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Elas nasceram entre mil novecentos e dezesseis (1916), e mil novecentos e quarenta e oito (1948). Exerceram suas atividades profissionais entre as décadas de quarenta e década de oitenta, à exceção de Cardoso em Pirapora e Tereza em Jequitaí, que ainda exercem atividades na área de saúde sem contudo realizarem partos. Tereza afirmou ter feito partos até início do ano dois mil e atribui a proibição de que ela continue a faze-los a uma decisão local da atual secretária de saúde.

Apesar da distância geográfica entre elas, compartilham alguns aspectos de vida: são mulheres que desde a infância acostumaram-se a trabalhar por pertencerem a camadas sócio econômicas menos privilegiadas. Quase todas são oriundas da zona rural ou de cidades de baixa densidade populacional. Mesmo Florianópolis capital de Estado, terra natal de Eunice, nos anos sessenta encontrava-se entre as três capitais mais pobres do país (BORENSTEIN, 2000). As dificuldades de transporte e de recursos para o atendimento das clientes à época,

foram marcantes para o desempenho profissional das que se dedicaram a partejar em domicílio, como foi o caso de D. Deta em Rio Fortuna/ SC, de D. Tuquinha em Várzea da Palma/MG, D. Tereza em Jequitaí/MG e D. Oliveira em Pirapora/MG. D. Deta foi uma das que mais passou por dificuldades nesse sentido:

Eu passei muito trabalho, muito trabalho, com esse rio Braço do Norte. Às vezes com enchente, e às vezes eu já atravessei esse rio a nado em cima do cavalo. Me colocava em cima do “lumbilho” e o cavalo ia nadando, às vezes saia bem noutro lugar, tinha que deixar a rédea solta e era arriscar a vida.(D. Deta)

Junte-se a este fato as más condições sanitárias dessas cidades conforme atesta D. Oliveira:

Pirapora era uma cidade desprezada! Não tinha calçamento, era uma lama, a cidade era cheia de porco, cabrito, cachorro, varicela, impaludismo. Se alguém chegasse na casa não tinha quem desse água para o outro porque estava todo mundo acamado, impaludismo, coisa tremenda! Até eu apanhei impaludismo.

De maneiras distintas mas tendo em comum o desejo de ‘servir’, de solidarizar-se com as outras mulheres, elas aprenderam a fazer partos, tarefa a que se dedicaram em todo seu percurso profissional. Esta formação como parteira se deu de maneira distinta entre elas, de forma bastante diversificada e heterogênea, característica que tem marcado a formação de recursos humanos em saúde no Brasil.

Em contrapartida, países do primeiro mundo que possuem uma estrutura médica de qualidade e o acesso da população aos serviços de saúde estão efetivamente garantidos, há um número significativo de parteiras, que acompanham as mulheres durante todo o período de gestação até o puerpério. É importante pontuar, que o movimento em prol das parteiras em países como a Inglaterra nasceu e vem se fortalecendo em função da organização do movimento de mulheres e do próprio movimento feminista, sendo estas parteiras de nível de escolarização elevado8 e formação específica para atuarem como profissionais especializadas em partos. No caso dos países do terceiro mundo, e em especial o Brasil, o que se questiona é a pouca qualificação das parteiras existentes e do baixo nível de escolarização das mesmas, o

8 Quando falo “nível de escolarização elevado ou baixo”, refiro-me ao número de anos que uma pessoa freqüentou a escola.

Pastore diz que a educação é de efeito demorado num país que acumulou atraso: em 1850 os Estados Unidos tinham cerca de 90% de sua população alfabetizada enquanto no Brasil havia quase 90% de analfabetos. Ele argumenta que a força de trabalho na Coréia do Sul têm 10 anos de escola, a do Japão 11 anos, a dos Estados Unidos e maior parte dos países da Europa 12 anos, e todos com educação de boa qualidade. Esses países estão empenhados em garantir um mínimo de 18 anos de escola para sua força de trabalho até o ano de 2010. Ele diz que com base no atual padrão evolutivo da educação brasileira, os homens que nasceram em 1998 terão 9 anos de escola somente em 2020, o que significa completar apenas o primeiro grau. Ele diz que espera que essa estimativa não se concretize principalmente porque num esforço recente 96% das crianças de 7-14 anos estão na escola, e que é preciso um esforço para mantê-las na escola mas com um ensino de boa qualidade. Pastore (O ESTADO DE SÃO PAULO, 23/10/2001).

que colocaria em risco a vida das mulheres e dos conceptos (RIESCO, 1999), o que a meu ver nem sempre corresponde à realidade.

