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Permanência e inserção das populações indígenas no universo colonial

No documento nataliapaganinipontesdefariacastro (páginas 62-72)

2 Os anos de formação de um “padre mulato”

3.2 Permanência e inserção das populações indígenas no universo colonial

O Brasil foi protagonista não só de uma mescla de etnias, mas também de culturas, imaginários e formas de vida dos quatro “cantos do mundo” (GRUZINSKI, 2001, p. 62).

Neste tópico, objetivamos tecer comentários acerca das formas de inserção das populações indígenas mineiras na sociedade colonial setecentista e oitocentista. Fazendo isso buscamos escapar dos perigos de expor os nativos como meros agentes passivos da colonização ou ainda de silenciá-los quando sua presença e vozes ecoam por todo o período analisado. Não se trata apenas de abandonar a idéia de aculturação, que contém o vício de considerar o índio como elemento inerte no processo e opô-la à de resistência, que por sua vez coloca o nativo no papel de sujeito insubordinado na relação com o outro, pois essa noção já foi há tempos ultrapassada pela historiografia brasileira; mas sim de entender o índio em função das transformações identitárias ocasionadas pelo contato, de seu espaço de experiências que descortinou um novo horizonte de expectativas26. Como infere T atiana T akatuzi:

Na verdade, a representação indígena não foi explicitada unicamente pelos conflitos contra o colonizador, mas, sobretudo, por meio da criação e adaptação de diferenciadas formas de convívio e transformações de práticas e símbolos determinados pelos atores indígenas e coloniais (TAKATUZI, 2005, p. 10).

A historiografia predominante até meados da década de 1990 teve como ponto recorrente omitir ou minimizar o processo histórico pelo qual passaram os índios das Minas Gerais após a chegada do elemento colonizador. T al vazio historiográfico foi justificado, como afirma a historiadora Maria Leônia Chaves, sob diversos pretextos: o primeiro deles seria o de que estas populações haviam sido dizimadas pelas entradas e bandeiras ao longo dos séculos XVII e XVIII; outra explicação seria a dificuldade de se reconstruir uma história a partir das matrizes étnico-culturais dos distintos grupos; podemos mencionar ainda predomínio de

26 A primeira categoria, espaço de experiências, diz respeito à tradição recebida e às experiências que informam o presente, já a noção de horizonte de expectativas tem a ver com o elemento de projeção futura, de transformação, mas que é vivenciado no presente (KOSELLECK, 2006).

estudos sobre temas políticos, como a Inconfidência Mineira; por fim é notório o enfoque dado pela historiografia ao período do ciclo do ouro, que desprezou outros tipos de atividade nas Minas Gerais setecentistas e ignorou a presença dos índios nos núcleos urbanos mineradores (RESENDE, 2000). T ais proposições foram refutadas pela historiadora Maria Leônia Chaves de Resende (2000, p. 9), segundo a qual:

O que se percebe (...) é uma desproporção entre a riqueza qualitativa e quantitativa das fontes coloniais e o volume da produção sobre a temática indígena na Minas colonial. Se, nos arquivos históricos existentes em Minas Gerais, abunda farta documentação colonial, capaz de assegurar investigações de grande fôlego e de diversas naturezas, como entender, então, essa indigência bibliográfica sobre a questão indígena?

O historiador John Monteiro, a partir da proposição de uma “Nova História Indígena” - para usar sua expressão -, ao problematizar e contrapor documentos, demonstrou ser possível compreender o contato índio-colonizador de forma não mais unilateral e notar que a maior parte das fontes disponíveis para o estudo dos índios diz mais sobre quem as produz do que sobre as próprias parcialidades indígenas de que tratam. Dessa forma, rompeu com a antiga concepção historiográfica a respeito dos povos nativos e passou a percebê-los então a partir de suas experiências, vivências e estratégias no universo colonial (MONTEIRO, 1999).

Por sua vez, Maria Leônia Chaves Resende sugere a incorporação da história e da historicidade pelos etnohistoriadores, o que levaria categorias como aculturação a serem repensadas e mesmo substituídas por noções como a de reelaboração cultural, que parece dar conta com mais precisão dos processos de contato interétnico, tanto no que se refere aos índios quanto ao elemento externo. Nas suas palavras:

Muitos grupos, ainda que distantes de suas tradições originárias mas tendo, em contrapartida, uma vivência e experiência muito próximas, reconstroem e reinventam sua identidade, dentro da idéia de pertencimento a um grupo a partir das experiências compartilhadas. É a expressão de um povo que, em condições adversas de dominação e experienciando longos anos de conflitos, procura ‘recriar’ seus laços culturais (RESENDE, 2000, p. 20).

