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Peregrinatio ad loca infecta

Peregrinatio ad loca infecta

Feliz o servo, diz São Lucas, que o Senhor, quando vier, encontrar em vigília. Em verdade vos digo Ele o investirá de todos os bens. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo153

A primeira novidade do judaísmo, no contexto ocidental, antes mesmo do estabelecimento moisaico do monoteísmo, é a criação de uma divindade ausente do mundo. Deus criou as coisas e o Homem, mas não se encontra diluído na imanência. É esta idiossincrasia o motivo pelo qual os judeus apresentam o tempo não como repetição de ciclos, mas como história, lugar da revelação de Deus. Para os habitantes das sociedades tradicionais154 não existem acontecimentos, isto é, unidades de tempo com um sentido autónomo, tudo se integra numa contínua iteração de ciclos que decalcam um modelo trans-histórico e mítico. Sobre este assunto Mircea Eliade afirma o seguinte:

(...) o homem das civilizações tradicionais (...) [tinha] uma atitude negativa em relação à história. Quer a abolisse periodicamente, quer a desvalorizasse atribuindo-lhe sempre modelos e arquétipos trans-históricos, quer ainda lhe atribuísse um sentido meta-histótico (teoria cíclica, significações escatológicas, etc.), o homem das civilizações tradicionais não atribuía ao acontecimento um valor em si, isto é, não o via como uma categoria específica do seu próprio

modo de existência.155

Pelo contrário, no judaísmo, é no tempo, essa concatenação de passado, presente e futuro, que a vontade de Deus se expressa: cada acontecimento é irreversível e possui um sentido inalienável. Para o povo do êxodo, tudo conta per se. A cada novo acontecimento, a revelação adensa-se, o sentido aumenta; logo, o Homem é obrigado a conceber o tempo não como uma interminável perpetuação de ciclos, mas sim como uma realidade linear que tem um princípio, um desenvolvimento e um fim que coincide com a redenção.

Ao inventar a história, os descendentes de Abraão afirmam a criação como algo etimologicamente imperfeito, ou seja, incompleto, pois cada novo indivíduo, cada novo acontecimento é uma adenda à obra de Deus. Deste ponto de vista, o Homem ganha uma dignidade individual sem qualquer tipo de paralelo entre as sociedades humanas, uma vez que cada um de nós é uma manifestação da vontade do Alto; porém, é

153 Kempis, Thomas, A Imitação de Cristo, Lisboa, Editorial Estampa, 1991, p.47.

154 Utilizo aqui o termo de Mircea Eliade em O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000. 155 Eliade, Op. Cit., p.153.

importante não esquecer que os judeus se conceberam enquanto povo eleito, tendo sido o cristianismo a universalizar esta concepção de história e de dignidade humana. Para esta religião, o sentido da história não radica na salvação post-mortem do fim dos tempos, já aconteceu na Encarnação de Deus em Jesus. Para os cristãos, o mistério do tempo está revelado, ainda que este não esteja consumado. O homem, em Directa, afirma algo que ilustra exemplarmente esta questão:

Cristo tinha dito: «JÁ». Os Grandes Inquisidores sorriam e diziam: «Daqui a X anos». (...) tal como eu, tal como todos quantos tentávamos agir na História – corríamos sempre em nome de um «daqui a X anos». (Dir, p.256)

Para os crentes na ressurreição, a realidade temporal tem um carácter duplo. Por um lado, o tempo não possui quaisquer segredos, uma vez que estes foram iluminados pelo percurso de Cristo, por outro lado, há ainda que viver recordando que a salvação final só virá para os fiéis que tomarem Jesus como seu modelo ontológico.

Esta breve explicação do modelo histórico de matriz judaico-cristã não ficaria devidamente realizada se não fossem discutidos dois conceitos: a liberdade e o desespero. Num contexto temporal tradicional, ou seja, mítico e repetitivo, os indivíduos repetem gestos e actos arquetípicos que reproduzem um modelo passado in illo tempore, ou seja, a sua liberdade está cerceada. O homem histórico, pelo contrário, está sujeito à liberdade, sendo cada acção da sua inteira responsabilidade e, como tal, uma novidade. A criação só faz sentido num contexto temporal histórico, em que o indivíduo assume a pulsão do novo.

