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2. OS MODOS DE ENUNCIAÇÃO

2.2. A noção de ethos: entre a retórica clássica e a AD

2.2.1. A percepção retórica da noção de ethos

É inegável para AD a contribuição das reflexões embrionárias sobre ethos que foram feitas por estudiosos da Grécia antiga, tais como Aristóteles, Sócrates, Cícero, Quintiliano, entre outros. Há, sem dúvida, muita originalidade na percepção desses antigos gregos sobre a argumentação retórica. Originalidade que legou ideias-força aos estudos enunciativo- discursivos contemporâneos, de acordo com Maingueneau (2008b). Na mesma direção, Galinari (2012, p. 53) afirma que “diversos pesquisadores têm procurado [...] (re)introduzir o conceito de ethos no âmbito da Análise Argumentativa do Discurso, num retornar constante às origens antigas”. Portanto, vê-se a necessidade de compreender as atuais percepções da especificidade do ethos em AD a partir de sua concepção pela retórica antiga, tributando a esta o crédito devido.

No “chão” conceitual da retórica antiga, o ethos não possuía uma única acepção. Seu valor era resultado de investimentos variados. Em retórica, em moral, em política, em música, as fronteiras de tal noção não englobavam as mesmas extensões. Entretanto, o centro irradiador das investidas sobre o ethos retórico conformava-se com a atribuição de certas características de ordem psicológica e sociológica à figura do orador, enquanto fonte do acontecimento enunciativo (DECLERCQ apud MAINGUENEAU, 2008b, p. 57). Neste contexto, o ethos era entendido como emissão da imagem positiva do orador elaborada por meio de traços linguísticos e paralinguísticos. Assim, a emergência da imagem da fonte enunciativa pela palavra proferida se efetivava como uma garantia simbólica para persuasão imediata do auditório (GALINARI, 2012).

Sob os parâmetros conceituais de sua época, Aristóteles desenvolve sua noção de

ethos registrada em suas obras Retórica, Política e Ética a Nicômano. Para este autor grego, de modo particular, o ethos está associado a um modo de dizer condicionado explicitamente por uma tecnè argumentativa cuja finalidade é a persuasão por meio de ethé aceitos como constitutivos do caráter do orador (MAINGUENEAU, 2008b). Nessa visão, destaca-se a vinculação do ethos apenas ao resultado da enunciação retórica, não considerando, de modo algum, aspectos prévios da configuração do ethos, apoiados em estereótipos sociais (GALINARI, 2012).

A característica fundamental da visão aristotélica é a restrição do conceito a uma cena enunciativa particular: a cena oratória, “a oralidade em situação de fala pública” (MAINGUENEAU, 2011, p. 17), visão que se apoia explicitamente em um ethos engendrado

na e pela enunciação “no presente de sua ocorrência” (GALINARI, 2012, p. 57). Esta concepção é categorizada pela base linguística atual ou como “ethos discursivo” ou como “ethos presente”, nas recentes classificações. A perspectiva de Aristóteles interessava-se, portanto, pelo ethos em uma única cena enunciativa em função do tratamento técnico que se voltava à arte do convencimento e da persuasão.

Constata-se que, no ângulo restrito da cena oratória, a funcionalidade do ethos, enquanto techné, repousa na escolha de recursos de ordem verbal e não verbal para causar uma boa impressão capaz de convencer dado agrupamento de indivíduos. No quadro geral da persuasão retórica, a construção da imagem do orador que se apresentava a dado auditório só era efetivada por meio da associação do ethos a outros dois elementos constitutivos desta cena comunicativa: o logos (argumentação) e o pathos (paixões). Essa percepção da emergência articulada do ethos retórico é atestada por Auchlin (2001, p. 92 apud MAINGUENEAU, 2008b, p. 57) nos seguintes termos:

[...] o ethos se constrói na base de dois mecanismos de tratamento distintos, um que repousa na decodificação linguística e no tratamento diferencial dos enunciados, o outro, no reagrupamento de fatos em sintomas [...] que mobiliza recursos cognitivos na ordem da empatia (AUCHLIN, 2001, p. 92 apud MAINGUENEAU, 2008b, p. 57).