Neste ponto é importante observar que, em que pese a baixa escolarização das mulheres que ainda se dedicam ao ato de partejar no Brasil de hoje, historicamente houve uma desqualificação do seu fazer, reforçado por um discurso médico científico que as qualificavam como ignorantes, além da difusão da imagem da parteira como uma mulher destituída de moral, capaz de praticar o aborto e infanticídios Este discurso, incorporado ao ideário médico brasileiro desde o século XIX a exemplo do que ocorria na Europa, buscava mesmo sedimentar a prática médica e garanti-la como hegemônica. Este fato fica mais evidente quando, ao analisar um texto publicado nos Anais de Medicina Pernambucana em 1844, a autora diz que:

O texto revela que além de assistir partos as parteiras tratavam com muita freqüência doenças ginecológicas, aplicavam sanguessugas; revela ainda que havia cooperação e concordância no uso de determinadas terapêuticas entre elas e os médicos, que algumas delas tiveram um relacionamento profissional muito próximo com os médicos, eram alfabetizadas e possuíam uma vasta experiência clínica. (MOTT, 1999, p.29)

Fatos como este demonstram que não havia entre elas uma ignorância generalizada como os médicos desejavam que se acreditasse. Esse discurso que originou-se na Europa, com

forte repercussão nos Estados Unidos e também no Brasil era muito mais político que técnico, visando garantir a hegemonia médica na obstetrícia como especialidade. Diniz afirma que:

A diferença técnica fundamental entre as assistências feminina e masculina consistia no uso de instrumentos cirúrgicos, privativo dos médicos, por definição, varões. O parto operatório, médico cirúrgico, desdobrou-se em duas vertentes técnicas, com seu respectivo armamentário: o arrancamento (forceps, cranioclastos, basiótribos, ganchos, tesouras de degola e de desmembramento etc.) e a extração __ a cesárea. [...] O que esta obstetrícia, de varões da elite, oferecia às mulheres e crianças, era desastroso. A entrada dos homens no quarto de parir, trouxe, até as primeiras décadas deste século, um aumento expressivo da mortalidade de mães e crianças, provocado sobretudo pela febre puerperal, pelo uso de instrumentos e pela prática da cesárea. (DINIZ 1996, p.188)

Nesse estudo, diferente do que foi apontado por Bessa e Ferreira (1999) em pesquisa sobre parteiras rurais do Acre em que 50% delas eram analfabetas, todas nesse estudo são alfabetizadas. As duas parteiras que se aproximam mais do perfil das “parteira curiosa”, D. Tereza e D. Geralda, são as de menor grau de escolarização tendo completado apenas o que à época denominava-se curso primário. D. Geralda principalmente traz em seu relato concepções e crenças muito ligadas às tradições orais sobre parto e ‘resguardo’, principalmente quanto, aos hábitos alimentares.

Uma ocasião que a gente morava na roça, eu gostava muito de queijo, ele comprou um queijo, um pedaço de queijo, chegou e enterrou o queijo dentro da farinha para eu não ver, imagina! Manga nem pensar, teve um dia que ele quase me matou porque eu comi manga no resguardo. Os mais velhos criavam assim, compreende? Limão, eles não deixavam entrar dentro de casa que mulher tivesse de resguardo. você imagina que ignorância, hoje eles dão limonada para cortar hemorragia. E não podia tomar leite, nem pensar.(D. Geralda)

D. Army, D. Deta e D. Oliveira tiveram um nível de escolaridade elevado para moças daquele período, e todas passaram por um ensino formal, regular. As duas primeiras se formaram no curso oferecido pela Maternidade Carlos Corrêa de Florianópolis nos anos quarenta, onde Army permaneceu orientando outras parteiras até a extinção do curso nos anos sessenta, tendo depois se graduado em enfermagem pela UFSC. D. Oliveira formou-se como enfermeira nos anos trinta no Estado de Goiás, em uma das primeiras escolas de enfermagem brasileira fundada sob orientação genuinamente nigthingaleana.9

