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O PERIGO DAS TRAVESTIS

No documento RUBENS DA SILVA FERREIRA (páginas 109-118)

4 AS PISTAS E AS "BONECAS" EM BELÉM

5 A VIOLÊNCIA NOS TERRITÓRIOS DE PROSTITUIÇÃO DAS "BONECAS"

5.2 O PERIGO DAS TRAVESTIS

As travestis assustam aos que moram ou transitam nos territórios que elas escolheram para realizar a atividade prostitutiva. Observá-las envolvidas em discussões entre si ou com seus clientes tornou-se cena comum nesses espaços. Ao contrário do que acontecia nos anos de 1960, em que esses indivíduos andróginos temiam sair às ruas e sofrer algum tipo de agressão, Silva (1993, p. 41) mostra que com o tempo elas aprenderam a defender-se dos riscos de sua exposição no espaço público. As habilidades desenvolvidas no uso de objetos pérfuro-cortantes, como giletes e navalhas, (Silva, 1993; Oliveira, 1994; Kulick, 1998) acabaram por construir sua imagem de sujeitos perigosos. Ao que tudo indica, agora são as travestis que se aproveitam do medo que provocam para exigir o respeito à sua ambigüidade de gênero. Nessa direção, não somente elas se configuram como vítimas de toda a sorte de atos violentos, como também aparecem como sujeitos de ações intimidatórias entre elas, contra os moradores e contra passantes.

De um modo geral, ofensas morais, roubos e brigas são responsáveis diretos pela mudança de hábito entre aqueles que fazem uso dos locais de prostituição de travestis. João (61 anos), morador da Tv. Antônio Baena, uma das transversais da Av. Almirante Barroso, disse sentir saudade dos tempos em que podia sentar-se à porta na companhia da esposa para “pegar vento”. Nesse logradouro, ele e os vizinhos sentem-se agredidos pelas cenas na pista que são obrigados a presenciar de suas residências, levando-os desse modo a alterar sua rotina com o anoitecer. De acordo com esse interlocutor:

Sempre foi o meu costume sentar na porta pra pegar vento, mas dentro desse horário [entre sete e oito horas da noite]. Depois dele você não pode sair na rua. Eles começam a chegar, vão pra ali [aponta para uma árvore num canto escuro a alguns metros de sua casa] e começam a mudar de roupa ali mesmo. Aí tu fica olhando sem poder fazer nada, porque se tu for reclamar eles vêm com as maiores agressões: - Eu não tô mudando a roupa aí na tua casa. E você tem que engolir (Entrevista, 2002).

Em função disso os moradores foram aprendendo a usufruir do espaço público antes da chegada das travestis na Antônio Baena, para que as crianças e os jovens não fossem impactados pela visão dos corpos às vezes desnudos dessas profissionais do sexo.

Com os moradores das transversais da Assis de Vasconcelos a situação não é diferente. Silvana (30 anos), moradora da Rua 28 de Setembro, recorda de cena similar àquela presenciada por João:

Da feita que eles começam a chegar eu já entro, porque meu filho é pequeno e nem sempre dá pra ficar com ele na porta porque às vezes eles ficam trocando de roupa aqui na esquina. Outro dia até tava passando uma passeata deles [refere-se à primeira Parada do Orgulho Gay de Belém, realizada no dia 28 de junho de 2002] e fui na porta ver o que era e eu vi que eram eles (...). O meu filho olhou pra mim e disse: - Mãe, tem uma pessoa trocando de roupa ali. Eu disse: - Tá, não olha! Olha pra cá pro que tá passando. Não olha pra lá (Entrevista, 2002).

Fatos desse tipo são corriqueiramente denunciados à polícia, principalmente quando as travestis desfilam seminuas na pista para atrair seus clientes. Essa é uma das razões pelas quais elas são freqüentemente abordadas pela polícia para serem verbalmente advertidas. Todavia, as denúncias são feitas em sigilo, uma vez que os moradores temem possíveis represálias. Nesse sentido, João diz que as travestis chegam a intimidar aqueles que suspeitam ser seus delatores, ora de forma verbal, ora quebrando os vidros das janelas e/ou da porta da residência do suspeito à pedradas.

