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De acordo com DA MATTA (1990), o que diferencia as sociedades é a ocorrência regular de um certo número de dramas levados a efeito e que são específicos de cada formação social. Assim como existem dramatizações que são

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regulares, há, também, personagens recorrentes, que são coerentes com nossas formas cerimoniais mais básicas. Existem, portanto, determinados padrões e certas características que podem ser identificados em nossas personagens paradigmáticas ou heróis. A fim de tornar mais clara a comparação que será feita entre alguns de nossos heróis e a trajetória do Binômio, serão descritos, de acordo com DA MATTA (1990), os principais padrões e características do malandro, do justiceiro e do renunciador.

Diferente dos Estados Unidos, no Brasil não é o homem comum – regular guy – que se transforma em personagem paradigmática. Para ser interessante, o herói brasileiro precisa sempre ter algo de trágico, uma trajetória cheia de peripécias, ser marcado desde o início por algum sinal particular, um caráter especial, alguma coisa que lhe seja intrínseca.

De acordo com o padrão brasileiro, verifica-se nestes heróis a existência de uma vocação para o desmascaramento e a vingança, o que certamente contribui para lhes conceder popularidade e legitimação, tornando atraentes os Malasartes, Matragas, Lampiões e Conselheiros. À medida que cumprem seu destino, nossos heróis realizam as promessas de enriquecimento e de ascensão social presentes em nossos dramas e se transformam em personagens/super pessoas:

“(...) A trajetória do herói segue a mesma curvatura da sociedade que engendra a dramatização, já que, em ambos os casos, deve-se ser o que ainda não se é, o aceno do futuro aberto, rico e grandioso se constituindo no ponto crucial de todas as reviravoltas e tragédias que reproduzimos em nossas narrativas” (DA MATTA, 1990).

Ao enfrentar as maiores provas, o herói atesta suas qualidades excepcionais. São os obstáculos e sua superação que tornam claro que ele é de alguma forma predestinado e escolhido.

As personagens paradigmáticas brasileiras ou heróis que foram identificados com Binômio são compreendidas como sendo “atores típicos de rituais coletivos de inversão da ordem social brasileira” e, portanto, não se enquadram nas regras formais, se encontram fora do mercado de trabalho e, no caso do malandro, apresenta uma forma bem personalizada no modo de andar,

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falar e vestir-se, se encontrando num universo marcado pela criatividade, pela liberdade e pela improvisação. Suas normas são inventadas pelo seu coração, o que mostra a importância dos sentimentos, do que vem do interior. A malandragem traz em si a promessa de uma vida de sombra e água fresca e, sendo o malandro uma personagem intersticial, não deseja modificar o mundo, mas ora manter, ora burlar as regras. Identificando esta personagem paradigmática no plano ficcional com Pedro Malasartes, DA MATTA (1990) disse:

“(...) a figura de Pedro Malasartes é construída pelo povo em sua originalidade e generalidade, em sua previsão e anonimato, em sua ânsia de justiça e inconseqüência galhofeira, em sua esperança de um mundo diferente e em conformidade com as leis e a ordem”.

Portanto, assim como a sociedade brasileira, o mito de Malasartes é constituído por alguns paradoxos, sendo considerado parte das narrativas e dos fatos sociais básicos através dos quais nós nos definimos enquanto sociedade, povo e nação. Semelhante à Macunaíma, Malasartes se apresenta como “um herói sem nenhum caráter”, aquele que sabe reverter a seu favor as situações desvantajosas, e com seu espírito irreverente, galhofeiro, astuto e subversivo, persegue os poderosos, trazendo-lhes vingança e destruição.

Embora até determinado grau a malandragem seja aceita socialmente, o malandro é um outsider (BECKER, 1966), assim como o justiceiro e o renunciador, estigmatizados por sua trajetória meio suspeita e solitária. Os símbolos de poder e as hierarquias de nossa sociedade são ridicularizados e abandonados por eles, que exercem sua vingança – e no caso do renunciador, sua renúncia – na esperança de corrigir o mundo através da compensação das diferenças sociais.

De modo geral, o malandro nasce pobre e realiza uma trajetória marcada pela busca permanente de recursos de sobrevivência. No entanto, apesar de sua pobreza, Pedro Malasartes recusa as posições de prestígio e de poder. Mesmo apresentando um modelo de sobrevivência e sucesso, ele não conclui sua trajetória se integrando na ordem social:

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“(...) fica nos interstícios, recusando os pontos focais da sociedade. (...) Modelo prototípico do malandro e do herói das zonas ambíguas da ordem social, onde é difícil dizer o que é certo e errado, o justo e o injusto (...). Como Macunaíma, é um relativizador das leis, regulamentos e moralidades” (DA MATTA, 1990).