A historiadora propõe ainda a retomada dos estudos sobre os povos nativos a partir da criação de uma nova categoria, a de índios coloniais, derivada dos conceitos de hibridação e mestiçagem propostos por Serge Gruzinski. Deseja com isso designar os processos de mistura tanto entre os próprios índios quanto entre eles e as populações de outras origens, quer sejam européias ou africanas, dentro de um mesmo contexto histórico. Desse modo, os índios coloniais seriam todos aqueles que, destribalizados por algum motivo, independente de sua etnia ou procedência, foram incorporados à vida sociocultural da colônia nas vilas, aldeamentos ou vilarejos (RESENDE, 2007).

Como nos informa a autora, para além da violência, matança e repressão a que estiveram submetidas, sem dúvida, é possível constatar a presença, a adaptação e a permanência das populações indígenas nas mais variadas esferas do cotidiano mineiro do século XVIII: além de estarem envolvidos com as atividades econômicas, os índios participaram da lógica colonial apropriando-se de seus diversos espaços constituídos, como a religião, a justiça e o trabalho.

Por diversas vezes encontramos índios, destacadamente os aldeados, peticionando à Coroa e demais autoridades a restauração de suas liberdades ou da paz e sossego que possuíam antes da chegada dos brancos27, como também exigindo o pagamento por serviços realizados e produtos comercializados. O acionamento da justiça e o conhecimento do aparato legal que os protegia demonstra a aparente incorporação pelos índios de valores da sociedade colonial cristã de que estavam cada vez mais próximos.

Vemos assim que nem sempre a reação indígena se deu no sentido de contrapor os valores coloniais. A posse e o uso de bens materiais provenientes dos brancos, por exemplo, ou mesmo o bom relacionamento e a aliança com eles, poderiam significar para o índio um maior status no interior de sua comunidade e a disputa por posições de liderança. E mais, podemos constatar que o conhecimento e a familiarização com o universo dos brancos, além de configurar novas fronteiras culturais para as populações indígenas, auxiliaram-nas até em momentos de choque.

27 Em 1789, por exemplo, os índios coropós e coroados solicitavam ao rei a paz e o sossego perdidos com a presença dos europeus (Documentos avulsos da Capitania de Minas Gerais, 1789, cx. 132, doc. 32).

Os índios aprenderam que, atacando tropas, fazendas e povoações, matando soldados e escravos, furtando armas e ferramentas, queimando plantações e abatendo o gado desvalorizavam as propriedades do sertão e afugentavam os colonos. A linguagem de comunicação predominante entre índios e colonizadores passou a ser a do terror e da violência, sendo que o conhecimento da mata, os combates de surpresa e uso de armadilhas pelos primeiros subjugou por muitas vezes as divisões armadas com faca e fogo (LANGFUR, 2009).

Ainda nessa linha seguem Maria Regina Celestino e Elisa Garcia. Esta defende a posição de que o historiador deve perceber quais foram as motivações dos índios em seus contatos com os lusitanos, passando pela análise da visão que os próprios grupos autóctones construíram de suas trajetórias e como,

[…] através de um reordenamento constante dos seus contatos com a sociedade colonial, buscaram se posicionar em situações reais de interação não apenas de uma maneira fatalista, mas lançando mão de estratégias desenvolvidas por eles mesmos (GARCIA, 2007, p. 20).

A seu tempo, Maria Regina Celestino acredita que, sem negar a violência do contato, as altas taxas de mortalidade, a desestruturação social e o desrespeito à lei, cabe reconhecer a complexidade das relações entre os índios e os demais agentes sociais da Colônia, “que interagiam todos [...] em busca da realização de seus objetivos, constantemente reformulados por suas experiências cotidianas” (ALMEIDA, 2003, p. 119). A autora destaca que os aldeamentos foram muito mais do que simples espaço de dominação e exploração dos colonizadores sobre os índios, pois, além de constituírem-se em lugares de “portugueses e cristãos”, também foram “espaços de índios”.

Ao ingressar numa aldeia, muitas etnias do Brasil misturavam-se num espaço único de administração lusa e, na condição de aldeados, os índios passavam a compartilhar uma experiência nova e comum, que os colocava em condição ímpar em relação aos demais segmentos sociais da Colônia (ALMEIDA, 2003, p. 119).

