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4. Sem saída: não há distância segura em O invasor

4.2 Da periferia para o centro

O espaço da periferia, de onde o filme parte, é reflexo do crescimento irregular dos grandes centros urbanos, como São Paulo, onde o filme se passa. O processo de urbanização no Brasil viu o crescimento dessas populações de grandes centros urbanos; com isso, o território da cidade precisava crescer para ir abarcando cada vez mais gente. Yvonne Mautner estudou o processo de formação dessas periferias, que passaram a ser incorporadas à área da cidade, fazendo paralelos com a expansão das forças de produção.

O significado preciso do conceito social de periferia em São Paulo desvenda, de fato, um processo histórico de produção de espaço urbano que se desenrolou concomitantemente à extensão interna do trabalho assalariado.

Em São Paulo, periferia tem um significado específico. Reflete a visão dual que o senso comum atribui ao espaço urbano. Geograficamente significa as franjas da cidade. Para a sociologia urbana, o local onde moram os pobres, em contraposição à parte central da cidade estruturada e acabada (MAUTNER, 1999, p. 253, grifos da autora).

A periferia cerca a cidade, que cresceu graças a ela, e reflete nela a desigualdade social. Essa situação cria um clima tenso nas relações entre classes. Como escreve Luiz Zanin Oricchio refletindo a violência retratada nesse e em outros filmes contemporâneos:

(...) é perceptível para qualquer morador de cidade grande no Brasil, o ódio social atingiu um nível sem precedentes. Não basta roubar; é preciso castigar a vítima. Humilhá-la, torturá-la, eliminá-la. Não existem mais ladrões românticos. Mesmo os verdadeiros profissionais, aqueles que só acarretam o sofrimento, digamos, indispensável para concretizar o crime, estão em falta. (ORICCHIO, 2003, p. 182).

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Esse é o caso do assassino do filme. Anísio é contratado para matar um homem e acaba matando também sua mulher. Fora isso, depois de receber o dinheiro pelo serviço, resolve que os mandantes ainda lhe devem muito mais. E ainda vai se aproveitar da herança que o casal que matou deixou para a filha, Marina, de quem vira namorado. E, em todos esses passos, ele é amparado pela mesma ética chamada por Zanin de ética dominante que norteia a atitude dos dois engenheiros em eliminar o terceiro sócio do caminho. Como disse Giba em seu discurso sobre ninguém ser santo e sobre quem não passa os outros para trás, acaba sendo passado para trás. É isso que a gente vai fazer com o Estevão, vamos aproveitar a nossa oportunidade antes que ele faça isso primeiro , é essa frase que ele usa para justificar a assassinato. E é justamente o que Anísio faz com Giba e com Ivan: aproveita a oportunidade de poder estar tratando de igual para igual com os dois.

O trajeto de Anísio no filme começa com a ida até a sede da construtora, para encerrar o assunto com seus contratantes25; pelo menos é nisso que os dois acreditam. Mas ele volta ao escritório para dizer que vai trabalhar lá cuidando da segurança dos patrões . É quando eles percebem que não vão se livrar dele tão fácil. E a terceira parada do seu trajeto é na casa de Marina, aonde chega sem maiores cerimônias e é convidado por ela para entrar.

Anísio e Marina decidem dar uma volta. Ele a leva para a periferia é quando o filme decide acompanhar esse trajeto. A seqüência mostra a transformação da paisagem: os dois cruzam grandes avenidas, por onde só é possível trafegar de carro, e aos poucos vão surgindo as casas, o comércio e as pessoas que caracterizam aquele espaço. Mesmo sendo uma parte longa do filme, são empregadas elipses temporais é dia quando saem e noite quando param o carro e espaciais cada imagem que aparece é um trecho diferente da cidade. No entanto, existe um caráter de complementaridade entre esses planos; em vez de fazer um corte abrupto de um ambiente para outro, a montagem vai construindo o espaço urbano sua representação no filme através dos fragmentos que vai expondo ao longo do passeio. O espaço em off e o fora-do-campo não são apenas alusões distantes, eles participam dessa construção de cidade. O epílogo dessa viagem, embalada ao som de rap, mostra o casal transando dentro do carro e tendo a cidade lá embaixo, digamos assim, a seus pés , comenta Luiz Zanin Oricchio (Ibid, p. 177).

Ao transpor a barreira social, ele tenta trazer consigo os manos de sua área: ele leva um

rapper, Sabotage, até a firma para apresentar o hip-hop aos dois empresários e extorquir dinheiro

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para financiar a gravação de um disco. Anísio segue sua trajetória, agora seguindo Marina pelo mundo que ela está acostumada: festas regadas a drogas. Ele não se integra simplesmente a esses espaços, mas se impõe perante as pessoas que esnobam sua presença. E é assim que termina: Anísio já tomou conta da área, agora é ele quem recebe Giba na casa de Marina, que agora também é seu espaço.

Seguindo a idéia de que o espaço invoca o movimento para poder ser apreendido, de que a visão não pode ser mais estática, precisa ser móvel, o filme persegue seus personagens pelos caminhos que eles escolham.

(...) o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial. E se, de um lado, ele torna efetivas algumas somente das possibilidades fixadas pela ordem construída (vai somente por aqui, mas não por lá), do outro aumenta o número dos possíveis desvios (por exemplo, criando atalhos ou desvios) e dos interditos (por exemplo, ele se proíbe por caminhos considerados lícitos ou obrigatórios) (CERTEAU, 1994, p. 178).

Pegando carona nessa exposição feita por Michel de Certeau, pode-se dizer que o caminho trilhado por Anísio não só possibilita que o espaço seja apreendido, como também, à medida que o personagem transforma-o, traz à visão as bordas e fronteiras deste espaço fragmentado.