O comportamento agressivo de algumas travestis difunde o medo não somente entre os moradores e os passantes nos territórios de prostituição, mas entre as próprias "bonecas". Observou-se nessas "áreas de obsolescência" (Souza, 1995, p.87) a existência de relações antagônicas entre as próprias profissionais do sexo, movidas por razões que vão da competição por clientes à antipatia pessoal. Na Assis de Vasconcelos, Flávia e Débora são tidas como travestis “encrenqueiras” que não hesitam usar da força física para fazer valer seu poder nas ruas. Em algumas ocasiões, foi possível constatar Débora ameaçando expulsar Paola do ponto na R. 28 de Setembro, caso esta não lhe desse R$ 1,00 para comprar bebida. A travesti Katriely (Entrevista, 2002) orgulha-se ao

se autodefinir como baladeira,64 uma vez que ela está sempre disposta a enfrentar quem

quer que a desafie. Ela diz não suportar a concorrente indígena Docinho, a qual aparece na Figura 17. Como se presenciou nessa avenida, Katriely costuma insultar constantemente Docinho com expressões do tipo "bicha ridícula" por causa do corpo ainda não modificado dessa travesti que veio do Amapá para se prostituir em Belém.

Figura 17: A indígena Docinho. Foto: Simonian, 2002.

A competição, sentimentos de inveja e ciúme são fatores que notadamente estimulam atitudes hostis entre as travestis em seus territórios de prostituição e fora deles. Entretanto, encontrá-las batalhando em grupo pode dar a falsa impressão de que o gregarismo é um elemento forte entre essas profissionais do sexo. Verônica, Suelma, Camila e Galega entre outras, dizem ser difícil existir laços de amizade entre as travestis de pista, havendo no mais das vezes uma tolerância por força do trabalho na rua que as

64 O termo babadeira, nesse contexto, significa pessoa que gosta de confusão; pessoa de briga;

obriga ao convívio num espaço limitado. Isso, no entanto, não impede as manifestações de solidariedade nos momentos de ataque homofóbico ou doença (Mott, Assunção, 1987; Silva, 1993). Nesse último caso, Raissa citou as visitas que fazia à enferma Palominha, acometida pelas infecções oportunistas decorrentes da contaminação pelo HIV/AIDS.

Mas a competitividade no negócio do corpo alimenta o antagonismo sobretudo contra as neófitas, que enfrentam dificuldades para se estabelecer na pista. Como os clientes têm preferência pelas mais jovens, as travestis mais velhas resistem em dividir o ponto com as iniciantes. Por conseguinte, o negócio do corpo alugado exige a renovação constante dessas profissionais do sexo em função da demanda masculina por uma androginia jovial. De certo modo, pode-se dizer que as travestis tornam-se “velhas” ao atingir a faixa dos trinta anos de idade (Silva, 1993; Kulick, 1998). Marisailustrou essa realidade ao queixar-se de sua baixa clientela e mostrou-se preocupada com o futuro:

Às vezes eu peço R$ 30,00 e eles só querem dar R$ 15,00. Aí a gente aceita porque tá difícil mesmo. Eu só vivo disso, se bem que eu sou cozinheira. Inclusive eu até queria conseguir emprego porque eu quero sair dessa vida. Pra mim já não está dando porque eu já estou com 36 anos de idade (Entrevista, 2002).

Diante desse contexto, para continuarem sendo contratadas, a beleza plástica e juvenil são requisitos imprescindíveis no universo da prostituição, mas o uso intensivo de hormônio, a aplicação de silicone industrial, o álcool, as drogas e o sono irregular são fatores que aceleram seu processo de envelhecimento e diminuem sua expectativa de vida (Silva, 1993; Kulick, 1998; Benedetti, 2000). Verônica é uma das poucas que continua a ter um bom faturamento em função da morfologia acentuadamente feminina de seu corpo. E, por isso, não se sente insegura com a chegada de jovens travestis na Assis de Vasconcelos, porque entende que "ganha quem tiver o melhor produto pra oferecer".

