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A etnometodologia tem como pioneiros os trabalhos de Harold Garfinkel e enfatiza, como objeto sociológico, a compreensão dos etnométodos – “as realizações contingentes e recorrentes de práticas hábeis e organizadas da vida cotidiana” (GARFINKEL, 1984, p. 11). O aspecto de “organização” e “habilidade” das práticas cotidianas é o que, de acordo com a etnometodologia, pode ser considerado como a verdadeira ordem social. Esses etnométodos são apreendidos na forma de expressões indicativas58 e ações práticas. Portanto, os estudos etnometodológicos apoiam-se na apreensão de detalhes das interações, tidos como elementos constitutivos das estruturas, dos fatos sociais considerados comumente pela sociologia como fatos objetivos. Os detalhes das interações cotidianas indicam a construção das estruturas a partir da intersubjetividade dos atores (RAWLS, 2009).59 Segundo Paixão (1986, p. 95), o mérito da etnometodologia seria a discussão de questões macrossociais, como o poder, sem referências a “macroentidades como classe ou Estado”. Estas “macroentidades”, ao invés de

58 No original: “indexical expressions” (GARFINKEL, 1984, p. 4-7, 10-1).

59 Para Durkheim (2002b), “os detalhes da vida social transbordam da consciência por todos os lados” (p. 16) – os etnometodólogos propõem-se, portanto, a “realizar este aforismo de Durkheim”, por meio da ênfase nesses detalhes (GARFINKEL, 1984, p. vii-ix; 2007). Ver ainda Heritage (1999) e Paixão (1986).

serem tidas como meios heurísticos da pesquisa social, são entendidas como construtos das interações em sua dimensão prática, de modo que é conveniente, sob esta perspectiva, tratar da questão da polícia democrática a partir das interações policial-cidadão.

Nessa vertente de pensamento social, Garfinkel publicou, em 1963, um estudo sobre a confiança, concebida como condição indispensável para a existência dos etnométodos. O texto propunha que apenas com a confiança recíproca seria possível a manutenção de uma interação minimamente ordenada, sendo a base indispensável para a construção de vínculos de solidariedade e de ações coletivas. Para Garfinkel, confiar é agir socialmente com base em certas expectativas fundamentais para o intercâmbio social. Confiança é assim concebida como “a conformidade de uma pessoa em relação às expectativas da atitude da vida cotidiana como uma moralidade” (GARFINKEL, 1984, p. 50).60 Na definição de quais são as expectativas da vida cotidiana envolvidas na confiança, Garfinkel utiliza-se da metáfora do jogo: para que se constitua um jogo ou uma interação social, quaisquer que sejam, três pré- requisitos se fazem necessários em termos de expectativas:

(1) Do ponto de vista do jogador, por territórios alternativos de jogo, número de jogadores, sequências de jogadas, e assim por diante, é concebida uma posição que o jogador espera escolher independentemente de seus desejos, circunstâncias, planos, interesses ou consequências de escolha, tanto para ele mesmo quanto para os outros. […] (2) O jogador espera que a mesma série de alternativas obrigatórias se aplique ao outro jogador, da mesma forma que se aplica sobre ele. […] (3) O jogador espera que, assim como ele espera o acima exposto da outra pessoa, a outra pessoa espere isto dele. […] Denominem-se essas três propriedades como expectativas constitutivas (GARFINKEL, 1963, p. 190, tradução nossa).

