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Sendo um romance baseado em fatos reais, a obra de José do Patrocínio terá personagens inspiradas em pessoas reais, como mostramos anteriormente. Em contrapartida, existem as personagens sobre as quais não encontramos registros. Para apresentar essas personagens, daremos como exemplo as filhas de Francisco Benedito, que somente aparecem na imprensa e no processo como vítimas sem nomes, mas no romance de José do Patrocínio receberam vida, descrições físicas e ações. Começaremos por Chiquinha, que aparece no romance como uma mulher branca, linda, pura e intocável. Há

151

O Diário do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, 08 mar. 1855. p.1

152 TINOCO, Godofredo. op. cit. pp. 159 e 162 153 Idem. p.166

outra personagem, também filha de Francisco Benedito, Mariquinhas. Ela tem 15 anos de idade, é apaixonada pelo feitor Manuel João, e é correspondida. A adolescente é dona de uma grande beleza:

Mariquinhas era realmente bela, arqueavam-se-lhe sob as narinas finas os lábios semelhantes às asas do tigé no sanguíneo colorido, e orlavam-lhe a testa pequena bastos cabelos negros, descendo em ondas lustrosas a envolver-lhe dois terços da estatura mediana. Seu colo igualava a curva de um arco bem talhado, de que partissem à pequena distância as extremidades pontiagudas de duas setas. Quando nas horas de trabalho ela com as mãos aristocráticas conchegava ao corpo a saia de chita, esta compressão e a justeza do corpinho faziam lembrar os contornos de uma estátua [...].154

Entre as irmãs Chiquinha e Mariquinhas há uma grande semelhança: ambas possuem a beleza inspirada na fauna e flora brasileiras. Ambas são puras e sinceras, suas características assemelham-se ao tipo romântico: a mulher jovem de grande beleza e intocável. Como a irmã Chiquinha, Mariquinhas também é desejada. Seu pretendente é o feitor Manuel João, porém entre ambos há uma oposição. Ela é branca e ele mestiço:

O moço feitor fascinara-se desde logo pela sertaneja encantadora; e agora que o ciúme assolava-lhe as faculdades, ele, para concluir que havia uma torpeza no desapego de Mariquinhas por si própria e pelos preconceitos sociais, punha-se em paralelo com ela.

Refletia-se no seu despeito sem causa e via-se bem diferente do harmonioso conjunto de sua amante.155

O feitor desconfiava do verdadeiro amor de Mariquinhas. Não cria que uma moça branca e bela poderia apaixonar-se por um homem mestiço. Manuel João acreditava que Mariquinhas poderia ter sido desonrada por outro, e assim o consórcio com um feitor, pudesse reparar esse dano. Mas as características de Mariquinhas desenham-na uma mulher sem máculas:

[...] o olhar macio da moça, filtrado através de uns cílios negros, sedosos; olhar de pouco brilho, despretensioso, animador - uma gota de óleo contendo um raio de luz, a derramar-se em inundação diáfana sobre um

154

PATROCÍNIO, José do. op. cit.. 02 jan. 1878. p.1

rosto oval, de linhas harmônicas, transparecendo singeleza e sinceridade.156

O aspecto físico revela-lhe a pureza, mas também há algumas marcas que evidenciam esta informação. Existe uma passagem do romance em que Mariquinhas será deflorada pelo feitor. Momentos antes do acontecimento, a adolescente dorme tranquilamente enquanto é admirada pelo seu pretendente. Durante o sono, carrega nos seios um lencinho branco para proteger seu colo de qualquer olhar indiscreto, e o narrador diz que a personagem “ressonava brandamente através dos lábios virgíneos”157. São utilizados símbolos para reforçar a posição de pureza da personagem no romance: o lenço branco e os lábios virginais.

Há outra filha de Francisco Benedito, Antonica; suas ações são mais destacadas do que sua aparência física. Ela possui nobreza de caráter e é apaixonada pelo fazendeiro Motta Coqueiro:

Era tão zelosa do seu ideal, que percebia ao longe a mais imperceptível sombra que se dirigisse para ele [...]

Naquela alma tão trabalhada, e que de repente viu-se forçada a quebrar o sigilo que se pusera, o despeito chegou até a alucinação.

[...]

Santificava-lhe o desalinho das feições a solenidade da tristeza e recatava- lhe a desenvoltura da frase a eloquência da dor.158

Esta confusão de sentimentos apresentada na passagem citada refere-se ao amor proibido de Antonica por Manoel da Motta Coqueiro. Antonica sofre profundamente por não ser correspondida, mas reconhece a condição de seu amado, homem casado e sobretudo fiel.

Para finalizar esse rol de personagens sem registro de sua existência real, falaremos de um personagem que aparece ao final do romance, um mestiço chamado Herculano. Este, quando estiver em seu leito de morte, confessará ao filho que matou Francisco Benedito e toda sua família por vingança. Sua descrição física é apresentada no texto:

156

Idem

157 Idem.15 jan. 1878 158 Idem. 12 jan. 1878. p. 1

Apesar das maneiras humildes e submissas, o recém-chegado não atraiu nenhumas simpatias no lugar, antes para a antipatia geral concorriam poderosamente as feições do caboclo.

O seu rosto pentagonal, de pomas carnudas e salientes, os beiços grossos, o nariz chato, e sobretudo os seus olhos que não se atreviam nunca a encarar e só obliquavam uns olhares furtivos e maus, esse conjunto fisionômico induzia a população a guardar certa reserva para o espontâneo imigrante.

Para explicar a repulsão que instintivamente sentia a população dizia dissimulando os seus sentimentos.

- Nada de amizades com caboclos; são muito desconfiados; nunca se sabe quando estão pelos pés ou pelas mãos, e foi um dia... Tem-se visto muita cousa.159

No início da descrição existe um elogio até chegar ao ponto de vista da população local, que acreditava não se dever confiar em caboclos, pois são perigosos. Por fim, o narrador confirma a tese popular, pois, embora esse homem tenha um jeito humilde e dócil, foi capaz, no passado, de matar uma família inteira, e deixar outro pagar por seu crime.

Esse personagem provavelmente foi inspirado em uma pessoa citada em um suposto telegrama noticiado pela Gazeta de Notícias, segundo o qual um homem teria revelado em seu leito de morte a um padre, ter sido ele o verdadeiro assassino de Francisco Benedito e toda a sua família. Porém a notícia de jornal não apresentava as características físicas do moribundo:

Há dias, noticiamos que ao expedicionário de S. João da Barra fora dirigido um telegrama dizendo que, em Itabapoana, achando-se um homem nos paroxismos da morte revelara ao padre que se achava à sua cabeceira, prestando-lhe os socorros espirituais, ter sido o autor dos assassinatos que levaram ao patíbulo, em nome da lei, Motta Coqueiro e mais três infelizes em 26 de agosto de 1855.160

Através do levantamento de personagens reais e fictícias, vimos que o romance- folhetim de José do Patrocínio, possui registros históricos, pois o escritor recolhe dados da imprensa e do processo-crime para construir sua obra, e ao mesmo tempo, cria personagens fictícias e transforma as personalidades já existentes. Assim, consegue tornar a história mais verossímil e convincente para o leitor. A seguir discutiremos como esse procedimento

159 Idem. 03 mar. 1878. p.3

pode se relacionar às características desse folhetim como um romance contra a pena de morte.