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Dada a enorme aceleração da vida, o espírito e o olhar acostumaram-se a ver de maneira parcial e imprecisa, e todos são

como o viajante que conhece um país e seu povo por um vagão de trem.

Friedrich Nietzsche

Atualmente muitas são as teorias que afirmam que vivemos em uma sociedade de consumo. No entanto, todas as sociedades podem ser denominadas assim já que ninguém consegue viver sem, de alguma forma, consumir. O problema é quando o consumo se transforma em algo compulsivo e desequilibra as relações. Talvez o termo mais apropriado para este tipo de relação seria de sociedade da consumação; ou seja, que se exaure. A concordância com o antropólogo Marshall Sahlins (1968) é inevitável. Vivemos em uma sociedade da escassez, pois, ao contrário do que se convenciona pensar, as sociedades tidas como “primitivas” eram as que viviam em abundância, pois a produção era destinada diretamente para o consumo e a economia era apenas mais uma função e não a estrutura de tais sociedades.

Na sociedade contemporânea o que acontece é justamente o contrário, pois antes de ser uma sociedade de produção/consumo, se organiza como uma sociedade produtora de privilégios. Para Baudrillard,

existe uma relação necessária, sociologicamente definível, entre o privilégio e a penúria. Não pode haver (seja qual for a sociedade) privilégio sem penúria. Ambos se encontram estruturalmente interconexos. Através da respectiva lógica

social, o crescimento define-se, pois, de modo paradoxal, pela

reprodução de uma penúria estrutural. (1991; 66)

Somado a esta questão da formação de privilegiados e excluídos, a contemporaneidade se caracteriza pela mercantilização e a industrialização que provocam um entendimento estrito da prática social do consumo, concentrando-se, prioritariamente, na sua dimensão econômica, estatística e financeira. Morin atenta para tal fato e suas consequências inevitáveis:

O desenvolvimento ininterrupto do complexo técnico- econômico-industrial-capitalista de nossa civilização implica o crescimento ininterrupto das necessidades e dos desejos gerados pelo binômio produção/consumo. Ao mesmo tempo que comporta zonas de pobreza e subconsumo, com a contribuição dos estímulos publicitários e outros, nossa civilização é incitada ao hiperconsumo. (2013; 301).

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É o hiperconsumo, desfrutado plenamente apenas por uma minoria, que também confina em zonas de pobreza, de exclusão e de subconsumo grande parte da população que, sem o poder de compra, e sendo submetida aos estímulos da “onipresença publicitária nas mídias e nos muros das cidades, a valorização de produtos dotados de virtudes ilusórias para o paladar, para a saúde, para a beleza, para a sedução” (idem; 305) acaba intoxicada e sofrendo diretamente as consequências de tal dependência, pois, ao se perceberem impossibilitadas de participar ativamente da “festa” do consumo, as pessoas são impulsionadas a apelar por “soluções” extremas: a prostituição84, o roubo

ou a frustração e a melancolia.

Duas cenas de Ensaio sobre a cegueira são ilustrativas e muito se aproximam da situação de consumo em que vivenciamos. A primeira é o monopólio da comida pelos confinados da ala três e a exigência de alguma coisa, algum objeto, em troca para os demais puderem ter acesso aos mantimentos e depois à imposição das mulheres terem que se prostituir para obter a comida. Tais sequências podem ser interpretadas como um realce das relações que se estabelecem no capitalismo. No sistema de compra e venda, as pessoas têm que conseguir dinheiro para trocar por comida e também têm que vender a força de trabalho tendo que se submeterem a empregos que significam uma violação aos próprios princípios, mas as circunstâncias os obrigam a tal sacrifício para poder sobreviver ou mesmo para poder consumir.

A outra sequência é quando as personagens saem do confinamento e se deparam com as pessoas perdidas na cidade, procurando comida; catando roupas nas ruas; disputando restos encontrados dentro de um supermercado; agindo como mortos-vivos. A analogia com o consumo exacerbado da contemporaneidade produz uma impressão poderosamente real; basta que nos lembremos dos momentos onde o consumismo contemporâneo se realça, como o período natalino e as temporadas de “liquidações” ou, para ser mais atual, a black friday tão em voga. Ainda mais semelhantes às cenas do filme, são as invasões e saques promovidos contra lojas e supermercados que também podem ser percebidas como reflexos da compulsão consumista.

