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5 UMA TRAJETÓRIA ENTRE FADAS E LOBOS

5.1 Perfil das crianças: uma fotografia dos significados

Para efetivar esta análise, faz-se necessário compreender a etapa de desenvolvimento em que estão as crianças envolvidas, através da observação das peculiaridades do vocabulário utilizado por elas nas versões. Nesse sentido,

nota-se que a maior parte das narrativas demonstra características de crianças que estão numa fase de transição para o pensamento lógico, apresentando claros resquícios do egocentrismo, que, segundo Piaget (1999), são uma forte marca da primeira infância.

Até os seis anos, as crianças têm como principais atividades o desenho lúdico e o brinquedo, sendo essas ocupações acompanhadas da fala descontraída, que funciona como um reforço da ação, não possuindo ainda uma função social. A partir de sete e oito anos, até cerca de 11 e 12, ocorrem grandes transformações, pois a criança começa a pensar nos conceitos que emprega, tornando-se cada vez mais apta à introspecção, o que a faz refletir sobre suas experiências, possibilitando o aparecimento do raciocínio formal e lógico. Nessa etapa, surge a capacidade de cooperação, quando aumenta a participação e ela consegue dissociar o seu ponto de vista do ponto de vista do outro, coordenando suas idéias através da linguagem. Como aumenta a compreensão a respeito da posição do interlocutor, as discussões tornam-se possíveis e os diálogos mostram-se repletos de justificativas e provas. Assim, desaparece gradativamente a linguagem egocêntrica e as conexões lógicas ocupam um espaço cada vez maior. Posteriormente, à medida que a criança vai experimentando essas construções na linguagem escrita, também as estruturas gramaticais evidenciam mudanças significativas.

Piaget explica que, na etapa anterior, mesmo que a criança esteja envolvida numa atividade individual, ela não consegue calar suas manifestações, que geralmente estão dirigidas para si mesma, o que dificulta a consideração sobre o ponto de vista do outro. A linguagem egocêntrica caracteriza-se por uma ausência de conexão entre as idéias e justificativas lógicas, o que impede a construção de um relato em que o encadeamento das suposições resulte numa narrativa com conclusões claras, tendo em mente a existência de um receptor. É preciso considerar, no entanto, que há um período de transição que pode ser mais ou menos extenso, dependendo dos estímulos e da interação social, o que torna inviável estabelecer características rígidas para uma determinada fase. Durante seu crescimento, a criança experimenta estágios indefinidos, misturando atitudes de fases anteriores, sendo possível perceber a predominância de algumas características em detrimento de outras.

Assim, explica Piaget (1973), é possível observar a persistência do animismo após os dez anos. Um exemplo disso é quando a solução de um problema é encontrada através de um pensamento mágico, o que demonstra marcas desse animismo, característico da primeira infância. Como salienta Piaget (1973), sobre o percurso do sol, nessa fase, a criança admite, às vezes, que o sol a segue como se fosse um pássaro e que, em outras vezes, isso não ocorre. Ao mesmo tempo em que afirma que o sol está imóvel, diz também que os raios podem segui-la. Segundo o teórico, essa atitude mostra que a criança

ainda apresenta uma contradição que somente é vencida quando ela compreende que as impressões que sente são ilusões devido ao posicionamento da terra e dos astros.

Nas narrativas estudadas, constata-se, em sua maioria, a existência de marcas do egocentrismo e do pensamento anímico, o que comprova que as crianças alvo deste trabalho ainda estão em transição para o pensamento formal. Percebe-se, assim, que o estágio de desenvolvimento em que se encontram essas crianças está refletido na forma de narrar as histórias, que podem ser mais próximas ou mais distantes das originais, dependendo das características do imaginário desse público infantil.

É possível observar nas narrativas uma tendência à síntese, principalmente quando a história se encontra no processo de solução. Há uma urgência em afastar o mal a qualquer custo, objetivando a conclusão da história, mesmo que ocasione um prejuízo para as etapas do conto e para a trajetória do herói.

Quando a narrativa se origina de uma história muito longa, como

Pinóquio, por exemplo, o resumo é a opção de todas as crianças que apontam

essa história como a preferida. A história de Pinóquio está estruturada de forma que a personagem ingressa em várias aventuras, ocorrendo pequenos conflitos e encaminhamentos de soluções, que são sempre desviadas pelo boneco, o que acarreta o início de uma nova busca até o final da trajetória, quando ele, finalmente, se transforma num menino. Provavelmente, essa maneira de

estruturar a história se deva ao fato de que, inicialmente, Collodi concebe

Pinóquio em forma de folhetim. Como as adaptações conhecidas pelas crianças

não registram a totalidade dessa estrutura, sendo selecionadas apenas algumas aventuras, também as crianças não conseguem narrar a história de forma completa. A conseqüência disso é a ausência de nexos lógicos e a diminuição do processo de individuação das personagens.

Em sua maioria, as crianças demonstram que tomaram contato com a literatura e com os contos de fadas, pois conhecem as histórias e encaminham suas personagens, desde a situação inicial, com seus desejos e problemas, conforme as histórias originais. No entanto, nota-se que suas dificuldades surgem durante o processo de solução que, mesmo sendo de responsabilidade do herói na maioria das narrativas, não afasta o mal totalmente, ou fortalece demais a fada e a magia, como no caso do conto Cinderela. Essa dificuldade também é percebida com as personagens das outras histórias. Nas narrativas de

Os três porquinhos, as crianças não resolvem definitivamente o problema; em

Chapeuzinho Vermelho, também não há uma solução completa para a menina, e,

em Pinóquio, as dificuldades de um processo de solução ainda são maiores, pois as narrativas estão baseadas em adaptações mais curtas.

Provavelmente, colocando-se no lugar do herói, as próprias crianças ainda não conseguem encontrar uma solução completa para o problema. O processo de individuação requer uma trajetória solitária do herói, de forma que ele descubra

com sua própria ação a saída para o seu conflito. Portanto, constata-se uma evidente coincidência entre o estágio de desenvolvimento em que estão as crianças-alvo dessa pesquisa e os heróis por elas recriados nas narrativas. Assim como as crianças, as personagens demonstram que ainda não ingressaram no processo de individuação, pois não afastam o mal definitivamente, e a solução maior para os conflitos ainda continua sendo exclusivamente mágica, ficando o herói sem uma atuação mais forte na solução de seus problemas. Da mesma forma, as narrativas deixam transparecer uma criança em fase de transição, que ainda não ingressou completamente no pensamento lógico e formal e apresenta fortes marcas do egocentrismo e do animismo. Observa-se que já existem traços da etapa do pensamento formal, quando se constata que a narrativa já apresenta princípio, meio e fim de maneira estruturada e as idéias já estão organizadas de forma lógica, demonstrando que o autor tem em mente um possível leitor. Já na fase do pensamento mágico e do egocentrismo, não existe uma preocupação com o interlocutor. Assim, observando-se os sinais dessas etapas, o conto de fadas narrado pela criança torna-se uma fotografia, que está sendo aos poucos revelada, permitindo o conhecimento do perfil desse público leitor e de seu imaginário.