Quando participamos de uma interação, assim como quando participamos de um jogo, esperamos que todos os participantes atuem segundo as regras do jogo. Esperamos, além disso, que os demais participantes mantenham, reciprocamente, expectativas similares às nossas. O agir com base nessas expectativas é pré-requisito para que o jogo exista e nisto consiste a confiança. Confiamos que o outro irá se ater ao que consideramos ser uma interação normal e que compartilhamos com ele nossas expectativas de normalidade. Caso contrário, como demonstrado por Garfinkel em procedimentos empíricos, nossos movimentos e os do outro se tornam ininteligíveis, pois perdem o sentido que a eles era conferido por nossas expectativas quanto às regras do jogo. Portanto, não há interação sem as regras que a tornam palpáveis ao conhecimento humano, ou seja, as interações não se concretizarão como

fenômeno, caso não sejam satisfeitas certas expectativas, chamadas assim de constitutivas. Nesse sentido, deve-se ressaltar que, para a etnomedologia, a rotina, o cotidiano da vida social, constitui a estrutura sobre as quais se fundam os etnométodos, considerando que a rotina confere o caráter de normalidade aos movimentos empreendidos no jogo (GARFINKEL, 1984).

As expectativas constitutivas são formas de conhecimento tácito. Na sistematização do conceito de confiança, Garfinkel recorre à teoria social de Schutz, para quem as expectativas mais básicas da vida social fazem todas parte de sistemas de relevância presentes na consciência individual. Os sistemas de relevância contêm “conhecimento graduado de elementos relevantes, sendo o grau de conhecimento desejado correlacionado com sua relevância” (SCHUTZ, 1944, p. 500), nem sempre estando acessíveis à reflexão dos indivíduos. Portanto, pode-se dizer que as expectativas constitutivas são uma forma de conhecimento tácito, ou seja, elas consistem de conteúdos do sistema de relevância dos atores sem que, contudo, se apresentem de maneira clara à ação e ao pensamento refletidos.

Assim como Giddens recorre à análise de situações críticas para mostrar as funções da confiança básica, Garfinkel (1963; 1984) buscou demonstrar a indispensabilidade das expectativas constitutivas por meio do que denominou “demonstrações de ruptura” (breaching demonstrations).61 Uma dessas clássicas demonstrações (GARFINKEL, 1984, p. 42-4) consistia em um “experimento”, no qual o experimentador engajava-se, sob contextos normais de interação, em conversações com contrapartes “cobaias”, não informadas previamente sobre a pesquisa. Para levar a cabo a demonstração, o experimentador solicitava esclarecimento sobre tudo que era dito pelo interlocutor, mesmo sobre aquelas expressões mais triviais. Isso implicava, por exemplo, que a pergunta corriqueira “Como vai você?” era respondida com solicitações do tipo “Como eu estou com relação a quê? Minha saúde, minhas finanças, minha atividade escolar, minha paz de espírito, minha...?” (p. 44). O resultado deste e de outros experimentos, em que as expectativas de entendimento recíproco eram propositalmente desapontadas, tornando não confiáveis os movimentos dos jogadores, era, invariavelmente, o fim da interação, em razão da desistência das “cobaias”. Os próprios experimentadores também relatavam dificuldades em persistir na interação. Garfinkel (1963) denominou como

61 Garfinkel (1984, p. 37) assim descreve seu propósito com as demonstrações: “Os estudos relatados neste paper tentam detectar algumas expectativas que emprestam aos incidentes comuns seu caráter familiar e de vida-como- usual, relacionando estes às estruturas sociais estáveis das atividades diárias. Operacionalmente, é minha preferência começar pelos incidentes familiares e perguntar o que pode ser feito para criar problemas”.

estados anômicos, os estados individuais sucessivos às rupturas, considerando o colapso dos padrões de normalidade que antes estruturavam a adesão dos indivíduos à interação.62 Garfinkel explica esses resultados como funções do abalo à confiança, considerando que regras básicas, que definem o transcurso normal de uma conversação, foram infringidas pelos experimentadores, tornando-os não confiáveis naquela situação. Por meio do experimento em que esclarecimentos sobre expressões triviais eram incessantemente solicitados, Garfinkel buscou demonstrar a indispensabilidade de expectativas sobre o entendimento mútuo da linguagem no cotidiano: esperamos não precisar esclarecer sobre cada termo utilizado em uma conversação, de vez que pressupomos que nossos interlocutores tenham já certo conhecimento prévio sobre o que queremos dizer com eles.63 As demonstrações de Garfinkel evidenciam ainda o caráter tácito das expectativas constitutivas, pois os participantes-cobaias dos experimentos, mesmo tendo suas expectativas básicas frustradas, não conseguiam expressar de maneira clara o que havia ocorrido de errado com a interação64.

