da reportagem confirma: “Tem razão. É o operário-padrão da música popular brasileira”115.

Operário-padrão ou não, Chico poucas vezes focalizou o trabalhador em seu ambiente de trabalho, em sua ocupação produtiva, preferindo flagrá-lo no seu descanso ou em outras formas de desvio daquele ambiente. “Pedro pedreiro” (1966) está esperando o trem; o operário de “Com açúcar, com afeto” (1967) prefere a boêmia; aquele que afirma que dá “duro toda semana”, em “Bom tempo” (1968), é mostrado em seu dia de vingança, o domingo; o casal de “Primeiro de maio”, um operário e uma

115

tecelã, fazem do feriado e do seu próprio amor um instante e uma atitude de libertação; “Linha de montagem” (1980) refere uma greve, o “dia de pescar” e de “tomar um mé”.

Assim, Chico parece preferir os ambientes marginais ao universo do trabalho, ou seja, aqueles que se ligam a ele, mas não de forma direta. Isso amplia a perspectiva do trabalhador que a obra sugere: ele não é apresentado apenas como força de trabalho, mas também como individualidade lírica, espiritual, metafísica – o interesse maior recairia, assim, sobre o ser humano.

O trabalhador focalizado fora do universo de trabalho se aproxima de uma outra personagem de grande repercussão na obra do compositor e que se relaciona “de viés”116 com aquele universo: o malandro.

A bibliografia sobre a temática da malandragem na arte brasileira já alcançou um patamar considerável. Para Roberto Goto, a exploração do tema indica um interesse social pela figura do malandro:

“No imaginário da sociedade nacional, costuma sintetizar certos atributos considerados específicos ou identificadores dos brasileiros: hospitalidade e malícia, a ginga, a finta, o drible, a manha e o jogo de cintura muito apreciados no futebol e na política, a agilidade e a esperteza no escapar de situações constrangedoras ligadas ao trabalho e à repressão, o ‘jeitinho’ que pacifica contenda, abrevia a solução de problemas, fura filas, supre ou agrava a falta de exercício de uma cidadania efetiva.”117

O pesquisador defende ainda que certo imaginário constrói uma associação entre o malandro e o revolucionário:

“Não sendo irmão de armas do guerrilheiro, o malandro não estaria porém menos ligado aos sonhos da revolução. Ambos carregam, num momento de recuo e contenção dos movimentos coletivos, o carisma da ação individual, do sujeito lutando solitário contra o monstro, o ‘sistema’ devorador, portando a bandeira do avanço social na qualidade de lugares-tenentes das camadas progressistas em suas utopias e imobilizadas em sua ação.”118

116

Essa expressão retoma o jeito de andar do malandro, como é definido na música “A volta do malandro” (1985), de Chico Buarque: “Eis o malandro na praça outra vez / Caminhando na ponta dos pés / Como quem pisa nos corações / Que rolaram dos cabarés / Entre deusas e bofetões / Entre dados e coronéis / Entre parangolés e patrões / O malandro anda assim de viés”.

117

GOTO, Roberto, Malandragem revisitada. Campinas, SP: Pontes, 1988. p. 11.

118

Na obra de Chico Buarque, o malandro aparece desde as primeiras composições, como é o caso de “Malandro quando morre” (1966), em que o samba transcende a própria personagem, tornando-se seu continuador:

“Menino quando morre vira anjo Mulher vira uma flor no céu Pinhos chorando

Malandro quando morre Vira samba”