Uma das grandes diferenças entre o Homem tradicional e o Homem histórico mora na forma radicalmente distinta de interpretação das realidades associadas ao sofrimento e à dor. Para aquele, nas palavras de Mircea Eliade, “o seu sofrimento tinha um sentido: correspondia ou a um protótipo ou a uma ordem, cujo valor não era contestado”156 . Na tradição judaico-cristã, o absurdo da dor e da morte é superado pela fé. Ainda que não entendam tudo o que Deus revela no mundo, os judeus e os cristãos acreditam no sentido último da redenção prometida por Deus na qual o Homem crê livremente. O cristianismo, em relação a este aspecto, foi ainda mais longe, tendo transformado o sofrimento num valor salvífico.

Este edifício conceptual mantém-se, é claro, se a existência de Deus, seu apoio ontológico, jamais for posta em causa, pois sem Aquele, a história torna-se uma realidade insuportável, uma sequência interminável de acontecimentos desprovidos de

valor ou sentido intrínseco que se sucedem sem fim. Embora a descrença e o ateísmo tenham uma longa história, é no século XIX, depois do início da revolução científica, que Deus parece tornar-se numa realidade obsoleta que muitos intelectuais tentam desmistificar. É neste contexto que surge o marxismo que, de um ponto de vista restrito, é uma concepção de tempo fortemente inspirada na matriz judaico-cristã. Sobre este assunto George Steiner afirma:

Na sua essência, o marxismo é o Judaísmo impaciente. O Messias tem demorado demasiado tempo para chegar, ou melhor, para não chegar. O reino da justiça tem de ser implementado pelo próprio homem, nesta terra, aqui e agora. Ao amor deve responder-se com amor, à justiça com justiça, prega Karl Marx nos seus manuscritos de 1844, num eco transparente da fraseologia dos Salmos e dos Profetas.157

É na intersecção destes três movimentos filosóficos e também espirituais – o judaísmo, o cristianismo e o marxismo que o texto de Directa de desenvolve. Esta breve apresentação tentou mostrar como os conceitos de história e de Homem histórico, que surgem originalmente com o povo da Torá, evoluem e se metamorfoseiam na contemporaneidade, sendo responsáveis ainda hoje por manifestações sociais, culturais e políticas. Ainda acerca desta continuidade ideológica, retomo George Steiner que classifica o cristianismo e o marxismo como “(...) as duas principais heresias do Judaísmo (...)”158.

Neste capítulo explorar-se-ão as relações entre o texto de Directa, a sua história e as suas personagens, e as suas principais matrizes conceptuais que defendo serem o texto bíblico e a teoria marxista. À partida, provar uma relação entre o livro em estudo e a Bíblia não é difícil, uma vez que “todos os nossos outros livros, por muito diferentes que sejam no tema ou no método, se relacionam, ainda que indirectamente, com este livro dos livros”159, palavras do polímato já citado. Este vai ainda mais longe e lembra

que “os conceitos ocidentais de história e historiografia nascem da organização do tempo e dos factos na narrativa bíblica, e opõem-se-lhe”160.

Para começar a exegese, nada melhor do que recordar os primeiros dois períodos de Directa, em que surgem dois tópicos profundamente relacionados, não só com alguns dos temas atrás apresentados, mas também com outros assuntos cognatos. Antes de embarcar na análise do trecho, penso ser conveniente lembrar que, para lá da

157 Steiner, George, A Bíblia Hebraica e a Divisão entre Judeus e Cristãos, Lisboa, Relógio d’Água

Editores, 2006, p.90.

158 Idem, p.58. 159 Idem, p.9. 160 Idem, p.12.

moldura textual, também o autor, Nuno Bragança, era um católico devoto, de comunhão diária e, segundo a opinião de alguns amigos, de vocação mística161. Paralelamente a isto, era um homem politicamente empenhado e interveniente, militante de organizações secretas de esquerda radical162. Eis o excerto:

O homem acordou apavorado, porque a campainha não era do despertador. Mas no gesto de sempre que acordava, estendeu o braço esquerdo, e a mulher não estava ao lado dele. (Dir, p.15, sublinhados meus)