Beleza e juventude são requisitos importantes no mercado do sexo. Mas, ao que tudo indica, nem mesmo um corpo feminino como o de Verônica tem conseguido atrair clientes aos territórios de prostituição das travestis. Conforme os depoimentos coletados, os assaltos praticados por elas constituem o principal motivo do refluxo da

clientela. Silva (1993), Oliveira (1994) e Kulick (1997, 1998) apontam o furto e o roubo como uma prática institucionalizada no universo desses sujeitos, cuja finalidade consiste em complementar a renda obtida no programa. Cassandra, Raissa e Vovó afirmaram que se apropriavam “discretamente” do dinheiro de seu contratante sempre que este cometia algum descuido. Por certo, esse roubo “discreto” a que elas se referem corresponde ao suadouro, cuja técnica consiste em não intimidar a vítima, mas furtá-la durante o frenesi do contato corporal da travesti com o cliente (Abreu, 1968; Oliveira, 1994) sem que este perceba a subtração de sua carteira. Quando os clientes se dão conta do furto, as reações são diversas. Alguns evitam acionar a polícia temendo que sua intimidade venha a conhecimento público. Outros preferem resolver o problema através da violência física. Nesse caso, cabe ilustrar tal reação com a Figura 18. Nela aparece Suelma, com as marcas de tiro que recebera de um cliente que a acusava de furto.

Figura 18: Marcas de tiro nos quadris de Suelma.

Nos territórios de prostituição das travestis em Belém, os moradores relataram várias situações em que presenciaram assaltos cometidos por elas. Amaral (48 anos; entrevista, 2002), morador da Rua Manoel Barata e Antônio (33 anos; entrevista, 2002), que trabalha como vigilante num prédio privado na Assis de Vasconcelos, comentaram que são comuns os casos de clientes assaltados nas pistas daquelas imediações. Na Av. Almirante Barroso, Mercedes (25 anos; entrevista, 2002), moradora da Tv. Antônio Baena, não esquece do dia em que presenciou uma vizinha sendo roubada por uma travesti na entrada do edifício que fica ao lado da residência dessa interlocutora. Desde então Mercedes evita sair à rua quando as travestis começam a chegar para batalhar.

Mesmo entre as "bonecas" que trabalham na pista, o roubo é sempre uma possibilidade. Suelma, quando troca de roupa para batalhar, costuma esconder sua "sacolinha". Como ela explica em seu depoimento:

Eu escondo a minha sacolinha com as minhas coisas porque se as bichas verem elas vão lá e pegam [grifo nosso], entendeu? Elas são muito assim... eu não confio em nenhuma delas. Tem muita travesti que apronta isso, mas eu não gosto disso. Eu não gosto desse tipo de coisa porque eu não preciso (Entrevista, 2002).

É em função de "pegar" o que não lhes pertence que as travestis são, em geral, estigmatizadas como ladras, não só pela sociedade maior, mas entre outras travestis como Guta (Augusto, 33 anos; entrevista, 2002). Ela é uma respeitada e admirada travesti que trabalha como cabeleireira no bairro da Terra-Firme. Guta diz que a nove anos teve uma experiência muito passageira pelo universo da prostituição e da qual arrependeu-se.

Convencida por uma amiga a ir a São Paulo para "ganhar a vida", ela não demorou muito para descobrir que o trottoir que realizava em frente ao Jóquei Club para ter um lugar para dormir e o que comer não lhe traria grandes conquistas. Guta observou nesse período que:

algumas vão só pra roubar. Tem muitas que vão pra fazer pista, mas outras vão mesmo é pra roubar (...). A maioria não pensa em comprar um fogão, uma cama (...); aquelas que tão na rua só querem curtir, comprar roupa, sapato. Elas acham que nunca vão envelhecer. É muito

triste! Tem uns que são drogados, outros aidéticos, tem muitos que roubam. Poxa! Eu não quero nunca que a minha mãe venha me dizer: - Eu tenho um filho viado [sic] e ele é assim e assado. Não, o Augusto pode ser o que for, mas ele é caprichoso, ele é trabalhador, é uma pessoa que respeita todo mundo (...). Mas tem muitas que não prestam pra nada na sociedade (Entrevista, 2002).

Como se pode constatar, o roubo e a prostituição são práticas condenáveis por outras travestis, sejam elas profissionais do sexo como Suelma ou outras profissionais como a cabeleireira Guta. Dessa forma, desfaz-se o mito estigmatizante não só de que todas as travestis são ladras como também o de que todas são prostitutas.