Mas a marca da malandragem na obra será bem mais profunda, e terá como ponto máximo a peça Ópera do malandro, de 1978, que rendeu um filme dirigido por Ruy Guerra – gerando álbuns com as respectivas trilhas sonoras, o que acrescenta muito ao conjunto das canções que tematizam a malandragem. De personagem, a figura do malandro se transformou em estratégia de sobrevivência artística. Isso ocorreu em função da associação que muitas vezes se estabeleceu entre a figura pública de Chico Buarque e a imagem convencional do malandro. A construção dessa imagem ligava-se diretamente aos insistentes embates do compositor com a censura. A linguagem cifrada (da “fresta”), símbolo da malandragem em tempos de repressão artística, é referida por Caetano Veloso em “Festa imodesta” (1974), gravada por Chico em Sinal fechado: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Que o otário silencia / Toda festa que se dá, ou não se dá”. A identificação chega a ser incorporação quando, para driblar a censura, Chico cria Julinho da Adelaide, seu heterônimo e autor de composições que primam pelo duplo sentido: “Acorda, amor” (1974) e “Jorge Maravilha” (1975). Na primeira, o eu lírico pede que se convoque o ladrão para salvá-lo das garras da polícia (“Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”); na segunda, a identidade do interlocutor (“você”) permite interpretações várias (“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”).

Por fim, uma foto poderia ilustrar a relação a que estamos nos referindo: na contracapa do livro com o texto da peça Ópera do malandro, Chico aparece vestido

exatamente como João Alegre, o malandro da peça119. O texto de uma reportagem sobre a montagem da mesma peça afirmava categoricamente:

“Ao longo de seus 34 anos de vida, Chico Buarque de Holanda tornou-se um dos símbolos vivos da nacionalidade: sambista de primeira, letrista acima de todas as suspeitas, músico em pacto de intimidade constante com toda musa inspiradora. Em suma, um malandro verde-amarelo capaz de todas as proezas e de quem o público, divertido, tudo espera.”120

A associação com o malandro não é de todo desprovida de sentido. Entre os atributos do fazer-canção passava a vigorar a obrigatoriedade da malandragem, abrindo efetivamente uma fresta para a comunicação, então proibida ou perseguida pela censura. Agora, por experiência própria, o artista é malandro. Ambos buscam ludibriar o otário, estabelecido como inimigo comum – que, no caso do artista, tanto pode ser o censor quanto a rendição ao silêncio. Uma outra representação desse inimigo é a ordem estabelecida, como se pode ver em “Hino de Duran” (1979), em que se inclui, entre contraventores de vários matizes, a seguinte personagem:

“Se tu falas muitas palavras sutis Se gostas de senhas, sussurros, ardis A lei tem ouvidos pra te delatar Nas pedras do teu próprio lar”

Trata-se, como se pode perceber logo, daquele que pratica a contravenção ao transgredir a censura com suas “palavras sutis” – cujos efeitos metafóricos, impostos pela mordaça oficial, traduzem-se em “senhas” e “ardis” –, transformando em “sussurros” os gritos proibidos, e logrando com isso ganhar algum terreno diante do autoritarismo silenciador.

As imagens do “operário-padrão” e do “malandro” talvez não tenham sido construídas à revelia do compositor. Mas o que ocorre é que, em sua obra, essas imagens ganham desdobramentos que impedem que sejam confundidas com uma simples identificação direta. Na perspectiva buarqueana, a malandragem – para além de estratégia de luta contra a censura – é o exercício incessante de formas de

119

BUARQUE, Chico, Ópera do malandro. São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1978.

120

ECHEVERRIA, Regina / SANTOS, Joaquim Ferreira dos, “Memórias de uma nação”, in: Revista Veja, nº 517, 2/8/78.

aproximação com o público, de estabelecimento de canais de comunicação. Por isso, essa prática não se restringe aos tempos de ditadura e de censura – época da “linguagem da fresta”, malandra por excelência – mas alcança outras manifestações, igualmente significativas. Uma delas é o circo, cenário privilegiado para demonstrar o amálgama de artista e povo.

MAMBEMBE

A recorrência ao circo parece ter ocupado a atenção do compositor nos anos 1980, década em que ele lançou duas trilhas sonoras diretamente relacionadas ao assunto: a do filme Os saltimbancos trapalhões e a do musical O grande circo místico.

No já citado filme Os saltimbancos trapalhões, estrelado pelo grupo humorístico

Os trapalhões, o enredo partia da peça Os saltimbancos (original italiano de Sérgio

Bardotti e Luiz Henríquez Bacalov) que Chico adaptara no final dos anos 1970. A ação da peça (uma reelaboração do conto “Os músicos de Bremen”, dos Irmãos Grimm) é deslocada para o mundo do circo.

