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Percursos filosóficos em PDCS: a evidência de Espinosa

3. Perto do coração selvagem: a perspectiva da afetividade

3.3 Percursos filosóficos em PDCS: a evidência de Espinosa

A favor da abordagem teórica eleita para este trabalho, é por fim interessante notar, como fechamento do capítulo, que Espinosa aparece diretamente referenciado em

PDCS. O autor é aludido em uma de suas concepções do estudo dos afetos: a doutrina

do paralelismo corpo-alma.

Para retomar a ideia, trata-se da crítica à noção da separação entre as duas entidades e toda a visão moral dela decorrente. O filósofo inova ao propor que o que é paixão na alma é paixão no corpo (extensão); o que é ação na alma é ação no corpo. A alma não sofreria com determinados comportamentos corporais e vice-versa, mas ambas as dimensões afetariam e seriam afetadas em consonância. Quando Otávio está trabalhando em seu livro sobre Direito Civil, ele resgata o filósofo:

Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na ideia por exemplo de que não pode haver pensamento sem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara da forma pura dos anjos de S. Tomaz. Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela transformação na natureza. (LISPECTOR, 1998, p.123)

“Não pode haver pensamento sem extensão”: daí decorre, por exemplo, que Joana tenha afirmado ser “tão corpo que foi puro espírito” quando experimenta

sentimentos amorosos por Otávio; ou mesmo a imagem supracitada da própria náusea psíquico-fisiológica (vômito). A seguir, no romance, Otávio inclusive manifesta sua intenção de citar um excerto de Espinosa no topo de seu estudo: “Os corpos se distinguem um dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância” (LISPECTOR, 1998, p.124).

As passagens acima, instigantes, não apenas corroboram a possibilidade de uma abordagem dos afetos em Perto do coração selvagem (visto que subentendem que Clarice era leitora de Espinosa e que extraía alguma “matéria-prima” de sua obra), mas também apontam para outras interessantes e potenciais perspectivas de pesquisa.

A fortuna crítica dos trabalhos de Clarice, inclusive, conta com diversos apontamentos sobre a influência do filósofo. Gabriela Guimarães Gazzinelli, com seu ensaio “Uma leitura espinozista de Perto do coração selvagem”, é um exemplar intrigante dessa abordagem. A autora defende a forte hipótese de que o referido romance inaugural não seria uma obra de fluxo de consciência, como muitos atestam, mas nada menos do que “um romance de intuições metafísicas espinozistas” (GAZZINELLI, 2015, p.33).

Para além do viés afetivo, Gazzinelli enfatiza que os personagens refletem as modalidades do conhecimento abordadas por Espinosa na Ética: conhecimento sensível, razão e intuição: “Enquanto Otávio manifesta uma compreensão sensível e limitada do mundo, ainda que procure atingir um conhecimento racional”, afirma, “Joana parece alcançar uma compreensão real das coisas, seja por rasgos intuitivos, seja por raciocínios abstratos”. (Ibidem, 2015, p.33)

A autora ainda alude a uma consciência metafísica (de fato marcadamente presente) no livro, expressa nas convicções de Joana relacionadas à crença da substância una espinosana. Essa necessidade das “leis naturais” estaria representada desde episódios da infância da protagonista:

Desde a infância de Joana, diferentes disposições sinalizam tal tomada de consciência: a indiferenciação entre pessoas, animais, plantas, objetos, coerente com a crença em um pampsiquismo; a valorização da natureza, também compreendida cosmicamente; a percepção da unidade de um universo que é feito de uma mesma substância divina; e o consolo encontrado na ideia de um Deus impessoal e de um mundo regido por leis naturais. (GAZZINELLI, 2015, p.33)

Alinhada com a perspectiva desta pesquisa, Gazzinelli também menciona o que há de Espinosa no que tange às convicções morais de Joana, resgatando sua intuição precoce de que não existe tal coisa como bem e mal, certo e errado, numa deterioração da hierarquia dos valores sociais. De forma bastante pontual, a teórica aponta que a protagonista de PDCS pertence a um “universo em que todos os fatos são necessários, regidos por leis naturais. A adesão a essa moral permiti-lhe alcançar um estado de felicidade e alegria, preterindo o sofrimento”. Assim, “Joana pode ser tomada como exemplar da bem-aventurança resultante da compreensão metafísica da realidade de uma perspectiva da eternidade (...)”. (GAZZINELLI, 2015, p.33)

A aceitação de todos os fatos como necessários e naturais enquanto meio para se alcançar a bem-aventurança pode ser aferida como um parelelo do sujeito ideal espinosano na ótica dos afetos, em consonância com a minha hipótese acerca de Joana nesta pesquisa. Poderíamos afirmar, então, que Joana seria uma heroína espinosana? A questão foge à investigação central aqui proposta, mas prossegue prenhe de possibilidades. Ao meu ver, de todo modo, uma dose especial de cautela se faz imprescindível nesse tipo de análise: há uma significativa diferença entre o que podemos chamar de aproximação e pura transposição teórico-literária.

Tal cautela também parece evidente no trabalho de Gazzinelli, que afirma que, embora Clarice demonstre solidez em sua compreensão do sistema filosófico de Espinosa, PDCS

não precede a uma mera transposição da Ética para o âmbito ficcional a fim de ilustrar conceitos filosóficos. Trata-se antes de um laboratório literário, em que Clarice experimenta com os possíveis desdobramentos – psicológicos, morais e epistemológicos – da adesão de Joana a esse sistema de crenças. A ênfase na interioridade e o interesse psicológico no âmbito individual, por exemplo, são aspectos não contemplados na Ética, dadas suas preocupações metafísicas universais. (GAZZINELLI, 2015, p.34)

Aliando referências explícitas e implícitas a Espinosa, o romance de estreia de Lispector corrobora o caráter sintético das obras posteriores (frequentemente imbuídas de teor filosófico e da própria abordagem espinosana), ao mesmo tempo em que se aproxima das inclassificáveis problemáticas universais e permanece coerente com suas particularidades estéticas e temáticas. À parte as incansáveis aproximações, abordagens e análises, trata-se, enfim, de uma literatura que persiste detentora de um inconfundível senso de autenticidade.