Aparentemente, acordar marca apenas a passagem de um estado dormente ao seu oposto insone; contudo, ao longo do texto o par temático sono/vigília ganha uma miríade de sentidos. Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção para o facto de o homem ser acordado por um barulho, o que não deixa de ecoar o momento genesíaco da criação que começa com o som das palavras de Deus. Além disto, uma vez que o judaísmo é uma religião iconoclasta, é por intermédio do som que Deus contacta com personagens tão decisivas na narrativa bíblica como Moisés e Job, que serão abordadas mais tarde neste capítulo pela sua relação modelar com o protagonista. Para quem leu Directa, não é difícil concluir que há uma oposição clara ente a personagem do homem, numa constante vigília, e a sua mulher, muitas vezes adormecida ou num estado de latência induzida pelas drogas em que é viciada. A somar a isto, está também a lucidez do protagonista proporcionalmente contrária à apatia da maior parte dos seus contemporâneos, ao sonambulismo do seu país.

Acrescente-se uma nota sobre a possível relação entre o par temático em estudo e a situação evangélica de Jesus a rezar com os discípulos no Jardim das Oliveiras. Esta exegese justifica-se de um modo directo pela fala final do protagonista, em que este diz: “«Vigiei trinta e uma horas seguidas. Acho que se não foi conTigo é porque não ressuscitaste.»” (Dir, p.289). É impossível não entender esta afirmação como uma réplica, de sentido complicado, à queixa de Jesus no Evangelho: “«Dormes Simão? Não pudestes vigiar nem uma hora? Vigiai e orai para não entrardes em tentação (...)»”163.

A segunda palavra sublinha no excerto em análise é “sempre”; o gesto repetido encontra naquele começo de dia uma novidade: é imposta uma fractura no quotidiano, visão repetitiva do tempo e dos actos que o habitam. Este pormenor não é de somenos, uma vez que alerta o leitor, logo no princípio da narrativa, para o carácter individual e

161 Cf Nogueira, João Pinto, U OMÃI QE DAVA PULUS, Documentário, Portugal, Midas Filmes, 2008. 162 Ibidem.

particular do tempo que ali começa, o que a continuação da história só vem confirmar. Isto está obviamente relacionado com as concepções judaico-cristãs do tempo apresentadas acima e que aqui ressoam.

Bastariam estes dois termos para conduzir este capítulo, mas penso ser vantajoso atrasar a corrente exegética e reconduzir a atenção para um outro texto transcrito no capítulo 1 e que de forma às vezes subtil, às vezes óbvia, enforma o conteúdo de Directa, assim como o percurso das suas personagens principais. Refiro- -me, como é claro, ao longo excerto do livro do profeta Isaías (Dir, pp.27-28) que o homem procura “para o fortificar naquela madrugada” (Dir, p.27).

George Steiner lembra que Isaías “Tem sido frequentemente designado como a voz mais poderosa e comovente do Ocidente, aliás, da experiência global”164, acrescentando ainda:

É a promessa de paz universal, do leão deitado ao lado do cordeiro, que continua a justificar e ao mesmo tempo a escarnecer das nossas esperanças já gastas. É, com o seu mistério próprio, a esperança de que «os filhos dos estrangeiros construirão as tuas muralhas», porque é precisamente o conceito de «estrangeiro» que empalidecerá à luz matinal da concórdia humana e da universalidade. Enquanto a humanidade tolerar a lógica irracional dos tempos futuros, recorrendo a «amanhã», estas passagens de Isaías serão os seus talismãs.165

Estas palavras demonstram o poder de sugestão e dão a entender a carga simbólica e cultural das palavras deste Profeta Maior; todavia, antes de avançar, há que falar um pouco do contexto de produção deste livro que, como se verá a seguir tem, pelo menos, três autorias diferentes. Segundo os exegetas166, há um consenso bastante alargado quanto à necessidade de dividir o Livro de Isaías, no que concerne a sua autoria e momento histórico de redacção, em, no mínimo, duas partes. A primeira secção estende- se dos capítulos 1 ao 39 e são da responsabilidade de Isaías, sendo os restantes versículos da autoria de um ‘Deutero-Isaías’ ou ‘Segundo Isaías’. Há ainda outras teorias que apontam para três autorias distintas ou até uma outra que divide o livro em três partes, atribuindo a cada uma delas vários autores. Como não cabe no âmbito deste trabalho uma avaliação filológica do Livro de Isaías, aceito a divisão em duas partes, sendo que, assim, os versículos citados em Directa, Is. 58, 2-12, fazem parte do

164 Steiner, George, A Bíblia Hebraica e a Divisão entre Judeus e Cristãos, Lisboa, Relógio d’Água

Editores, 2006, p.58.