Esquematicamente, pode-se afirmar que a configuração da imagem de si pela palavra proferida era sustentada pela tríade ethos, logos e pathos. No esquema retórico, o primeiro elemento poderia ser aceito, de acordo com Aristóteles (1998 apud GALINARI, 2012), como a prova mais importante da persuasão. Sob esta tutela, a apresentação do orador ao seu auditório poderia dispensar raciocínios argumentativos mais elaborados em função de um

ethos eficiente que fosse edificado sob qualidades fundamentais para persuadir, produzindo uma imagem positiva de si mesmo: a phrónesis (prudência), areté (virtude) e a eúnoia (benevolência) (GALINARI, 2012; MAINGUENEAU, 2008b). Entretanto, é importante salientar que a representação éthica do orador não seria possível se não fosse engendrada simultaneamente pelo logos e se não estivesse relacionada às expectativas emocionais da própria audiência. Vinculado ao presente da enunciação e à sugestão de certa identidade, o

ethos retórico, nos moldes de Aristóteles, visava essencialmente à impressão de um efeito de confiabilidade. Ou seja, a conjugação das qualidades que o orador deveria apresentar ao proferir a palavra se constituiria como um andaime para o acesso a “uma figuração subjetiva dotada de estatutos intelectuais e morais [dignos de fé]” (GALINARI, 2012, p. 53).

Diante da exposição das condições persuasivas necessárias à eficácia da cena oratória, observa-se que por meio da elaboração desta cena já se atribuía valor à noção da instância enunciativa, mesmo que diferente dos termos da AD. Assim, no esquema retórico antigo, tal instância, de modo evidente, já se apresentava como imbricação irredutível entre o sujeito enunciador e o sujeito enunciatário, que se tornam presentes na linguagem. Nas palavras de Discini (2011, p. 33), “para a imagem do enunciador [tem-se] o ethos; para a imagem do leitor, o pathos”. Como se pode observar, a retórica antiga, de modo embrionário, delineava certas dimensões da subjetividade enunciativa, através do engendramento da persona na palavra.

Ao ser apreendido pelos gregos antigos como elemento de uma engrenagem comunicativo-argumentativa, o ethos, juntamente como o logos e o pathos, deveria gerar determinadas modalidades de adesão à palavra dos oradores: “adesão a teses („fazer-crer‟), a ações ou comportamentos („fazer-fazer‟) e a emoções („fazer sentir‟)” (GALINARI, 2012, p. 52). A adesão, objetivo geral da ação retórica, resultaria de um processo interativo de influência sobre o outro, fundamentalmente ligado à conjuntura sócio-histórica. Neste sentido, essas modalidades de adesão poderiam ser consideradas como alinhadas aos processos mais amplos da legitimação e da eficácia das práticas discursivas no tecido social, mesmo que, à época de Aristóteles, não fossem associadas diretamente a um espaço de regularidades enunciativas como é postulada atualmente a noção de discurso.

De modo geral, verifica-se que a percepção teórico-retórica do ethos é restritiva a uma situação de comunicação específica, não sendo desenvolvida em outras modalidades situacionais de comunicação além daquela que pressupõe a apresentação imediata de si perante um auditório na tentativa de persuadi-lo. O ethos da retórica é circunscrito à oralidade com intuito de convencer uma plateia que partilha os mesmos valores. Pode-se dizer que o

ethos proposto na Retórica se vincula a um dispositivo comunicacional específico em função das condições midiológicas da Grécia antiga, haja vista que o modo de manifestação material dos discursos nesta época não era o mesmo que o da contemporaneidade. Posto isto, pode-se afirmar com Maingueneau (2008b, p 63) que “não vivemos no mundo da retórica antiga, e a fala não é mais governada pelos mesmos dispositivos”. A noção do ethos retórico, portanto, constituía-se como uma tradução da reflexividade enunciativa manifesta em determinada sociedade, a qual se apoiava em midiuns e gêneros textuais quantitativa e qualitativamente diferenciados dos que são desenvolvidos nas práticas discursivas que circulam na sociedade atual.

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