• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4: PROPOSTAS DE ANÁLISES

4.1 O fenômeno ―Ai, se eu te pego‖ (TELÓ et al., 2011)

4.1.1 Percepção do pesquisador: “Oh, if I catch you” (DIGGYS; ACIOLY, 2011)

A seguir, com vistas à análise da dimensão textual (FAIRCLOUGH, 2001), as letras de “Ai, se eu te pego” (2011) e sua proposta para a língua inglesa “Oh, if I catch you” (DIGGYS; ACIOLY, 2011):

155

Oh, if I catch you!

Autor: Antônio Diggys e Sharon Acioly, 2011.

Principal: SOM LIVRE (distribuição) / Teló Produções Artísticas (produção)

Animador: Michel Teló

Ai, se eu te pego!

Autor: Michel Teló, A. Medeiros, A. Queiroga, K. Assis Vinagre, M. Ramalho e M. Eduarda, 2011. Principal: SOM LIVRE (distribuição) / Teló Produções Artísticas (produção)

Animador: Michel Teló

Wow Wow

This way you're gonna kill me Oh if I catch you, Oh my God if I catch you

Delicious, delicious This way you're gonna kill me Oh if I catch you Oh my God if I catch you

Saturday at the party Everybody started to dance Then the prettiest girl passes in front of me

I got closer and I started to say

Nossa, nossa Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego

Delícia, delícia Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego

Sábado na balada A galera começou a dançar E passou a menina mais linda Tomei coragem e comecei a falar

De modo aparente, a tradução não traz prejuízo do ponto de vista rítmico151: enquanto em ―nossa‖ o /o/ é aberto, em “wow” o /o/ é fechado, o que produz, em ambos os casos, o efeito de sentido de estar sem palavras para descrever o fenômeno imanente. Na terminologia proposta por Vinay e Darbelnet (1972 apud PYM, 2017), estaríamos diante de um caso de suposta ―correspondência‖. Do ―Princípio Pentatlo‖, temos duas ―notas‖ no texto de partida traduzidas em uma nota mais extensiva na tradução. Ganha-se naturalidade e cantabilidade, ao passo que se onera em ritmo e rima – enquanto a produção do /o/ é aberta no texto de partida, na tradução o /o/ é fechado – o que desagradaria Haroldo de Campos (1972). O sentido é preservado: a euforia diante da imanência.

O segundo verso (―assim você me mata‖) é traduzido por ―this way you‟re gonna kill

me”. Percebe-se que a modificação dos tempos verbais (presente do indicativo em português

e futuro do presente em inglês) não implica mudança de efeito de sentido — podemos pensar que o uso do presente do indicativo, em “Assim você me mata” (2011), exprime como é usual

151Valho-me da categoria ritmo em sua apreciação no senso comum, i.e. relação entre notas fortes e fracas na esfera melódica.

156 na língua portuguesa (e.g. ―Acho que amanhã chove‖), valor de futuro do presente: uma embreagem temporal (BENVENISTE, 2006) que produz o efeito de proximidade de um fato que pode ou não a vir ocorrer futuro ou, no caso de ―assim você me mata‖, uma hipérbole. Torna-se pertinente pensarmos no advérbio ―assim” e sua função de recapitular construções isotópicas referentes à sensualidade e o verbo ―matar” no sentido de exaurir as forças que asseguram o controle do impulso do baixo ventre. Em outras palavras, a tentação à qual o eu lírico é exposto é superior à sua capacidade de controle sobre sua energia sexual. ―Matar”, nesse sentido, possui, na perspectiva semântica de Jakobson (2010), significado diferente do ―tirar a vida‖, como estabelecido no semiótico; i.e.,aponta para outro lugar (o discernimento, os valores, algo que está no íntimo do sujeito – o seu desejo). Entendemos uma tentativa de domesticação (VENUTI, 2010) talvez propiciada pelo desconhecimento das crenças associadas a esse valor na cultura alvo e do emprego discursivo do verbo kill na língua inglesa.

