3.3 Sobre a necessidade da contiguidade
3.3.1 Permuta¸c˜oes que comutam com a matriz de Fourier
Come¸camos por esclarecer a nota¸c˜ao utilizada. Seja En o conjunto {1, 2, . . . , n}. Uma
permuta¸c˜ao definida em En ´e uma aplica¸c˜ao bijectiva P : En → En. O conjunto das
permuta¸c˜oes de n s´ımbolos forma com a opera¸c˜ao de composi¸c˜ao um grupo normal- mente representado por Sn. Uma permuta¸c˜ao pode representar-se por uma tabela
π =
Ã
1 2 · · · n
i1 i2 · · · in
!
que `as vezes se abrevia para (i1, i2, . . . , in). Com qualquer permuta¸c˜ao π pode associar-se
uma matriz de permuta¸c˜ao de ordem n, obtida permutando as colunas da matriz iden- tidade de ordem n de acordo com π. Por exemplo, a matriz de permuta¸c˜ao associada com a permuta¸c˜ao (2, 3, 1) ´e
0 0 1 1 0 0 0 1 0 .
As matrizes de permuta¸c˜ao de ordem n formam um grupo multiplicativo isomorfo ao grupo das permuta¸c˜oes de n s´ımbolos com a opera¸c˜ao de composi¸c˜ao.
As linhas ou colunas de qualquer matriz de permuta¸c˜ao P s˜ao obviamente orto- normais, pelo que
PPT = PTP = I
e P−1 = PT. Se π ´e a permuta¸c˜ao isomorfa a P, e π−1 ´e a inversa de π, ent˜ao PT ´e a
matriz de permuta¸c˜ao associada com π−1.
Ap´os estes preliminares podemos estabelecer o seguinte resultado.
Teorema 3.3.1 Para qualquer n > 2 existe um grupo n˜ao-trivial Cn de matrizes de
permuta¸c˜ao de ordem n que comutam com a matriz de Fourier da mesma ordem.
A demonstra¸c˜ao ´e elementar. Sejam P e Q matrizes de permuta¸c˜ao que comutam com F. ´E evidente que os produtos PQ e QP possuir˜ao essa mesma propriedade, o que prova que o conjunto de matrizes com tal propriedade forma de facto um grupo relativamente `a opera¸c˜ao de multiplica¸c˜ao matricial.
Para provar a existˆencia de tais matrizes consideremos a equa¸c˜ao PF = FP,
ou, alternativamente, as permuta¸c˜oes σ tais que o vector
σ(x) = {xσ(0), xσ(1), . . . , xσ(n−1)}
tenha por DFT
3.3. SOBRE A NECESSIDADE DA CONTIGUIDADE 61
Seguindo por exemplo a primeira hip´otese chega-se a
n−1X k=0 Pike−j2πk`/n = n−1X k=0 e−j2πik/nP k`.
Seja k um inteiro tal que 0 ≤ k < n. Designaremos por σ(k) e σ−1(k) as imagens de k
dadas pela permuta¸c˜ao σ e pela sua inversa, respectivamente. A coluna k da matriz P ´e a coluna σ(k) da matriz identidade, pelo que
Pik = δiσ(k).
Logo,
exp³−j2πσ−1(i)`/n´= exp (−j2πiσ(`)/n) ,
ou seja,
`σ−1(i) ≡ iσ(`) (mod n). (3.4)
Pondo σ−1(i) = k chega-se `a forma alternativa
σ(`)σ(k) ≡ `k (mod n).
Estas condi¸c˜oes s˜ao evidentemente necess´arias e suficientes para a comutatividade. Fazendo i = 1 chegamos a
σ(`) ≡ σ−1(1) ` (mod n), (3.5) o que implica que σ(0) = 0. A permuta¸c˜ao identidade definida por σ(i) = i ´e uma solu¸c˜ao ´obvia de (3.5). Uma outra solu¸c˜ao ´e dada pela permuta¸c˜ao definida por
σ(i) =
(
0 se i = 0,
n − i se i 6= 0. (3.6)
´
E claro que n−i ≡ (n−1)i mod n. Encontr´amos assim duas solu¸c˜oes para o problema da comutatividade, v´alidas para qualquer n > 2.
Pondo ` = 1 na equa¸c˜ao (3.4) chega-se a
σ−1(i) ≡ σ(1)i (mod n), (3.7) donde se conclui, tomando i = 1, que σ−1(1) = σ(1). Este facto e as equa¸c˜oes (3.5)
e (3.7) implicam que a permuta¸c˜ao σ ´e de ordem 2, isto ´e, ´e a sua pr´opria inversa. Isto significa que qualquer matriz P que comute com a matriz de Fourier ´e necessariamente involut´oria, isto ´e, satisfaz P2 = I.
