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5.1 A PERFORMANCE

5.2.2 Performer na Escola Picolino

Historicamente, o fator risco sempre foi o alicerce principal no contexto da arte circense onde, quanto mais perigosa e tensa fosse a performance, maior era seu sucesso entre os artistas e admiradores. Apenas recentemente a prática circense foi buscar em outras áreas elementos que relativizassem o

imaginário social, ligado ao risco dos sujeitos, nascendo desse modo novas formas de manifestação corporal e enriquecendo a cultura dos picadeiros. (ARAÚJO, 2005, p. 4).

Essa citação de Araújo (2005) faz refletir como, no caso da Escola Picolino e do Circo Social, o conceito de risco tem dupla relação. De um lado, existe o risco presente na natureza das técnicas circenses e do outro o fato de que os alunos atendidos e os artistas estão, em sua maioria, em situação de risco social. O que mais os caracteriza é o próprio relacionamento com o conceito da morte e do perigo que, neste caso, se torna diferente; eles não só estão expostos, cotidianamente, ao risco, mas também, muitas vezes, são vistos como um risco para a própria sociedade em que vivem.

Hotier (2003) sublinha como as crianças, especialmente as mais novas, são mais levadas a afrontar o risco pelo fato de que esta se torna uma experiência estritamente ligada ao desenvolvimento das faculdades motoras e cognitivas. Ao mesmo tempo, elas têm o gosto pelo risco por ter uma substancial falta de capacidade para avaliá-lo. Isso se torna presente também nos adolescentes, juntamente com outros elementos tais quais as proibições, a necessidade de uma afirmação pessoal e social. Hotier (2003) ressalta que, nas crianças em situação de risco, o mesmo fator é uma questão muito mais cotidiana, praticamente em cada momento. Trata-se de uma ameaça das quais esses indivíduos não podem livrar-se facilmente.

No Circo Social, confronta-se o risco real da vida cotidiana com o risco do fazer circo. A diferença está no fato de que, através do circo, se arrisca para ser melhor, para aprender, para educar, para se mostrar e se estupefazer; atua-se, então, para transformar o risco em educação, formação, inclusão; cria-se um lugar que estimula o corpo a superar o medo do novo e a procurar novos perigos ligados a mudanças sociais.

De outra parte, na Escola Picolino, existe uma preocupação grande com a incolumidade dos artistas, e este aspecto nota-se também no espetáculo

cenascotidianas@cir.pic, quando, no número de trapézio de balanços, a artista utiliza o cinto

de segurança. O modo com o qual se afronta o risco, como metáfora, torna-se mais um conceito teórico que empírico, tornando-se uma experiência e uma vivência que é estruturada e ressignificada; um espaço fértil para o desenvolvimento individual sem conformação.

O que se torna interessante é analisar essa metáfora do risco fazendo ligação com a não repetição e a presença-ausência nos espetáculos da Escola Picolino.

A Escola Picolino, sendo ao mesmo tempo uma das primeiras escolas de circo no Brasil e uma das pioneiras em propor as artes circenses como instrumento de inclusão social, manteve sua especificidade, incorporou e copiou experiências vivenciadas, criou, foi capaz de renovar-se e adaptar-se enfrentando novos desafios e obstáculos decorrentes das mudanças ocorridas na sociedade, nas produções culturais e nos próprios integrantes da Instituição. Tornou-se uma entidade em constante processo de aprendizagem, alterando-se continuamente, seja na organização do trabalho, seja no modo de produção, criação e encenação dos espetáculos, bem como no processo de formação/socialização/aprendizagem, fazendo de modo que todos esses elementos formassem um conjunto e fossem vinculados e mutuamente dependentes.

Diante desse quadro, pode-se dizer que a Escola Picolino, estando inserida no Circo Social, constitui-se por meio de um grupo que, em linha com os outros grupos circenses, se articula numa estrutura que pode ser vista como um núcleo fixo, mas se constitui através de redes de atualização, envolvendo procedimentos em constante re-elaboração e ressignificação. Isso demonstra como as experiências e as atuações, assim como os espetáculos, são dinâmicos, não repetíveis e caracterizados pelo “agora” performativo, marcados pelas novas experiências, seja dos artistas, seja de toda a Escola.

O caráter de interação contínua que envolve o Circo Social faz de modo que esse aspecto não se feche na Escola Picolino, mas que interesse a todas as instituições envolvidas, não sendo, porém, um ponto distintivo. Todo circo está sempre em contínua renovação. Reportando a opinião de Silva, Castro e Bortoleto, entre outros, “O circo é sempre novo”5.