Vale lembrar, de toda forma, a existência, na língua portuguesa, da expressão ―matar do coração‖, e sua ocorrência de forma associada à libido, ou à própria relação sexual, em função do estresse ou da tensão. Ou seja, se na dimensão textual podemos nos deter apenas nas palavras tais quais aparecem no texto, a dimensão discursiva remete, entre outros aspectos, a fatores de intertextualidade e à forma com que elementos existentes em outros textos se presentificam na memória, tanto do produtor, quanto do consumidor desta música. Em termos de classificação, ao adotarmos a proposta de Vinay e Darbelnet (1972 apud PYM, 2017), estaríamos diante de uma modulação, i.e., o tradutor realizou ajustes (escolha de tempo verbal) com vistas à produção do efeito domesticador (VENUTI, 2000) em seu texto. No que se refere ao Princípio Pentatlo (LOW, 2003; 2005), são preservados: cantabilidade, ritmo, rima; são passíveis de questionamento: naturalidade e sentido.

No terceiro verso, chamam-nos atenção as interjeições: ―ai‖ é traduzido por ―oh!” – (o emprego discursivo de ―oh‖ teria, em inglês, valor de ―ai‖ em português?). Na segunda repetição (no terceiro verso) ―Ai, ai, se eu te pego‖ foi traduzido por ―Oh, my God if I catch

you‖. Na poética, ―ai, ai‖ foi traduzido por ―oh, my God‖. Na versão em português, temos um

silêncio – em linguagem musical, pausas funcionam como notas (i.e. dispõem de valor) e, assim como na linguagem poética, o silêncio é importante para a rítmica – e, em inglês, temos sílabas a mais e notas a mais na melodia. Pressupomos que isso não causa deturpações à canção quando comparada à sua versão original, não obstante vale-nos atentar que o uso do

157 sentido, a uma tentativa de domesticação (VENUTI, 2000) que pode estar atrelada à intertextualidade manifesta (FAIRCLOUGH, 2001). Em termos de descrição (VINAY E DARBELNET, 1972 apud PYM, 2017), temos uma tentativa de correspondência nas interjeições e uma adaptação – com vistas a atingir o efeito domesticação do texto – em ―oh,

my God‖. Em termos de tradução da canção (LOW, 2003; 2005), entendemos que se preza

por cantabilidade, ritmo, naturalidade, sentido e mesmo rima.

Já na segunda estrofe, ―delícia‖ – uma maneira pejorativa, talvez grosseira de referir- se ao corpo do outro – é traduzido por “delicious”. O senso comum indica que delicious é um adjetivo utilizado junto a um substantivo componente do campo semântico da alimentação; já no Brasil, o seu uso, dentre outras possibilidades, pode vir a significar insinuação sexual. Vale dizer que, em nosso atual estado de langue (SAUSSURE, 2006), a expressão ―comer‖ pode vir a estar relacionada ao ato sexual. Neste caso, temos uma ―tradução literal‖ (VINAY E DARBELNET, 1972 apud PYM, 2017). Vale a investigação em torno do verbo to eat e seus campos semânticos associados, o que poderia vir a explicar a disparidade em torno do adjetivo delicious. Em relação ao texto de partida, preserva-se a cantabilidade e o ritmo, embora se peque nos outros aspectos, como sentido, naturalidade e rima.

Na terceira estrofe, temos a tradução de ―sábado, na balada‖ por ―saturday, on the

party‖. Não se vê, aparentemente, prejuízo métrico (seis sílabas). Dicionários como Houaiss e

Michaelis definem party como festa, no entanto, party pode ser aceito como balada em seu emprego discursivo – programas de TV, sobretudo reality-shows apimentados usam frequentemente o termo party para referir-se à balada. Já em português, balada e festa encontram-se em relação de sinonímia, mas não possuem o mesmo emprego discursivo. De todo modo, uma tradução literal (VINAY E DARBELNET, 1972 apud PYM, 2017). No que se refere à canção (LOW, 2003; 2005), acusamos que o trecho é cantável, parece soar natural e ser provido de sentido, além de preservar o ritmo e as rimas internas.