Contudo, a (re)adaptação cinematográfica obedecia a determinações vinculadas à popularidade dos humoristas, notadamente junto ao público infantil, e aos padrões e parâmetros morais que o grupo construíra em sua trajetória televisiva. Como exemplo dessa circunstância, pode-se citar a apoteótica cena final, que funciona como uma apologia da união pacífica entre patrões (representados pelo dono do circo), empregados (inclusive os quatro trapalhões, que rendiam muito dinheiro ao patrão com seu sucesso, sem que recebessem a paga correspondente) e crianças (representantes do público, da platéia tanto do circo quanto do filme – e, por extensão, do povo). Se, na peça, os quatro animais degradados se uniam para lograr uma vitória definitiva sobre donos e patrões, no filme estes últimos são incluídos na grande comunhão que se estabelece (reforçada pelo fundo musical, a canção “Todos juntos”: “Todos juntos somos fortes / Somos flecha e somos arcos / Todos nós no mesmo barco / Não há nada pra temer / – Ao seu lado há um amigo / Que é preciso proteger”).

Vamos nos deter em uma das canções do filme, que destaca justamente o amálgama do artista com o povo. Trata-se de “Na cidade dos artistas” (1981):

“Na cidade Ser artista

É posar sorridente E ver se de repente Sai numa revista É esperar que o orelhão Complete a ligação Confirmando a excursão Que te leve ao Japão Com o teu pianista (...) Na cidade Ser artista É subir na cadeira Engolindo peixeira E empolgar o turista É beber formicida É cuspir labareda É olhar a praça lotando E o chapéu estufando De tanta moeda (...) Ser artista Na cidade É comer um fiapo É vestir um farrapo É ficar à vontade É vagar pela noite É ser um vaga-lume É catar uma guimba É tomar uma pinga É pintar um tapume É não ser quase nada É não ter documento Até que o rapa te pega Te dobra, te amassa E te joga lá dentro”

Aparecem abrigados sob uma mesma condição o artista de praça, capaz de fazer de sua própria miséria um espetáculo (“Engolindo peixeira / E empolgar o turista”), e outras figuras urbanas (“É comer um fiapo / É vestir um farrapo”), cujas vidas são tomadas como exercício de imaginação para sobreviver. Realiza-se dessa forma um amálgama: tanto o artista se coloca como povo, quanto o povo se vê obrigado a agir como artista.

Essa identificação, contudo, possui um travo irônico, que a música define claramente ao estabelecer certas fronteiras entre “Na cidade / Ser artista” e “Ser artista /

Na cidade”. Na primeira estrofe, o universo artístico que serve de referência é aquele instituído pelo mass-media. A preocupação em manter o sorriso para “ver se de repente / sai numa revista” faz pensar em circunstâncias paralelas à atividade artística: os fotógrafos insistentemente à procura de sensacionalismo (os papparazzi), a necessidade de manter-se na mídia. O sorriso, por sua vez, parece injustificado: para confirmar a excursão, o artista recorre ao orelhão, sintoma de uma carência que ele é obrigado a manter sob o disfarce do sorriso de satisfação.

A estrofe seguinte foge desse universo e associa a arte à artimanha da sobrevivência urbana: “É subir na cadeira / Engolindo peixeira”, “É beber formicida / É cuspir labareda”. Essa artimanha esconde o sacrifício, o risco, a miséria, para “empolgar o turista” – realizando, assim, o mesmo papel do sorriso (referido na estrofe anterior) para o artista que quer criar para si a imagem do sucesso.