Celestino acrescenta que os nativos transformaram-se e rearticularam valores e tradições para se adaptarem ao novo mundo em formação, o que possibilita

concebê-los como um grupo social específico, com identidades próprias forjadas ao longo das experiências, das vivências partilhadas e do contato com a situação colonial.

Por fim, destacamos que Ângelo Carrara lança outra perspectiva sobre o encontro entre indígenas e brancos. Para o historiador, o choque e a convivência entre as duas culturas promoveram o chamado contato dissolvente – palavras de Gilberto Freire (1954) -, o qual se traduzia em progressivos processos de aculturação, resultando em gerações cada vez maiores de “ex-índios” (CARRARA, 1999).

3.3 Bárbaros sertões: a presença dos índios nas Minas coloniais

Os índios foram subdivididos até o século XIX em duas categorias administrativas principais: os índios bravos e os índios mansos, sendo o principal critério para essa clivagem a aceitação ou não da catequese. As instruções da Rainha D. Mariana Vitória, esposa de D. João V, são extremamente significativas para estabelecer a dicotomia natureza boa/natureza má:

Pelo que toca aos índios das nações mansas, que se acham dispersos servindo aos moradores a título de administração, escolhereis sítios nas mesmas terras onde foram tirados, nas quais possam se conservar aldeiados, tirando-os aos chamados Administradores; e pedireis ao Provincial da Companhia de Jesus, vos mande missionários para lhes administrarem a doutrina do Sacramento. Igualmente lhe pedireis para a administração de qualquer aldeia ou nação que novamente se descubra, não consentindo que se dissipem os índios ou se tirem das suas naturalidades ou se lhes faça dano ou violência alguma; antes se pratiquem todos os meios de suavidade e indústria para os civilizar e doutrinar em tudo como o pede a piedade cristã28.

A domesticação dos nativos passava pela sedentarização em aldeamentos, subjugo às leis e pelo assentimento da religião católica, o que se aplicava tanto aos grupos agricultores quanto aos caçadores e coletores (CUNHA, 1992). Mas como mencionou Márcia Amantino, “o índio que precisava e merecia ser aldeado era aquele considerado manso, ou seja, o que aceitava ‘pacificamente’ ser explorado

28 Informação contida na “Instrução da Rainha D. Mariana Vitória para D. Antônio Rolim de Moura T avares”. Lisboa, 19 de janeiro de 1749 (MALDI, 1997).

economicamente pelos fazendeiros da região. Os que não aceitavam, sofreram processos de extermínio” (AMANTINO, 2008, p. 84).

Os gentios eram considerados homens pagãos, “vítimas das artimanhas de Lúcifer” e desprovidos de “boa doutrina e lei”. Contudo, eram tidos como potencialmente cristãos, pois não se recusavam a ouvir os missionários e aceitavam a conversão e o batismo: “se o Diabo não lhes furtasse o bem da salvação, não provocasse discórdias, não lhes incitasse a matar e comer uns aos outros, os nativos seriam homens felizes”. A fé desempenharia a missão de reverter, e “salvar as almas que padeciam de tormentos infernais” (RAMINELLI, 2001, p. 233). No entanto, as dificuldades da catequese não demoraram a surgir e ante o canibalismo, a nudez e as práticas dadas como feitiçarias, os religiosos muitas vezes passaram a duvidar da eficácia da conversão.

Nas Minas Gerais, Minas dos Cataguás como eram conhecidas até 1732 em referência aos seus habitantes, à captura pragmática do gentio pelos paulistas somou-se a deliberada expulsão dos indígenas das áreas em tese destinadas à mineração, à agricultura e pecuária. Já em 1718, a política metropolitana em relação aos indígenas que habitavam a incipiente capitania ficava patente: em carta ao Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas, Dom Pedro de Almeida, governador de São Paulo e Minas do Ouro, afirmava: “muito mais o há de entender com D. Izabel, pois quando se concediam essas mercês, de 300 a 400 léguas de terras, eram tudo matos povoados de gentio com a condição de o expulsarem e de os povoarem” (Carta do Conde de Assumar...1718). Dois anos depois, Domingos Dias Ribeiro solicitava ao mesmo governador a licença para organizar uma expedição em direção às cabeceiras de Guarapiranga com o objetivo de conquistar o gentio bravo, permissão favorável com a condição de que os colonos se encarregassem da administração do gentio (RESENDE, 2007).