No segundo verso da segunda estrofe, ―a galera começou a dançar‖ é traduzido por ―everybody started to dance‖. Não se vê prejuízo métrico (seis sílabas), nem rítmico. Rónai (1987) orienta-nos a não superestimar o dicionário, mas, por via da teimosia, verificamo-los. A maioria dos já citados traz-nos ―everybody‖ como ―todos‖. É possível que o emprego discursivo, em inglês, de ―todos‖, a ―turma‖, a ―galera‖, seja o mesmo (everybody) – o que é linguisticamente muito difícil, posta a inexistência de sinônimos perfeitos -- ou, ainda, outra hipótese que pode ser sustentada consiste na existência de um termo específico para corresponder ao termo ―galera‖. Essa escolha mostra-nos uma tradução literal (VINAY E

158 DARBELNET, 1972 apud PYM, 2017). O número de consoantes presentes na proposta de tradução depõe contra as categorias cantabilidade, ritmo e rima, mas parece preservar a naturalidade e o sentido (LOW, 2003; 2005).

No verso subsequente, ―e passou a menina mais linda‖ é traduzido por ―then the

prettiest girl passes in front of me”. Notemos a topicalização do português (estrutura tópico-

comentário), que algumas teorias dirão tratar-se de uma tendência do português brasileiro e que não é aplicada na tradução, cujo tema, ou informação mais importante, (KOCH, 2007) é

“the prettiest girl‖ e, na versão brasileira, o tema é o verbo (―e passou‖). A tradução, nesse

ponto, preserva a ordem sintática do inglês ―sujeito-verbo-objeto‖ enquanto, no texto de partida, tem-se o deslocamento ―verbo-sujeito‖ – o que Venuti (2000) chamaria de ―domesticação‖. Mais, talvez, que o efeito de sentido (tema como informação dada, rema como informação nova), interessa-nos a maneira como os tradutores trataram a inversão sintática típica do português coloquial no processo de tradução. É provável que tenha como se expressar esse efeito de sentido (muito próximo da fala ordinária) em inglês e que, por algum motivo, não se tenha tido acesso. A esse deslocamento sintático entre o original e a tradução podemos chamar ―modulação‖, se adotarmos a classificação de Vinay e Darbelnet (1972). Tomada como canção (LOW, 2003; 2005), podemos notar prejuízo na cantabilidade decorrente do número de consoantes na tradução, o que implica prejuízos ao ritmo e à rima, muito embora tudo indique que soe natural e que se preserve o sentido.

No último verso, ―tomei coragem e comecei a falar‖ é traduzido por ―I got closer and

started to say‖. Em tradução livre, ―I got closer‖ poderia ser compreendido como ―eu cheguei

perto [dela]‖. Em alguma medida, essa escolha indica mais audácia e ousadia por parte do eu lírico da versão em inglês, talvez uma impressão que tenhamos da cultura-alvo. Enquanto em português toma-se coragem – o que não quer dizer que se realiza a performance --, na versão em inglês a ação é concretizada. Tem-se, aqui, uma tradução literal (VINAY & DARBELNET, 1972 apud PYM, 2017), cujos ônus e bônus em relação ao Princípio Pentatlo (LOW, 2003; 2005) parecem comungar em relação ao verso precedente.

Vale-nos destacar a interdiscursividade (FAIRCLOUGH, 2001) em relação às canções constitutivas do ―sertanejo universitário‖. Para além da autoestima elevada do eu lírico (CAIXETA, 2016), depreendemos, hoje, a heteronorma, o código do amor cortês e a binarização de gêneros versus identidades sexuais, presentes na dimensão textual (―tomei coragem‖, a ―menina mais linda‖). A reificação do corpo (BAUMAN, 2008), sobretudo do corpo feminino, supõe a assimetria de gêneros, tão combatida por teóricos como Butler

159 (2010). Valhamo-nos do princípio: se está no âmbito social, torna-se um discurso, materializa-se no texto de modo constitutivo. Assim, ―Ai, se eu te pego!‖ (2011) e ―Oh, if I

catch you‖ (2012) significam, no limite, a mesma coisa: uma prática discursiva mediada pela

indústria cultural a serviço da naturalização da ideologia hegemônica.

Temos em princípio uma tradução predominantemente literal (VINAY & DALBERNET, 1972 apud PYM, 2017) e domesticadora (VENUTI, 2010) cujas escolhas, pouco criativas e/ou muito previsíveis, parecem tentar produzir o efeito de sentido de ―falante de língua inglesa‖, soar natural, cantável e produzir sentido com vistas a corresponder expectativas da indústria cultural – ou ao skopus da Tradução da Canção (LOW, 2005), i.e: é

cantável, não há alterações rítmicas significativas, ainda que pareça pecar na naturalidade, o

que compromete o sentido. Já no que tange à rima, mesmo o texto de partida parece não apresentar esse tipo de comprometimento.