Esta condi¸c˜ao s´o por si n˜ao ´e suficiente para a comutatividade. Pode obter-se um conjunto de condi¸c˜oes necess´arias e suficientes exigindo tamb´em que σ(k) =
Teorema 3.3.2 (Chao) Uma matriz de permuta¸c˜ao P comuta com a matriz de Fou-
rier se e s´o se for uma involu¸c˜ao e se a permuta¸c˜ao σ associada a P satisfizer σ(k) = σ(1)k mod n.
Este resultado encontra-se em Chao (1973), enunciado da seguinte maneira sin´onima: uma matriz de permuta¸c˜ao comuta com a matriz de Fourier se e s´o se a permuta¸c˜ao isomorfa for um automorfismo de ordem 2 do grupo aditivo dos inteiros m´odulo n.
A ordem do grupo de permuta¸c˜oes est´a relacionada com o n´umero de ra´ızes qua- dradas da unidade, m´odulo n, de acordo com o resultado seguinte.
Teorema 3.3.3 O n´umero de permuta¸c˜oes que comutam com a matriz de Fourier de
ordem n ´e igual ao n´umero de ra´ızes quadradas da unidade, m´odulo n.
Para a demonstra¸c˜ao retomemos a equa¸c˜ao (3.7), que implica
σ(σ(k)) = k ≡ σ2(1)k (mod n),
o que prova que σ2(1) ≡ 1 mod n. Logo cada ra´ız quadrada da unidade m´odulo n
corresponde a uma permuta¸c˜ao σ.
Para qualquer ordem n existem sempre pelo menos duas matrizes de permuta¸c˜ao que comutam com a matriz de Fourier. Uma dessas permuta¸c˜oes ´e a identidade. A outra ´e a matriz correspondente `a permuta¸c˜ao definida pela equa¸c˜ao (3.6), isto ´e,
J = 1 0 · · · 0 0 0 · · · 1 ... ... ··· ... 0 1 · · · 0 .
Verifica-se facilmente que esta matriz ´e o quadrado da matriz de Fourier, donde ime- diatamente se infere a comutatividade referida. Se considerarmos um elemento de Cn como uma sequˆencia de n amostras dispostas ao longo de n posi¸c˜oes num eixo temporal e repetidas periodicamente, a permuta¸c˜ao J pode interpretar-se como uma invers˜ao do eixo temporal, expressa pela mudan¸ca de vari´avel t0 = −t. A transformada
de Fourier para fun¸c˜oes de vari´avel real apresenta uma propriedade de invariˆancia se- melhante. De facto, se ˆf (ω) for a transformada de Fourier de f (t), ent˜ao ˆf (−ω) ser´a
a transformada de Fourier de f (−t).
Repare-se que J2 = I pelo que as permuta¸c˜oes {I, J} formam de facto um grupo.
Existem outras maneiras de interpretar estes resultados. Observemos que existem sempre duas ra´ızes quadradas da unidade, m´odulo n, para qualquer n. Uma ´e a pr´opria unidade, claro, e a outra ´e (−1) mod n, que ´e congruente com n − 1 para o m´odulo n. Alternativamente, se n for um primo ´ımpar ent˜ao 2 dividir´a n − 1, pelo que o n´umero de solu¸c˜oes de x2 ≡ 1 mod n ser´a exactamente 2, pelo teorema de
Lagrange Rose (1988).
As duas solu¸c˜oes de x2 ≡ 1 mod n que existem sempre, independentemente do
3.3. SOBRE A NECESSIDADE DA CONTIGUIDADE 63
Ordem N´umero de solu¸c˜oes Solu¸c˜oes
4 2 1,3 5 2 1,4 6 2 1,5 7 2 1,6 8 4 1,3,5,7 9 2 1,8 10 2 1,9 11 2 1,10 12 4 1,5,7,11 13 2 1,12 14 2 1,13 15 4 1,4,11,14 16 4 1,7,9,15 17 2 1,16 18 2 1,17 19 2 1,18 20 4 1,9,11,19 21 4 1,8,13,20 22 2 1,21 23 2 1,22 24 8 1,5,7,11,13,17,19,23
Tabela 3.1: Ra´ızes quadradas da unidade m´odulo n, para v´arios valores de n. um primo estas duas permuta¸c˜oes s˜ao as ´unicas que existem, e o grupo de permuta¸c˜oes
Cn reduz-se a {I, J}.
O menor m´odulo n para o qual existem mais de duas ra´ızes da unidade ´e n = 8, sendo as ra´ızes 1, 3, 5, e 7. Por curiosidade, as permuta¸c˜oes correspondentes a 3 e 5 s˜ao as seguintes: π3 = Ã 0 1 2 3 4 5 6 7 0 3 6 1 4 7 2 5 ! , π5 = Ã 0 1 2 3 4 5 6 7 0 5 2 7 4 1 6 3 ! .