84 Prostituição não apenas restrita ao aspecto sexual, mas também ao realizar outros tipos de trabalhos

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Como crítica a compulsão provocada pelo consumismo, alguns artistas articularam uma performance que explicita a crítica a dependência de grande parte da sociedade ao consumismo. A intervenção denominada de “Cegos”85

foi encenada em algumas cidades, como Paris e São Paulo. Em Natal os participantes, vestindo trajes formais (paletó, gravata, valises, etc.), vendados, completamente cobertos de argila e carregando sacolas (figura 12, p. 120 e figura 13, p. 121), circularam por ruas e adentraram em um dos principais

shoppings da cidade. A reação dos presentes condiz com o que tem sido

afirmado na analogia feita entre o filme Ensaio sobre a cegueira e a contemporaneidade. Mesmo com o estranhamento, o choque, a surpresa e, em alguns casos, a aversão e o medo, provocados pela intervenção, poucas foram as pessoas que conseguiram relacionar o ato com o que eles próprios estavam fazendo, ou seja, estamos tão submersos naquilo que praticamos que sequer temos condições de perceber uma crítica, seja em formato artístico ou não,

85 A encenação foi realizada em Natal, em dezembro de 2013, durante o I Seminário Corpos

Diferenciados na Arte Contemporânea, promovido em uma cooperação entre o Núcleo

Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares/Cruor Arte

Contemporânea/UFRN (Coordenação Prof.ª Nara Salles) e o Laboratório de Práticas Performativas/Desvio Coletivo/USP (Coordenação Prof.º Marcos Bulhões e Prof.º Marcelo Denny).

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quando direcionada diretamente ao nosso estilo de vida. A matéria publicada em um jornal da cidade ouviu alguns transeuntes e os comentários foram variados e cômicos, mas não revelaram a percepção da crítica que o próprio ato suscitava:

Durante mais de duas horas, esses ‘cegos’ passearam

tranquilamente entre pedestres, carros e clientes do centro comercial, sempre perseguidos por um batalhão de fotógrafos e curiosos: “Valha-me!”, disseram uns; “que coisa macabra” disse outro; “isso deve ser uma ação de marketing”, arriscou um terceiro. (Jornal Tribuna do Norte86, edição online do dia 10

de dezembro de 2013).

Outros procuravam interagir, mas sem conseguir compreender o que estava acontecendo:

“É algum protesto?”, perguntavam; “parece Os Cão da

Redinha”87, comparavam. “Não estou entendendo nada!”,

declarou uma senhora baixinho, logo advertida por outro espectador: “Deve ter alguma coisa a ver com consumismo”. O

86 Tribuna do Norte, edição online, disponível em:

http://tribunadonorte.com.br/noticia/performance-invade-shopping-e-critica- consumo/268784.

87 Os Cão da redinha é um tradicional bloco carnavalesco do bairro redinha, na cidade de Natal. Os

participantes são incentivados a entrarem no mangue e se enlamearem. Em seguida desfilam pelas ruas do bairro.

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fato é que foi difícil ficar alheio à performance “Cegos”. (Idem, ibdem).

As pessoas não conseguem atentar para o quanto estamos vivendo

dentro de uma lógica do consumismo. Tal fato talvez aconteça porque estamos impregnados a tal ponto que esse tipo de comportamento se naturaliza, pois coincide com praticamente todos os momentos do cotidiano:

Chegamos ao ponto em que o “consumo” invade toda a vida, em que todas as atividades se encandeiam do mesmo modo combinatório, em que o canal das satisfações se encontra previamente traçado, hora a hora, em que o “envolvimento” é total, inteiramente climatizado, organizado, culturalizado. (BAUDRILLARD, 1991; 19).

A referência para a sociedade que vive do consumo é justamente a felicidade aproximando-se do conceito de salvação, mas é uma felicidade que não se fundamenta em prazeres mais amplos e sim em signos que se distanciam do real e privilegiam o aparente. Para Baudrillard, a superficialidade se transforma em forma de relação social:

A felicidade como fruição total e interior, felicidade independente de signos que poderiam manifestá-la aos olhos dos outros e de nós mesmos, sem necessidade de provas, encontra-se desde já excluída do ideal, de consumo, em que a felicidade surge primeiramente como exigência de igualdade (ou, claro está, de distinção) e deve, em de tal demanda, significar-se sempre a “propósito” de critérios visíveis. (Idem, ibdem; 51).

Como a felicidade, a liberdade também não passa de falácia, de discurso formulado com o intuito de aprisionamento ao consumo.

A liberdade e a soberania do consumidor não passam de mistificação. A mística bem alimentada (e, antes de mais, pelos economistas) da satisfação e da escolha individuais, ponto culminante de uma civilização da “liberdade”, constitui a própria ideologia do sistema industrial, justificando a arbitrariedade e todos os danos coletivos: lixo, poluição, desculturação – de fato, o consumidor é soberano em plena selva de fealdade em cujo seio se lhe impôs a liberdade de escolha. (Idem; 72).

É nesse sentido que podemos perceber a prática do consumo na contemporaneidade como um processo de alienação radical onde a lógica da mercadoria é generalizada e regula, controla e desnaturaliza, não só a felicidade e a liberdade, mas também o trabalho, os produtos materiais, o lazer,

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a sexualidade, as energias não renováveis, o meio ambiente, e, como afirma Baudrillard, a própria cultura está produzindo e perpetuando as relações fundamentadas no consumo: o ser civilizado é exatamente aquele que media suas relações através do consumo e que está submetido a uma coletividade que impõe o que se deve consumir e o que deve ser descartado.

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