No que concerne ao arranjo da canção (outro sistema de signos), “Oh, if I catch you‖ (2012) é discretamente mais lenta do que “Ai, se eu te pego‖ (2011). Enquanto esta é executada a 97bpm, aquela é executada a 95bpm. Já a estrutura melódica e harmônica é preservada – inclusive em termos de centro tonal. A tradução para a língua inglesa comporta timbres caros à latina, ou world music e também elementos do dance music. Uma forma de intertextualidade, a incorporação de um estilema (ECO, 1979) entre kitsch de distintos prestígios ou a Transferência de elementos constitutivos de um subsistema (o dance, o pop) polissistema da canção estrangeira num produto desenvolvido no subsistema da canção sertaneja em condições bem específicas (produzido com fins de exportação): de todo modo, existe certa tentativa domesticação à cultura alvo: uma ―cultura global‖. Especificamente, indico que presença do timbre do ukulele, e o andamento do contrabaixo e as marcas da percussão podem vir a situar a canção entre o reggae e o pop – este marcado pelos afinados backing- vocals, ausentes no texto de partida.

Notemos que, nesse sentido, a tradução favorece a domesticação, tornar o novo mais palatável ao grande público-alvo (ou interlocutor). Aprofundamentos maiores requereriam o estudo mais detalhado em torno dos significantes melódicos na partitura da canção, a qual não é disponibilizada pelo ECAD: ao expor a minha necessidade por correio eletrônico, fui informado de que ―o ECAD é responsável apenas pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais de execução pública musical‖.

160 Levantou-se, novamente, como já acusado pela colega da disciplina de Pós-Graduação em 2016, a hipótese da intervenção, ainda que preliminar, de um tradutor automático na proposta de Diggys e Acioly (2011). Vejamos o que o Google Tradutor nos diz:

Figura 15. Tradução automática de ―Ai, se eu te pego‖

Destaco em vermelho as soluções da ferramenta eletrônica não adotadas pelos tradutores. Embora os resultados sejam próximos, a métrica dos versos propostos por Diggys e Acioly (2011) eles se distinguem em métrica em relação à sugestão do tradutor automático. Se assumirmos que a mudança métrica implicará mudança melódica, conforme propõe Low (2005), as decisões dos tradutores brasileiros parecem sensatas152. Algumas decisões conduzem-nos a pensar na tentativa de inscrição doméstica (e.g. gonna em vez de going to e

this way em vez de that way). De todo modo, veremos (cf. 4.6.1 infra) que estes não são o

centro nevrálgico dos ―estranhamentos‖, o que pode nos indicar que, em grande parte, os tradutores foram competentes.

Há de se considerar, na esteira de Meschonnic (2006) que o sentido e a forma constituem um todo indissociável153, a marca da subjetividade na linguagem. Do ponto de

152

Pesa-nos a dúvida: ―não teriam os tradutores a proposta do tradutor automático como base inicial?‖. Pym (2017), ao tratar do Paradigma da Localização, considera legítimo o uso de tradutores automáticos quando precedem a pós-revisão. Se lembrarmos de Deleuze & Guattari (2008), no entanto, seremos levados a um lugar onde ―um marcador gramatical é mais um marcador de poder do que um marcador linguístico‖. Ora, no mundo líquido, admitir não fluência em uma língua estrangeira confere ao enunciador a exposição de sua face negativa (cf. Maingueneau, 2004), certa nuance de ignorância ou mesmo falta de educação, o que envolve uma dimensão de risco na configuração de ethos.

161 vista da canção e suas particularidades, sugerimos que nesta tradução tenha se preservado, por fim, o significante melódico em detrimento do significante linguístico – trata-se a canção de um sincretismo. Vale dizer, ainda, que Pym (2017) indica a legitimidade do uso de tradutores automáticos prévios à pós-edição; ocorre, entretanto, que, em função de fatores próprios ao gênero ou próprios às limitações do manuseio associativo no eixo sintagmático por parte de um não-nativo possa ter implicado escolhas comprometedoras.

Vejamos, a seguir, uma possível análise a propósito da versão do texto de partida para a língua espanhola.

Documentos relacionados