A indesejada presença dos indígenas foi reiterada em 1734 pelo mestre-de- campo Mathias Barbosa da Silva, que informou ao Conde de Galvêas, governador das Minas Gerais, “os grandes destroços que executavam os índios bravios” e a necessidade de “reduzi-los, ou afugentá-los e descobrirem novas terras para se

povoarem de gente, e as Minas de ouro e pedras, que se achassem para a conveniência pública” (ANASTASIA, 2005, p. 29-30) 29.

Na década seguinte, em 1746, os moradores de Guarapiranga, insatisfeitos com os constantes ataques por parte dos índios infiéis, solicitavam permissão para montarem bandeiras até os sertões e conquistarem o gentio, requerendo inclusive ajuda de custo em pólvora e chumbo. Propunham o aprisionamento de todos os que resistissem à dominação para servirem como mão-de-obra e para que lhes fosse ensinada a doutrina cristã (RESENDE, 2007).

Uma substancial mudança no entendimento das populações indígenas se deu quando em meados do século XVIII, finalmente as leis de liberdade dos índios do Estado do Maranhão, de 06 de julho de 1755, foram estendidas a todo o Brasil pelo alvará de 1758. Em decorrência da política de Dom José e do Marquês de Pombal houve a vontade e a tentativa de povoar efetivamente os vastos territórios de seu domínio e conquistar os sertões. Principalmente após 1765, cartas régias e instruções foram enviadas a várias regiões do Brasil, incluída a Capitania de Minas, visando viabilizar a política de ocupação, a transformação das aldeias indígenas em vilas e a conversão dos índios, agora como vassalos livres da Coroa, em guardiões das fronteiras (FLEXOR, 1995). Segue um exemplo de uma dessas medidas:

Se aprova ao Governador de Minas a despesa, que fez com os Índios, e bem que os tratou, e se lhe recomenda, que trabalhe para estabelecer com eles Povoações Civis, os quais pela tirania com que sempre foram tratados, se acham nas trevas, em que nascerão, e se criarão nossos inimigos Capitães (Aviso de 12 de Fevereiro de 1765).

Luís Diogo Lobo da Silva foi um governante afinado com a política pombalina e procurou implementá-la em sua gestão, quando ainda era Capitão-General de Pernambuco, entre 1756 e 1763: em 1759 aplicou a nova lei do Diretório dos Índios, em decorrência da qual criou 25 novas vilas e arrebanhou 25.370 almas. T ambém publicou a carta régia de 1755, que concedia a liberdade aos índios e seus bens, que embora já regulamentada por decretos anteriores de 1587, 1595, 1647, 1652, 1653 e 1680, não tinha efeito. A lei estabeleceu, entre outros pontos, que os índios deviam ser pagos em dobro por razão de seu trabalho, para o seu sustento diário e

29 O documento, localizado no Arquivo Público Mineiro, é a carta de Manuel Caetano Lopes ao rei.

restituição de sua liberdade antiga e natural. Lobo da Silva aderiu à “maré anti- jesuítica”, nas palavras de Laura de Mello e Souza, executando com presteza as ordens reais e desfazendo do ensino da Companhia de Jesus, por quem, segundo ele, os vassalos haviam sido induzidos e precipitados às densas trevas da mais crassa ignorância, para melhor justificar a instituição dos professores régios (SOUZA, 2006). Em Minas Gerais, entre 1763 e 1768, Luís Diogo deu andamento à política pombalina enfrentando com destreza um contexto bem diverso.

Sem embargo, foi a partir de seu governo que a quantidade mais expressiva de índios foi capturada pelos entrantes. A política empreendida pelos governadores tratou de favorecer a fixação de colonos nos sertões mineiros, estimulando as expedições e fingindo não perceber a mitigada escravização das populações indígenas. Diversos documentos demonstram o grande número de índios administrados pelos bandeirantes, além daqueles que amedrontados fugiam dos matos e aldeamentos para as vilas e cidades, incorporando-se ao cotidiano colonial e compondo assim um “novo cenário das Minas Gerais Setecentistas”. Em 15 de novembro de 1769, Ignácio Correia de Pamplona escreveu ao Governador, Conde de Valadares: “creia-me Vossa Excelência, propriamente as minhas súplicas, que enquanto se não extinguir estes bárbaros gentios receio muito a povoação da terra” (AMANTINO, 2008, p. 84)30.