D. Eunice e D. Cardoso tiveram sua formação e local de trabalho eminentemente hospitalar, ingressando nos serviços via quadro de categorias auxiliares da enfermagem. D. Cardoso freqüentou um curso de auxiliar de enfermagem regular durante três anos tendo já concluído o ensino fundamental. D. Eunice ingressou no serviço da maternidade Carmela Dutra em Florianópolis como atendente de enfermagem, sem formação prévia, aprendendo com as mais antigas ou em cursos esporádicos oferecidos dentro da própria instituição.

Eu comecei na maternidade em 69. Eu trabalhava como atendente e o Dr. Norton era diretor da maternidade, faleceu agora há pouco tempo. Eu trabalhei 8 anos como atendente da sala de parto. Então sabe como é, às vezes o médico não estava, e a gente tinha que acudir. (D. Eunice)

Contratar atendentes de enfermagem foi uma prática comum principalmente no

hospitais brasileiros durante décadas do século XX com um aumento significativo nas décadas de sessenta e setenta. Essa prática só foi deixada de lado paulatinamente com a promulgação da Lei 7.498 de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício de enfermagem e dá outras providências, regulamentada pelo decreto n. 94.406 de 8 de junho de 1987, que no seu artigo 23 previa autorização pelo Conselho Federal de Enfermagem aos atendentes que já exerciam atividades antes da promulgação da lei sob a supervisão da/o enfermeira/o A partir de então as pessoas que quisessem ingressar nos serviços de enfermagem precisariam ser auxiliares de enfermagem com ensino fundamental completo ou

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A Escola de Enfermagem Florence Nitgthingale foi fundada em Anápolis, Goiás, por uma missão protestante britânica. Essa escola teve seu reconhecimento concretizado no ano de 1937, “equiparada à Escola Ana Nery do governo federal e considerada de utilidade pública. Participaram da missão de instalação dessa escola as enfermeiras Isabel C. Macintyre, Alice Galler e Mary Hamilton. A enfermeira Macintyre foi posteriormente contratada pelo governo brasileiro, tendo implantado o paradigma dessa escola em várias regiões do país” . (LIMA, 1993, p.20/21).

nível médio, e os atendentes em exercício deveriam qualificar-se num prazo de dez anos a contar da data da promulgação da lei.

Tanto a formação como a forma de desenvolverem suas atividades profissionais aconteceram num contexto estrutural a partir das modificações que foram ocorrendo na política de saúde brasileira ao longo dessas quatro décadas. em que atuaram O ato de partejar é orientado pelo modelo médico oficial e aos poucos é absorvido pelo modelo hospitalocêntrico que vai se expandindo pelo Brasil principalmente a partir dos anos sessenta. Alguns dados apontados por Nakamae salientam essa inversão de modelo de assistência à saúde no Brasil a partir dos anos sessenta:

A unificação, bem como uma modificação mais consistente na estrutura providenciaria montada nos anos 30, é processada em 1971 com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), sob a pressão do crescimento da procura por assistência médica e do agravamento da situação financeira dos IAPs. [...] enquanto em 1949 o gasto com a assistência médica representava 7,3% da despesa total da previdência social, a proporção subiu para 19,3% em 1960, 24,7% em 1966, e 29,6% em 1997. Estes números certamente refletem o aumento da demanda por cuidado médico, mas também a tecnificação e a elevação dos custos dos atos médicos resultantes dessa tecnificação.[...] A assistência ambulatorial declina de 36,2% em 1960para 23% em 1967, ao passo que a assistência hospitalar se eleva de 22% para 58,2% nesse mesmo período. (NAKAMAE, 1987, p.40/41)

Assim, aos poucos, os hospitais passam a ser o local privilegiado para a realização dos partos sob o controle médico em todos os aspectos. As próprias parteiras incorporam o discurso do alto risco que significa o parto, aliado às dificuldades reais que elas encontravam para realizarem os partos domiciliares. Mas mesmo no espaço hospitalar são elas que continuam a realizar a maioria dos partos, conforme veremos a seguir.