165 Idem, p.59.

166 Cf. Orlinsky, Harry M. e Snaith, Norman H., Studies on the Second Part of the Book of Isaiah, Leiden,

chamado ‘Segundo Isaías’. Esta distinção é importante, porque, como diz Etienne Charpentier:

Os autores do Novo Testamento irão utilizar às mãos cheias este tesouro [os textos do ‘Segundo Isaías’], onde vão descobrir a ternura imensa dum Deus com coração de mãe, que anuncia a Boa Nova – o Evangelho – da libertação, e os primeiros cristãos verão nele traços comoventes do Cristo-Servo sofredor pelos pecados do mundo.167

Steiner acrescenta o seguinte:

É no «homem dos pesares», no servo sofredor em Deutero-Isaías – figurações profundamente enraizadas no destino judaico – que os compositores dos Evangelhos e do Cristianismo de São Paulo encontrarão a sua fé. É em direcção à «Nova Jerusalém» do «Segundo Isaías» que Bunyan e Martin Luther King dirigem os seus passos.168

Esta relação entre Isaías e os Evangelhos, nomeadamente, a influência de ambos na génese de discursos e ideologias políticos, repercute-se em profundidade no texto de Directa.

É Jesus, esculpido à imagem e semelhança do herói de Isaías, a figura modelar de comportamento do protagonista de Directa. Pode até aventar-se que a inclusão de um trecho de Isaías no começo da narrativa antecipa a figura de Cristo ressuscitado que o homem comunga e que ao longo das trinta e uma horas de vigília imita e procura. Transcendendo o homem, o filho do homem169, “Cristo estará em directa até ao final dos Tempos” (Dir p.280). O protagonista está ao longo do tempo da narrativa acordado como Jesus. Com ele partilha a lucidez e a constante vigília por aqueles que ama e pelas causas em que acredita. Esta aproximação entre as duas figuras é fácil de compreender se se aceitar que Jesus veio ao mundo para ensinar o Homem a nada temer, porque tal como este Aquele fê-lo, enfrentou o derradeiro pânico, a morte, e sobreviveu. Sobre este assunto é conveniente ler as seguintes palavras do ensaísta esloveno Slavoj Žižek:

A Liberdade humana só nesta monstruosidade de Cristo se funda, e, ao nível mais profundo, não é sob a forma de pagar pelos nossos pecados, nem sob a forma de resgate legalista, que o sacrifício de Cristo nos liberta, mas fá-lo desobstruindo o caminho. (...) Fá-lo [entrega-se à morte] e torna-nos livres, demonstrando in actu que ISSO PODE SER FEITO, que também nós podemos fazê-lo, que não somos escravos.170

167 Charpentier, Etienne apud Wiéner, Claude, O Segundo Isaías, O profeta do novo êxodo. Lisboa,

Difusora Bíblica, s/d, p.2.

168 Steiner, George, A Bíblia Hebraica e a Divisão entre Judeus e Cristãos, Lisboa, Relógio d’Água

Editores, 2006, pp.58-59.

169 A expressão ‘o filho do homem’ já foi explicada anteriormente. Cf. p.21.

Soma-se a isto a leitura particularmente significativa do livro A Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis, que a mulher está a fazer na casa de repouso (Dir, p.177). É interessante notar as palavras do narrador no excerto em que apresenta o volume em questão: “O homem viu que era a «Imitação de Cristo». O livro tinha o ar cansado e útil de uma ferramenta de profissional” (Dir, p.177). Esta obra, publicada pela primeira vez de forma anónima em 1418, tornou-se, ao longo dos seus muitos séculos de existência, num modelo de comportamento, uma “ferramenta” para todos aqueles que desejam seguir o caminho da Cruz. Pode dizer-se que o homem é um dos “profissionais” que tenta levar a sério os conselhos do monge alemão, sendo a sua mulher alguém que falha em fazê-lo. Tome-se, por exemplo, a seguinte citação: “Feliz o servo, diz São Lucas, que o Senhor, quando vier, encontrar em vigília. Em verdade vos digo Ele o investirá de todos os bens”171. Ao contrário do seu marido que teima em manter-se acordado e lúcido ao longo do seu percurso terreno, a mulher entrega-se a uma vida de sono tóxico por ela mesmo induzido, sucumbindo à dor e ao medo. Diz a personagem:

