• Nenhum resultado encontrado

Para ele, os periodistas deveriam pesquisar e se informar melhor antes de acatar denúncias de alienados contra a instituição e seu corpo

administrativo. Além disso, o médico não se furta de comentar que a

influência da imprensa é no mais das vezes deletéria, sugestionando

degenerados com a exposição excessiva, em detalhes, de dramas de sangue

diários. Daí podemos perceber o quanto, nesse período, emergiam críticas

e escândalos envolvendo a instituição e sua administração. Nada é de se

espantar a defesa levada a cabo por Moreira nesse texto.

Em fins da década de 1910 e início da década de 1920, toma relevo a perspectiva da profilaxia das doenças mentais, e dos tratamentos rápidos (ambulatoriais) para evitar a cronificação e, consequentemente os gastos (Relatório da Assistência, 1921-1922, pp.65- 66). Este quadro institucional, unido ao acirramento dos debates em tornos da nação, dará

74 Nesse texto, Moreira trata de estabelecer uma bem elaborada psiquiatrização do ato de mentir de certos indivíduos. Termina por afirmar a autoridade do psiquiatra neste assunto. No entanto, o texto é em grande parte uma resposta à imprensa por esta ter o costume de ouvir os testemunhos e as críticas ao Hospício feita por pacientes “alienados”.

corpo ao projeto da higiene mental, fortemente marcado pela perspectiva eugênica 75, que objetivava um Brasil com cidadãos modelo, do ponto de vista biológico e moral (Paula, 2005, p. 14; Costa, 1979).

O que percebemos é que o H.N.A, como muitas instituições congêneres do início do século na América Latina (Rivera Garza, 2001; Sacristán, 2001 e Zulawsky, 2004), era um “território camaleônico” (Rivera-Garza, 2001), onde misturava-se custódia, assistência, controle e tentativas terapêuticas. Na Primeira República, a questão da doença mental não era uma questão de saúde pública. O H.N.A estava subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, passando longe das prioridades da República. Boa parte das idéias e reivindicações de Juliano Moreira não plasmaram-se em ações e políticas públicas, embora muitas coisas tenham sido obtidas. Os registros históricos dessa instituição pintam um quadro repleto de problemas estruturais e reivindicações repetidas a cada ano, bem diverso daquele pintado por muitos memorialistas da psiquiatria do Brasil. O próprio Juliano Moreira salientou a permanência dos mesmos problemas de fins do século XIX e primeiros anos do século XX: superlotação, falta de atenção médica e “promiscuidade” entre as classes (Relatório da Assistência, 1910-1911). Por outro lado, Lima Barreto, nos seus relatos sobre o H.N.A, apesar de todas as mudanças ocorridas e da modernidade dos princípios de seus gestor, nos dá conta de aspectos não muitos diversos daqueles que caracterizavam a instituição no início do século, quando a Comissão de Inquérito, segundo Afrânio Peixoto em 1905 (quando era diretor interino do H.N.A.), “escreveu a história da ruína do Hospício Nacional” (Relatório da Assistência, 1904-1905, pp.1 e 2).

I.4. A “Seção Lombroso” e o Manicômio Judiciário

75 Segundo Stepan (2005), a eugenia no Brasil apresentou-se, em grande medida, no discurso e ação de alguns atores mesclada às perspectivas do saneamento e da higiene e, por isso, foi mais “positiva” e amena. Aqui ela ganhou linhas de formulações com cores particulares. Porém, a face da eugenia “negativa” também se fez presente: Renato Kehl e outros, por exemplo, passaram a apoiar em fins da década de 1920 e início da de 1930 medidas extremadas, como a esterilização. Muita coisa foi produzida sobre a eugenia no Brasil depois das análises de Stepan. Para uma leitura recente sobre os princípios eugênicos no pensamento brasileiro ver Souza (2006).

Em relatório relativo ao ano de 1905, Antônio Austregésilo, na época médico da “Seção Pinel”, salientava o problema que os “alienados delinqüentes e perigosos”, “em promiscuidade com os outros mansos”, causavam para aquela seção (Relatório da

Assistência, 1905-1906, p.18). Alguns anos depois Juliano Moreira comentaria a mesma coisa (Relatório da Assistência, 1908-1909, p.129). Poucos anos depois, o mesmo referiu- se a “problemas com a seção de delinqüentes”, cuja população era prioritariamente de epiléticos, que não são de forma alguma tratados por conta da superlotação de todo o Hospício (Relatório da Assistência, 1910-1911).