T ambém o Governador Dom Antônio de Noronha, quando chegou à capitania em 1775, conta que procurou com “incansável cuidado promover o adiantamento da civilização dos Índios, persuadido que estes em algum tempo poderiam vir a ser úteis ao Estado” (SOUZA, 2006, p. 378) 31. Cláudio Manuel da Costa chegou a dedicar-lhe um poema em que exalta suas conquistas em Minas:

Ele é quem desprezando as ameaças De um bárbaro País, áspero e fero, Por entre os tigres e o gentio armado Levou o nome e as Quinas Lusitanas Até o termo, onde Netuno assina

Co’os ossos de um Encélado as barreiras

30 O documento pode ser consultado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de Manuscritos, arquivo Conde de Valadares, 18, 2, 6, doc. 19.

31 O documento referido pode ser encontrado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de manuscritos, 2, 2, 24, Carta de 20/08/1777, fl. 133.

Da limítrofa capital das Minas (FILHO, 1996, p. 517) 32.

O tempo e as barreiras enfrentadas na civilização do gentio, contudo, dissuadiram o dito Governador dessa crença, levando-o a julgar que dos índios “não se colhe nenhum bom serviço”, que eles só “prestavam para gastar dinheiro da Real Fazenda” (SOUZA, 2006, p. 378) 33 e a decretar guerra aos Botocudos que atacavam o aldeamento do Rio Pomba e atrapalhavam a conquista do Cuieté, a qual correspondia à porção norte da Mata Mineira, a primeira a ser ocupada (AMANTINO, 2006). Ainda durante seu governo, os oficiais da Câmara da Cidade de Mariana representaram ao rei informando-lhe, entre outros assuntos, sobre “as violências praticadas pelos gentios, assim como a difícil situação econômica” pela qual atravessava a Capitania de Minas. Dizia o documento:

(...) a capitania de Minas se contempla no mais deplorável estado de sua ruína, acrescendo também o grande vexame em que se acham pelas atrocidades do Gentio, que cerca a mesma capitania pela parte do mar, destruindo vidas e fazendas, de tal sorte que muitos moradores deixaram os sítios e não continuaram na manufatura do ouro, por não experimentarem o efeito de sua crueldade, principalmente o chamado Botocudo, que como feras indômitas [comem] carne humana a cujo fim matam as criaturas que encontram, e não chegaria a tanto sua maldade se se pusesse tal nação a uma total obediência (Documentos avulsos da Capitania de Minas Gerais, 1775, cx. 108, doc. 75).

Em 1782, João Pinto Caldeira liderou uma expedição que tinha por objetivo liquidar os quilombolas e os Caiapós que fossem encontrados no Campo Grande e já em 03 de Dezembro de 1796, no governo do Visconde de Barbacena, os oficiais da câmara de Vila Nova da Rainha representavam a D. Maria I, pedindo socorro para os habitantes daquele T ermo, os quais estavam fugindo de suas fazendas devido aos estragos cometidos pelo “gentio silvestre”, seus insultos, ferocidade e antropofagia. Contavam os suplicantes:

32 O documento, citado por Filho, possui a notação a seguir: COSTA, Cláudio Manuel da. Fala ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Dr., Antônio de Noronha, Governador e Capitão General das Minas Gerais, recolhendo-se da conquista do Caeté, que com ardente zelo promoveu, adiantou e completou finalmente no seu felicíssimo Governo.

33 Souza consultou tal informação na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de Manuscritos, 2, 2, 24, Carta de 20/08/1777, fl. 133.

[...] o gentio silvestre, que há longos anos se continha nos confins do Cuieté, agora atravessando sem medo o Rio Doce, têm cometido nos últimos habitantes do círculo deste T ermo os mais horríveis e funestos estragos, por ser insultor feroz, e antropófago, por cujo motivo muitos dos mesmos habitantes fugindo à morte têm lastimosamente desamparado as suas fazendas, que constam de terras minerais, e de culturas, não só com gravíssimo prejuízo daqueles, como do Bem Público dos dízimos e Reais Quintos de Vossa Majestade. E como contemplamos este objeto muito digno de atenção, humildemente rogamos a V Majestade [...] queira por as providencias que parecerem justas para que se suspenda a fúria do bárbaro inimigo, repare-se o dano pretérito, evite-se o futuro (Documentos avulsos da Capitania de Minas Gerais, 1796, cx. 142, doc. 53).

Três anos depois, em 1799, constatamos que o governador das Minas José Bernardo Lorena ainda se ocupava muito com os assuntos referentes aos gentios.

No documento nataliapaganinipontesdefariacastro (páginas 62-72)