Outra situação de violência perpetrada pelas travestis ocorre na forma da intimidação dos cidadãos que moram e/ou passam pelos seus locais de prostituição, sendo que as mais comuns são as provocações verbais e os pedágios. Embriagadas ou não, em algumas ocasiões elas fazem “brincadeiras” provocativas com as pessoas que moram e/ou passam nesses territórios. Convites indecorosos em vocabulário obsceno dirigidos aos homens, e chacotas deferidas contra as mulheres são costumeiras entre as travestis da Av. Almirante Barroso e da Av. Assis de Vasconcelos. Mercedes diz passar indiferente aos insultos porque teme que elas revidem de forma mais agressiva. Daniel (16 anos; entrevista, 2002) também procura não dar importância ao assédio das travestis por acreditar que elas "devem andar com qualquer coisa”, fazendo referência a algum tipo de arma que possam carregar na bolsa como as lâminas (Mott, Assunção, 1987; Silva, 1993; Simonian, 2003/forthcoming) que as tornaram temidas pela sociedade desde os anos da década de 1970.

Com a imagem negativa de ladras e perigosas, moradores e/ou passantes ficam assustados quando são abordadas pelas "bonecas" que lhes pedem dinheiro. Na Antônio Baena, Mercedes relatou que sentiu "muito medo" (Entrevista, 2002) de ser agredida quando uma travesti lhe pediu dinheiro e ela não tinha o que dar. Casos de agressão nesse sentido ocorreram em Porto Alegre (RS), de onde se veio saber dos espancamentos que essas profissionais do sexo praticavam contra os que passavam por seus territórios sem pagar pedágio (Princesa, 2002b, p. 9). Desse modo, é pelo conjunto do comportamento de algumas "bonecas" que fazem pista em Belém, que moradores

e/ou passantes passam a generalizá-las como indivíduos perigosos e as estigmatizam como ladras.

Mas independente da violência ser praticada contra ou pelas travestis, o que se conclui é que os territórios de prostituição podem ser descritos como espaços dominados pela insegurança, haja vista o medo entre as diferentes categorias de sujeitos que deles fazem uso para ir, vir ou batalhar. Decerto a insegurança tornou-se um problema nacional, que atinge a todos os segmentos da sociedade, dado o quadro exacerbado de violência no campo e nas cidades de todo o Brasil. É em decorrência da freqüência, da expansão e da veiculação desse fenômeno na mídia que Simonian (2000b, p. 4) refere-se a ele como uma realidade "sem limites". A impunidade verificável no sistema jurídico brasileiro e a falta de controle estatal sobre a criminalidade, são fatores condicionantes para os processos de disseminação da violência.

O Estado, aliás, ocupa uma posição tão ambígua quanto as travestis nesse cenário de insegurança. Sob uma perspectiva ele é o agente encarregado de garantir indiscriminadamente a segurança pública como um direito de todo o cidadão (Brasil, 1988, p. 95); por outra, não se pode esquecer que em suas estruturas ele também é um agente (re)produtor de violência (Osório, 1999; Simonian, 2000b). A face dúbia desse agente mostrou-se mais evidente durante a vigência do regime autoritário, quando a ordem pública era mantida às custas do silêncio, da tortura, da invasão de privacidade, da repressão à mercantilização sexual, da extradição ou da morte dos "desviantes" ao regime em "circunstâncias misteriosas".

Entretanto, mesmo nesse quadro ditatorial, vários segmentos da sociedade civil – entre os quais tem-se os homossexuais –, organizaram-se em torno da luta pela cidadania. E como se verá a seguir, a conquista de direitos em favor de gays, lésbicas e travestis ainda enfrenta resistências no reconhecimento de sua igualdade tanto no âmbito da sociedade quanto do próprio Estado. E como lembra Simonian (2003, c. p.), os recentes pronunciamentos do Papa João Paulo II aos homossexuais e por extensão às travestis, e as punições “exemplares” feitas no Egito nos primeiros meses desse ano são

indicativos de que a resistência deverá ser redobrada. Em que medida homossexuais e travestis de Belém vão ter condições de se organizar para resistir à persistência dessa orientação conservadora no Brasil e em Belém, é uma questão a ser oportunamente verificada.

6 CIDADANIA, MOVIMENTO HOMOSSEXUAL E POLÍTICAS

No documento RUBENS DA SILVA FERREIRA (páginas 109-118)