Malasartes estabelece relações paradoxais com o trabalho e com o que o trabalho pode trazer. Este paradoxo se define por condições da própria natureza de Malasartes: ser vadio, astuto e errante. A vadiagem lhe permite flutuar na estrutura social, entrar ou sair ou mesmo transcender esta estrutura. E a astúcia, que é o célebre jeitinho brasileiro, fornece a possibilidade de fazer uso das regras vigentes em proveito próprio, sem, contudo, destruí-las ou questioná-las. O jeitinho, tanto quanto a zombaria, são considerados a arma dos fracos e o poder dos fracos (LEWIS, 1963; TURNER, 1974). Por meio deles, Pedro realiza sua vingança. Assim sendo, o compromisso com o sistema é mantido através de uma relação jocosa e uma dose saudável de cinismo, aceitando-se, juntamente com a vingança, as próprias hierarquias do sistema social:

“Pedro exerce seu direito de vingança, mas não fica preso, como o Conde de Monte Cristo e os bandidos sociais brasileiros, a sua própria vingança. (...) Pedro não renuncia completamente à ordem, mas, também, não fica na plena marginalidade. Sua escolha, sejamos claros, é da esfera intermediária, aquela zona das inconsistências onde - vale repetir - não ter caráter significa justamente o inverso: ser homem de caráter e nunca, jamais, pretender reformar o mundo apresentando-se como o grande exemplo. Este, creio, é o paradoxo final dos Malasartes e dos malandros” (DA MATTA, 1990).

O justiceiro apresenta semelhanças com o Conde de Monte Cristo. Ao se ver injustiçado por seus inimigos, entra na zona liminal, adquire poder, definindo sua atuação social pela crueldade e pela generosidade para com os pobres e oprimidos. Procura se vingar promovendo justiça pelas próprias mãos e com seus próprios recursos. Valendo-se da violência, rejeita parcialmente a ordem social, pois em sua vingança, que se dá pelas armas e pela destruição física e moral de seus inimigos, reproduz as regras da própria ordem social. Ele é o vingador generalizado ou categórico (HOBSBAWN, 1975), que tem como objetivo principal destruir os inimigos para restabelecer a ordem social e resgatar sua honra e respeito.

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Assim sendo, cada qual ao seu modo, tanto o justiceiro como o malandro interagem com o sistema social através da aceitação da vingança e das hierarquias, o que não acontece com o renunciador, que, como Antônio Conselheiro, por exemplo, rejeitou totalmente a ordem social, reinventando um novo mundo. Seu papel paradigmático é criar um novo tempo, implementar as regras que inventa e renunciar radicalmente ao mundo e a sua vida pessoal, para se entregar de forma total a sua causa:

“(...) vimos a peça pelo ângulo de um malandro, agora é o momento de revê-la pelo prisma do renunciador, vertente que capta, como já apontei, não só as águas turbulentas dos penitentes e rezadores, esses atores que estão voltados para ‘um outro mundo’, mas também aquelas correntes que chegam das represas formadas pelos bandidos e marginais em geral, esses seres que parecem oscilar e ziguezaguear entre a ordem e a desordem, fazendo um trajeto de liminaridades e ficando, para usar a expressão de G. Rosa, na ‘terceira margem do rio’: na linha dúbia que separa a sociedade e seus trajetos sérios e ‘corretos’ dos seus porões escuros, do futuro e, muito provavelmente, daquilo que chamamos de esperança” (DA MATTA, 1990:250).

O renunciador é considerado o verdadeiro revolucionário num universo social hierarquizante como o brasileiro (DA MATTA, 1990). Seu problema fundamental é realizar seus ideais de justiça e paz social, criando um mundo alternativo e novo, acenando com a promessa de sua renovação social. Diferente do malandro e do justiceiro, o renunciador não atua em função de manter ou burlar individualmente as regras, mas de criar novos espaços sociais, romper com o sistema de forma total, renunciando às glórias deste mundo.

Concebido como figura paradigmática, o renunciador é relacionado no plano concreto a Antônio Conselheiro e no plano ficcional a Augusto Matraga. Considerando a renúncia como sendo a forma essencial de rejeição à sociedade realizada por esta personagem, há uma dupla aproximação possível de ser feita: com os padres da Igreja Católica Romana e com a política.

“(...) no caso do Brasil, (...) muitos políticos procuraram, como foi o caso típico de Jânio Quadros, apresentar-se como renunciadores deste mundo, obtendo clamoroso sucesso. Tudo indica que há uma relação direta entre o messianismo (social ou político), a presença do passado e o horror à mudança, de modo que o único meio possível de romper com o passado e libertar o futuro é imaginar um movimento social de mudança radical, com o futuro transformado em millennium e o líder político em messias” (DA MATTA, 1990).

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Pretende-se demonstrar, no capítulo seguinte, Resultados e discussões, as semelhanças significativas encontradas entre estas características destes heróis brasileiros e suas principais personagens recorrentes – o malandro, o justiceiro e o renunciador – que traduzem dramatizações regulares ou formas cerimoniais básicas de nossa formação social (DA MATTA, 1990) e os aspectos centrais da trajetória do Binômio. É importante ressaltar que embora haja uma identificação praticamente total entre as duas primeiras fases do jornal e o malandro e o justiceiro, o mesmo não se verificou entre sua terceira fase e o renunciador. Como procurar-se-á mostrar, Binômio viveu esse período de forma ambígua, com os interesses políticos e comerciais se sobrepondo, de um modo geral, aos ideais de uma nova ordem que tentava abraçar.

3.2. O cômico popular da Idade Média em Mikhail Bakhtin e o humor bino-