Finalmente, a terceira estrofe estabelece uma distinção. Se até ali se falava em manifestações de arte, de que participavam os pequenos recursos da sobrevivência cotidiana, agora o “ser artista” se generaliza, atingindo um leque social maior, permitindo a inclusão de todos os que, sem preocupação nenhuma em “ser artista” ou em “empolgar o turista” pretendem apenas sobreviver, e lançam mão de seus subterfúgios: “É comer um fiapo / É vestir um farrapo / É ficar à vontade” etc. Trata-se de um grupo social tão amplo que chega a desaparecer (“É não ser quase nada”) como cidadania (“É não ter documento”), só voltando a ter existência concreta no momento da perseguição policial (“Até que o rapa te pega / Te dobra, te amassa / E te joga lá dentro”).

Um dado da canção vem reforçar o amálgama entre o artista e seus correlatos da vida miserável. O jogar para dentro (do camburão ou da cadeia, já que é uma ação do “rapa”, isto é, da polícia) faz ecoar a ida “ao Japão” do artista da primeira estrofe, na medida em que ambos são mecanismos correlatos de exclusão: o que se abate sobre aquele que quer ser artista, retira-o do mercado nacional, de poucas oportunidades; o que se dá sobre aquele que quer ser qualquer coisa (inclusive artista, se precisar), retira-o da sociedade e o coloca “dentro” – espaço que, para além do camburão ou da cadeia, deve ser entendido como um outro universo, um gueto. Nos dois casos, sobra,

como forma de sobrevivência, os tipos de arte que a cidade põe à disposição: artimanha, subterfúgio, biscate.

Assim, o próprio conceito de arte e de artista se amplia. Se engloba os que sobrevivem às custas das frestas que a vida urbana abre à economia informal, permite, por outro lado, que referir esses sobreviventes também seja uma forma de tratar do próprio universo artístico.

Outra incursão de Chico no universo circense se deu com sua participação no musical O grande circo místico (1983), de Naum Alves de Souza, quando colocou letras nas melodias compostas por Edu Lobo. O espetáculo, montado a partir de sugestões do poema homônimo de Jorge de Lima, conta a história da dinastia do circo Knieps. Em atmosfera de muito misticismo, chega-se, no final, à união entre artista e povo. A sinopse do segundo ato narra assim o fim da epopéia, com o circo nas mãos das gêmeas Marie e Helene, “purificação final da dinastia”:

“Marie e Helene apresentam seus poderes santificados, flutuando no ar sem mais truques circenses, mas com o poder do artista-santo. (...) A idéia do eterno caminhar lado a lado do artista-povo, explode na canção final, numa imagem que se renova através das gerações, num contínuo chegar e partir para estradas, deixando sempre atrás de si, nesse grande circo da vida, a imagem da Arte.”121

O texto, parte do roteiro do musical, foi provavelmente escrito por Naum Alves de Sousa, mas não deixa de ser revelador: a continuidade da arte circense aparece como resultante de uma aliança duradoura com o povo.

Mas talvez em nenhuma canção de Chico essa aproximação fique tão caracterizada quanto em “Mambembe” (1972), composta para o filme Quando o

carnaval chegar, de Cacá Diegues. O enredo do filme aborda um tema aparentado com

o universo circense, ao mostrar a peregrinação de um grupo de artistas, formado pelas personagens interpretadas por Chico e pelas cantoras Maria Bethânia e Nara Leão. A canção mais uma vez tematiza o artista, estabelecendo ligações entre ele e certas figurações de marginalizados:

“No palco, na praça, no circo, num banco de jardim Correndo no escuro, pichado no muro

Você vai saber de mim

121

Mambembe, cigano

Debaixo da ponte, cantando Por baixo da terra, cantando Na boca do povo, cantando

Mendigo, malandro, moleque, molambo, bem ou mal Escravo fugido ou louco varrido

Vou fazer meu festival Mambembe, cigano

Debaixo da ponte, cantando Por baixo da terra, cantando Na boca do povo, cantando

Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu Dormindo na estrada, não é nada, não é nada E esse mundo é todo meu

Mambembe, cigano

Debaixo da ponte, cantando Por baixo da terra, cantando Na boca do povo, cantando”

O mambembe é, de fato, uma referência privilegiada na construção de uma imagem do artista que deseja falar diretamente ao seu povo. A condição de mambembe sugere uma isenção dos vícios da indústria cultural, instituindo uma situação cuja precariedade estabelece uma ligação intrínseca com os miseráveis. Essa precariedade não possui caráter simplesmente econômico, como se o artista se colocasse efetivamente como um miserável; mas ela se dá pela interrupção oficial dos canais de comunicação, obrigando-o a tentar driblar a proibição, “correndo no escuro”.