A lei de 1903 já previa uma seção do hospício destinada a criminosos-loucos, ou seja, aqueles que enlouqueceram no cárcere e/ou aos loucos-criminosos, aqueles que por problemas mentais infringiram a lei. O seu artigo 10º declarava a proibição de “alienados em cadeias públicas ou entre criminosos”, e o 11º estabelecia que

“Enquanto não possuírem os estados manicômios criminais, os alienados delinquentes, e os condenados alienados, somente poderão permanecer em asilos públicos e particulares, nos pavilhões que especialmente se lhes

reservam” (apud Moreira, 1905, p.81, grifo meu)

A “Seção Lombroso” foi então inaugurada por volta do ano de 1914, dando conta desta necessidade estabelecida em lei (Maciel, 1999). Ela era um projeto importante em termos assistenciais na ótica de Juliano Moreira. Segundo este (Moreira, 1905, p. 54)

Só ficará completa a missão do Estado no que diz respeito à Assistência Alienados do Distrito Federal, no dia em que fizer construir pavilhões especiais para mentecaptos que praticarem crime e para criminosos que ensandecerem, ou nos asilos comuns ou nas proximidades das prisões

No início do seu funcionamento, a maioria dos seus pacientes eram indivíduos acusados de homicídio, embora também houvesse muitos homens que não tinham cometido crime, ou que simplesmente eram contraventores ou não se adequavam a “moral social vigente”, como “estelionatários”, “vadios”, “alcoolistas” e “pederastas” (Maciel, 1999, p.151). Indivíduos que engrossaram as primeiras levas de pacientes do M.J. Segundo Maciel (1999, p.148), Heitor Carrilho começou sua atividade clínica na “Seção Lombroso” em 1916, de quando é datado o “Livro nº1 de Observação dos Pacientes” da “Seção

Lombroso” e do Manicômio Judiciário, parte do acervo do Setor de Documentação Médico do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (SDM-HCTPHC).

No ano de 1919 a situação da “Lombroso” já não era das mais estáveis, não dando conta dos seus objetivos (Maciel, 1999, p.146 e 152). Até que bem no início do ano de 1920 uma grave revolta de pacientes ocorreu no H.N.A. Sobre o seu início, Lima Barreto nos legou um relato muito interessante. Tendo um indivíduo subido ao telhado do hospício

“(...) Começou a destelhar o edifício (...) ele o fazia na presença da cidade toda, pois na rua se havia aglomerado uma multidão considerável (...) Num dado momento, trepado e de pé na cumeira, falando, os braços levantados para o céu fumacento, esse pobre homem surgiu-me como a imagem da revolta...” (Barreto, 1986, p.19)

Depois deste evento, uma revolta. Um grupo de indivíduos da “Seção Lombroso” sob a liderança deste mesmo homem, R. D. E., queimou e empilhou colchões, e em furor jogaram objetos e agrediram guardas, enfermeiros, acadêmicos e médicos, além de ameaçarem o administrador e sua família que residiam nas dependências do hospício. A proporção tomada pelo incidente pode ser apreendida com o contingente direcionado para sua repressão: polícia, bombeiros, praças do exército, delegado e Chefe de Polícia, com a presença do próprio Ministro da Justiça (Engel, 2001 a, pp. 295-296; Maciel, 1999, pp.113- 118; Carrara, 1998, p.193). Mais uma vez temos o relato - desta vez mais atemorizado - de Lima Barreto:

“Dia 27/01/1920. Revolta dos presos na casa-forte [provavelmente se refere à Seção Lombroso]. A revolta é capitaneada pelo D.E, o tal que subiu no telhado. Estão chegando bombeiros e forças de polícia. Os revoltosos armaram-se de trancas. A rua encheu-se; há um movimento de carros, automóveis com personagens, e força de polícia e bombeiros. Já tenho medo de ficar aqui” (Barreto, 1986, p.34)

Estes eventos foram também descritos por Heitor Carrilho (Carrilho, 1920). O saldo foram muitos estragos e depredações, além de 11 guardas feridos. Foram convocados para repressão ao movimento vinte praças da Brigada Policial e 45 soldados dos bombeiros (idem). Muitos indivíduos fugiram. O incidente teve muita repercussão na imprensa, que criticou bastante a administração de Juliano Moreira, que via-se mais uma vez a voltas com ataques da imprensa (Maciel, 1999, pp.116-117). Para o Jornal do Brasil e o Correio da

Manhã, a administração de Moreira era culpada pela superlotação, a falta de guardas e enfermeiros, as péssimas condições de vida na instituição e ausência de tratamentos (idem). Meses depois ocorreu outra revolta, mas bem menor, e foi ela que provavelmente “apressou a votação de verba extra necessária para a construção do manicômio criminal” (idem, p.122-123). Poucos meses depois, em abril, foi lançada a pedra fundamental do Manicômio Judiciário.