Mas nos meus frágeis, quotidianos movimentos, sei sobretudo isto: o que é acordar (ou ser acometida em pleno dia), gemendo o mínimo dos sons. Bradando por socorro em línguas mudas, todo o viver toldado em agonia de fazer jorrar suor como se sangue. E isto dia e noite; e outra vez, mais outra vez. Assim prossigo, no horror. Sem alívio que não seja o adormentamento, deitada ou mesmo a pé, bamboleante. Cortando as dores com umas drogas que – eu sei – tudo agravarão passado o seu efeito. (...)

E eu vejo, eu vejo: CAÍ EM MIM E NÃO AGUENTO O PESO DISSO. (Dir, pp.265-266)

Estas palavras entram em rota de colisão com os preceitos defendidos no livro que a mulher ironicamente lê no capítulo 14. Em A Imitação de Cristo, Thomas de Kempis alerta para o seguinte: “Quando o homem começa a cair na tibieza, então receia o menor esforço e recebe avidamente as consolações de fora”172. Está longe do intuito deste trabalho criticar, adoptando um ponto de vista de atalaia moral, o comportamento da mulher, apenas se deseja evidenciar a distinção ontológica entre esta e o homem. Até ao fim, o protagonista confia, entrega-se ao sentido exógeno de Deus; pelo contrário, a sua esposa perde a esperança e, mais importante ainda, o valor do sofrimento dentro do contexto cristão. A este propósito, é bom recordar, mais uma vez, as palavras de

171 Kempis, Thomas, A Imitação de Cristo, Lisboa, Editorial Estampa, 1991, p.47. 172 Idem, p.78.

Thomas de Kempis: “Só vos resta, pois, sofrer, se quereis amar Jesus e servi-lo constantemente”173.

Isaías é denominado por Claude Wiéner “o profeta do novo êxodo”174. Esta designação prende-se não só com as circunstâncias históricas do momento de redacção do texto, mas sobretudo com a relação que as palavras deste Profeta Maior estabelecem com outros momentos decisivos no processo de construção de identidade do povo judeu. No livro de Isaías, o leitor entra em contacto com um período da história de Israel em que o império babilónico invade e anexa as terras dos herdeiros de Abraão, sendo a maioria destes deportados para a Babilónia. O ‘Segundo Isaías’ escreve, provavelmente, no fim do cativeiro e exorta os seus contemporâneos a terem fé em Deus que os fará regressar às terras prometidas de Canaã. Apesar de estarem inseridos nos escritos do Deutero-Isaías, os versículos que o homem cita terão sido escritos por um outro autor já depois do regresso do exílio. Este recorda aos israelitas o amor de Deus para com o seu povo e a importância de agir segundo a Lei.

Para qualquer leitor familiarizado com a história de Moisés, as semelhanças diegéticas entre estes dois tempos distintos da História de Israel é evidente. Tal como no presente do livro do ‘Segundo Isaías’, os judeus estão exilados numa terra estrangeira, escravizados por um povo gentio e idólatra. É por vontade de Deus que serão libertados e reconduzidos à sua terra de origem, reproduzindo, assim, os dois momentos fundadores dos judeus e do judaísmo: a longa viagem de Abraão de Ur para a terra prometida e o êxodo mosaico. É sobre a longa caminhada de quarenta anos entre o Egipto e Canaã que os judeus alicerçam grande parte do seu imaginário religioso e histórico. Ao longo desse tempo, Deus funda uma Aliança com o povo eleito e entrega- lhes, pelas mãos de Moisés, as tábuas da Lei, princípios máximos da moral hebraica. A salvação que Deus opera ao libertar os judeus da escravatura no Egipto e o facto de os ter poupado à última das grandes pragas transformam-se nos acontecimentos que a festa da Páscoa, a mais importante do calendário judaico, todos os anos recuperará. Em Isaías

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