A busca da comunicação o leva a lugares alternativos (“no palco, na praça, no circo, num banco de jardim”), e a usar canais pouco convencionais (“pichado no muro”). Mas a certeza da comunicação (“você vai saber de mim”) se justifica pela insistência que o refrão incorpora no gerúndio (“cantando”), como um ato que já se realiza no momento de sua enunciação – o que, de fato, ocorre.

Sua inserção na vida social se dá pela via da aproximação com os marginalizados (que também vivem “debaixo da ponte”) e de maneira orgânica (literalmente: “por baixo da terra”), transformando sua arte em uma força vital que busca driblar os canais de impedimento do alcance popular realizando-se subterraneamente. Superados os obstáculos, a comunicação se realiza: o artista e sua arte estão “na boca do povo”. Não apenas porque suas músicas estão sendo cantadas, mas também porque sua situação de oprimido está sendo comentada – o público, interlocutor da

canção, sabe que ele está “correndo no escuro, pichado no muro”122. Aliás, essa situação pode se referir inclusive ao próprio público, o que estabeleceria mais um viés de identidade com o artista.

O primeiro verso da segunda estrofe retoma a figuração dos marginalizados aos quais se associa o artista (“Mendigo, malandro, moleque, molambo”), mas numa seleção metonímica que merece atenção. Estão perfiladas aí algumas categorias sociais, como o “mendigo” e o “malandro”, e outras ainda, mais sutis. De fato, a presença do “moleque” remete a uma idéia de irresponsabilidade associada à criança, ao comportamento infantil, à exclusão do mundo adulto. Já o “molambo” parece referir uma imagem visual das figuras apontadas; mas o malandro típico, muito ao contrário, caracteriza-se exatamente pela vestimenta impecável, e não por farrapos. O que esse “molambo” indica, portanto, é uma degradação de caráter social – uma imagem bem distante daquela que a indústria cultural permite ao artista (que tem que estar sempre disposto a “posar sorridente” para “ver se de repente / sai numa revista”, como já vimos em “A cidade dos artistas”).

O desfile dessas personagens em um mesmo verso sugere estratégias de resistência aos impedimentos de comunicação. A condição de “mendigo” não é afirmação de pobreza, mas registro de uma situação de dificuldade na realização da própria arte. Mas para evitar qualquer olhar piedoso, surgem as imagens do “malandro” (que dribla aquelas dificuldades e escapa, pela tangente, da repressão) e do “moleque” (criança que age, que não se entrega ao controle do seu destino por outrem). O “molambo”, que aparece depois, retoma o mesmo sema do “mendigo”; mas, agora, acrescido das expressões intermediárias (“malandro, moleque”), sugere força moral, e não fraqueza. O mambembe se afirma “escravo”, mas realça uma tentativa de escapar dessa condição (“fugido”); diz-se “louco” (incorporando nesse passo uma impressão generalizada em torno de artistas que escapam da normalidade, das convenções sociais), mas afirma-se “varrido”, o que, de um lado, funciona como confirmação da radicalidade da loucura, e, de outro, sugere comicamente o risco da expulsão, isto é, de ser “varrido” do convívio comum – de qualquer maneira, são ações de exclusão. O

122

Convém lembrar que a capa original do álbum Chico Canta Calabar, posteriormente censurada, trazia o nome da peça – igualmente proibida – pichado em uma parede.

sujeito da canção reage a elas, no entanto, com um projeto afirmado categoricamente: “Vou fazer meu festival”.

A referência ao “festival” aqui está longe de ser casual. É sabido que Chico

No documento Chico Buarque : musica, povo e Brasil (páginas 55-68)