Esta instituição representou uma significativa vitória médico-psiquiátrica (Antunes, 1999, p. 115), demarcando o domínio psiquiátrico dos âmbitos da perícia e da custódia (Carrara, 1998, p.220). Deveria ser destinado, nas palavras de Carrilho (Carrilho, 1920), em grande parte, aos “anômalos morais perigosos”, objetivando a “defesa social”, repressão e a “profilaxia criminal”. Porém, sua gênese decorre, em grande medida, de categorias diagnósticas ambíguas como as de “degenerado”, que analisaremos ao longo desta dissertação. Como aponta Carrara:

“Foi a partir do momento em que, nos tribunais, alguns criminosos passaram a ser classificados como degenerados que os meios socialmente instituídos para o controle e repressão aos transgressores viram-se paralisados, comprometidos em seu funcionamento (...) Casos mais ou menos escandalosos vão surgindo motivando psiquiatras e magistrados a lutar em prol da construção de um asilo criminal” (Carrara, 1998, pp.191 e 197)

Dois destes casos serão analisados no capítulo III, os casos de Alfredo e Edson. O Manicômio Judiciário passou a funcionar em 30 de maio de 1921, com o seu regulamento aprovado no decreto 14831 de 25 de maio de 1921 (Maciel, 1999, p.154). No fim das contas, ele representou uma “superposição complexa” de um modelo “jurídico punitivo” sobre um modelo também, e cada vez mais, atuante socialmente que era o “psiquiátrico terapêutico”. Constituiu, em última instância, uma “arranjo de compromisso”, um meio termo entre a escola positivista e a escola liberal (Carrara, 1998). O que não significa que não tenha representado uma grande vitória da psiquiatria: os indivíduos que cometessem crime e cujo estado mental desse sinal de desequilíbrio, bem como os presos que assim se apresentassem, deveriam obrigatoriamente passar por exames no M.J e não mais no Serviço Médico-Legal ou na Casa de Correção, como acontecia (Maciel, 1999, p.154).

Três anos depois de fundado o M.J, uma tese defendida na F.M.R.J por um ex- interno do Manicômio e discípulo de Heitor Carrilho, José Gabriel do O’, propalava, ainda, um discurso justificador da instituição do ponto de vista da “defesa social”, e em claro embate com a “escola do livre-arbítrio”:

“Acima do espírito de liberdade individual, há o princípio da segurança social e para esses indivíduos deve haver um lugar onde a sua reclusão se faça para a tranquilidade social. A eles se destina o Manicômio Judiciário” (Do O’, 1924, p.76)

Apesar destes discursos, ao que tudo indica no início do seu funcionamento, o M.J não tinha nem estrutura nem segurança para manter muitos pacientes. Heitor Carrilho, em relatório relativo ao ano de 1922, pedia a melhoria das instalações, “mais segurança” e “muros contra fuga” (Relatório da Assistência, 1922-1923). Seus primeiros pacientes provinham ou da “Seção Lombroso” e “Pinel” do H.N.A, ou da casa de Casa de Detenção ou Correção. A partir da criação do Manicômio, Heitor Carrilho passou a fazer vários exames de “criminosos” na Casa de Correção e Detenção, escrevendo laudos de exame de sanidade mental solicitados por Magistrados (Relatório da Assistência, 1921-1922). O Manicômio passa a ter, então, o monopólio sobre os exames em possíveis “alienados delinqüentes” (idem, p.89). Porém, Heitor Carrilho dividia, pelo menos no início do funcionamento do M.J, os exames com um médico legistas da polícia.

Entretanto, o caso que analisaremos agora, o caso do imigrante italiano Carletto, acusado de duplo assassinato, em 1906, é de um contexto anterior, em que os médicos legistas da polícia ainda tinham preeminência nos exames em criminosos suspeitos de alienação. O que não significa que estes médicos não fossem também conhecedores e representantes da psiquiatria, empregando todos os seus esforços para a legitimação do seu saber perante a justiça, a imprensa e o público de uma forma geral, como veremos.

Capítulo II

Fora do Hospício, nas mãos da polícia: o caso Carletto