Deve-se levar em consideração que, nos espetáculos criados e encenados pela Escola Picolino, os artistas são alunos que estão progredindo no processo educacional, no processo de desenvolvimento físico e também na formação profissional. Esse caráter do trabalho é performativo, porque ao ser feito transforma quem o faz, determinando ainda o caráter de “presentificação” da performance executada. O espetáculo cenascotidianas@circ.pic, por exemplo, mudou constantemente ao longo do tempo: além das mudanças ligadas às coreografias e à maneira de transitar entre uma cena e outra, as ações coletivas do grupo em cena foram procurando melhorar a qualidade e mudaram, dependendo das novas tendências da moda, música, e das gírias. Também os números circenses, apresentados por cada artista, sofreram alterações, marcadas pela dificuldade ou qualidade de execução. O espetáculo, dessa maneira, transforma-se a cada nova apresentação, não sendo apenas uma repetição. Esse

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aspecto, porém, não é um elemento distintivo, porquanto todos os espetáculos de circo podem envolver um processo de formação do artista e terem mudanças significativas e recorrentes. Este aspecto aparece claro quando se observam, especialmente, os espetáculos dos circos itinerantes de pequeno porte, os quais apresentam uma mutabilidade constante e considerável, em contínuo diálogo com os diferentes contextos nos quais transitam.

O que se torna importante nesse olhar e caracteriza o espetáculo da Escola Picolino e do Circo Social, é o contexto de origem dos alunos e dos artistas. Na sua maioria, são ou foram crianças, adolescentes e jovens em situação de risco social. Trata-se, portanto, de indivíduos que são marcados pela própria “ausência” no cotidiano pelo fato de estarem inseridos num ambiente social que os torna “invisíveis”. Ressalta-se uma espécie de “apagamento” pelo qual esses sujeitos são submetidos e se tornam como um corpo destinado à exclusão, à marginalização, sem perspectiva para o futuro; de certo modo um corpo presente, mas que, na vida cotidiana, é assombrado por uma iminente ausência e desaparecimento, uma vez que vive num ambiente negado, um “não lugar”, uma “não família”, uma “não escola”, uma “não inclusão”. Trata-se de indivíduos que são forçados a não aparecer porque o status socioeconômico, no qual estão inseridos, os relega a um lugar de inferioridade. A palavra “desaparecer”, neste sentido, transita entre o significado da verdadeira morte física, até um desaparecimento ligado à exclusão social.

No Circo Social, todo esse contexto se subverte, e, para os alunos atendidos, esta ausência cotidiana se ressignifica durante o espetáculo. Este se torna um espaço de aprendizagem, de construção de sonhos e lugar onde esses sujeitos impõem sua presença, sua existência e visibilidade, quebrando o discurso hegemônico que os apaga.

Ao contrário de Gilpin (1996)6, quando se refere à presença do boneco em vez da carnalidade do ator, no Circo Social a presença viva dos artistas no picadeiro demonstra que os artistas não são “bonecos”, mas profissionais e alunos que interagem com o próprio ambiente cotidiano. São educadores e educados para serem multiplicadores e divulgar o próprio conhecimento adquirido no Projeto Social para além do espaço da Instituição, fazendo de modo que a atuação que se manifesta durante o espetáculo, tenha repercussão também após a apresentação. E é assim que um atendido pelo Circo Social destinado a uma provável “morte” física ou social, revela-se “vivo” por meio da sua presença no picadeiro no momento do espetáculo.

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A ausência do artista da Escola Picolino se torna concreta quando ele falta no picadeiro. Se ele não estivesse apresentando o espetáculo que está ligado a todo um conjunto de ações e atividades do Circo Social, então ele se encontraria na situação de risco, com a iminente ausência e “morte” que essa situação envolve. Quando o artista se apresenta no picadeiro, no momento da apresentação ele se torna “vivo”, e o espetáculo, enquanto obra concreta, o distancia de uma ausência e de sua “morte”. O espetáculo de Circo Social realmente não estimula apenas o imaginário e a fantasia, mas vai além, criando uma realidade de vida no artista. Apesar do desaparecimento do espetáculo como obra artística, através dos corpos dos artistas na cena, aparecem e se constroem concretos projetos de vida. Nunes (2005, p.26) salienta:

O que é possível entender e encontrar no espetáculo de circo como o da Escola Picolino, é que traduzem certamente muitas riquezas, mas certamente revelam muito mais do que as imagens e cenas. Se providas fossem de transparência, verteríamos, por entre elas, o que na verdade está além, vários projetos de vida.

O espetáculo de Circo Social, como resultado e etapa de um processo educacional, subverte o conceito de presença-ausência do artista ao apresentar a sua obra de arte, e esta característica peculiar não tem tamanha relevância nos outros espetáculos de circo.

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