O n´umero de permuta¸c˜oes deste tipo, isto ´e, a ordem do grupo Cn, ´e uma quantidade
com algum interesse. A tabela 3.3.1 d´a conta desse n´umero para v´arios valores de n. Existe a possibilidade de calcular com alguma facilidade o n´umero de ra´ızes qua- dradas da unidade m´odulo n, e logo a ordem do grupo Cn. Primeiro, por´em, s˜ao
necess´arias algumas defini¸c˜oes. Pelo s´ımbolo (m, n) designaremos o m´aximo divisor comum dos inteiros m e n.
Defini¸c˜ao 3.3.1 Uma fun¸c˜ao ψ ´e multiplicativa se aplicar os inteiros positivos num
A fun¸c˜ao multiplicativa trivial ´e a fun¸c˜ao nula. Note-se que se uma fun¸c˜ao ψ ´e multiplicativa e n˜ao nula ent˜ao ψ(1) = 1.
Considere-se a equa¸c˜ao
f (x) ≡ 0 (mod n), (3.8) onde f ´e um polin´omio em x de grau pelo menos unit´ario, com coeficientes inteiros. Seja n = k Y i=1 pαi i
a decomposi¸c˜ao de n em factores primos. ´
E conhecido que a equa¸c˜ao (3.8) tem solu¸c˜ao se e s´o se cada uma das equa¸c˜oes
f (x) ≡ 0 mod pαi
i possuir solu¸c˜ao. De facto, admita-se que ´e poss´ıvel determinar xi
(1 ≤ i ≤ k) tal que f (xi) ≡ 0 mod pαii. Utilizando um resultado bem conhecido Rose
(1988) chega-se `a conclus˜ao de que existe um e um s´o x tal que x = xi mod pαii, e que
portanto ´e uma solu¸c˜ao de (3.8). Esta solu¸c˜ao ´e determinada pelo conjunto dos xi,
no sentido de que cada uma das solu¸c˜oes xi de f (x) ≡ 0 mod pαii d´a origem a uma
solu¸c˜ao diferente de (3.8).
Pode provar-se esta ´ultima afirma¸c˜ao por redu¸c˜ao ao absurdo. Suponha-se que existem duas solu¸c˜oes n˜ao congruentes xk1 e xk2 da equa¸c˜ao f (x) ≡ 0 mod p
αk k e um x tal que x = ( xi (mod pαii) se i 6= k, xk1 (mod p αk k ), e x = ( xi (mod pαii) se i 6= k, xk2 (mod p αk k ).
Isto implica xk1 ≡ xk2 mod p αk
k , uma contradi¸c˜ao.
Vemos assim que o n´umero de solu¸c˜oes de (3.8) ´e uma fun¸c˜ao multiplicativa. Tomando o caso particular f (x) = x2− 1 chegamos ao seguinte resultado.
Teorema 3.3.4 O n´umero de matrizes de permuta¸c˜ao de ordem n que comutam com
a matriz de Fourier ´e uma fun¸c˜ao multiplicativa n˜ao trivial de n.
A confirma¸c˜ao ´e f´acil de fazer para os valores de n tabelados na figura 3.3.1. Tome-se por exemplo n = 24. Nesse caso n = 2331 e ψ(8) = ψ(3)ψ(8) = 2 × 4 = 8.
´
E ainda poss´ıvel determinar as solu¸c˜oes de
f (x) ≡ 0 (mod 2k+1) (3.9)
com base nas solu¸c˜oes de
f (x) ≡ 0 (mod 2k). (3.10)
Este ´e um caso particular de um problema estudado em Rose (1988). O resultado que nos interessa resume-se ao seguinte. Seja x uma solu¸c˜ao de (3.10). O inteiro
3.4. UMA PERSPECTIVA DIFERENTE 65
´e uma solu¸c˜ao de (3.9) se e s´o se
2tx + x2− 1
2k ≡ 0 (mod 2). (3.12)
Um exemplo tornar´a mais clara a utiliza¸c˜ao deste resultado. Suponhamos que se pretendem as solu¸c˜oes de
x2 ≡ 1 (mod 8)
sabendo-se que as solu¸c˜oes da mesma equa¸c˜ao s˜ao, para o m´odulo 4, os inteiros 1 e 3. Como ´e f´acil ver, a equa¸c˜ao (3.12) reduz-se a 2t ≡ 0 (mod 2), neste caso. Tomando
t = 1 e substituindo em (3.11) obtˆem-se imediatamente as solu¸c˜oes 5 e 7.