Acrescenta-se que, nas interações, como nos jogos, há também expectativas não constitutivas. Jogadores podem esperar movimentos específicos de si mesmos e dos outros participantes do jogo, mas, desde que os lances não infrinjam as regras, tais expectativas não são indispensáveis para que o jogo transcorra de forma compreensível. Da mesma forma, podemos esperar encontrar, em nossas interações, determinadas reações que, desde que tidas como normais, não comprometem o fluxo da interação. Isso porque, mesmo sob expectativas frustradas por discordâncias ou reações imprevistas, a interação pode ainda se desenvolver de maneira inteligível para os participantes.

Conforme mencionado acima, podem existir conflitos entre as expectativas não- constitutivas, sem prejuízo para a confiança e, portanto, sem comprometer o prosseguimento na interação. Conflitos, entendidos como dualismos divergentes, são, como afirma Simmel (1983), formas possíveis de sociação, desde que tal divergência não se dê no plano das expectativas básicas, ou constitutivas. Por exemplo, quando dirigimos uma pergunta a

62 A questão dos estados anômicos será tratada mais adiante nesta tese.

63 Segundo Garfinkel (1984), trata-se da “cláusula do etc.” (p. 38-44), que regula a quase totalidade das interações cotidianas, e proporciona inteligibilidade a atos comunicativos reduzidos como monossílabos, gestos, referências a conversas passadas etc.

64 Encontra-se aí uma das funções dos estudos sociológicos sobre confiança: tornar explícitos os pré-requisitos para que as interações sejam ordenadas de forma inteligível e, portanto, bem-sucedidas (RAWLS; DAVID, 2005).

alguém, somos guiados por uma série de expectativas: esperamos que o outro escute, entenda e responda de forma inteligível. Estes são exemplos de expectativas constitutivas, como aquelas frustradas nas demonstrações de Garfinkel. Mas podemos também esperar uma resposta positiva a nossa pergunta e, então, sermos surpreendidos com uma resposta negativa. Nesse caso, a surpresa não desfaz a possibilidade de que o jogo da conversação continue, evidenciando que as expectativas frustradas eram de qualidade não-constitutiva. De forma semelhante, é comum que usuários recorram a delegacias de polícia ou abordem policiais em patrulha, trazendo-lhes determinada demanda, e que essa demanda seja questionada se é ou não domínio da atividade policial.65 Se os requisitos constitutivos são observados, é possível haver conflito entre as perspectivas do usuário e do policial, divergência que se desenvolve no interior de vínculo de confiança.

Para clarificar a distinção entre as expectativas constitutivas e não-consitutivas, pode- se associá-la a duas outras distinções relevantes no contexto da teoria social. Primeiramente, temos a distinção, trazida por Luhmann (1995), entre expectativas normativas e expectativas cognitivas. As expectativas normativas são aquelas que não se modificam quando frustradas ou contraditas. Já as expectativas cognitivas são aquelas cujo desapontamento ou contradição levam a um aprendizado, a uma mudança nas expectativas. Embora cada distinção pertença a diferentes tradições sociológicas, pode-se dizer que as expectativas constitutivas são normativas, de vez que persistem como pré-requisito social, mesmo quando eventualmente são frustradas. As expectativas cognitivas, correspondentemente, podem ser associadas ao conhecimento que os participantes adquirem com a experiência sobre como atingir mais efetivamente seus objetivos dentro do jogo.

Outra distinção imprescindível à definição de confiança aqui utilizada diz respeito à diferença entre ação social e relação social. Max Weber (2000, p. 13-5) define ação social como comportamento humano cujo sentido consiste em orientar-se pelo “comportamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro” (p. 13). A relação social é concebida como um tipo mais específico de ação social, no qual o comportamento não se orienta apenas por outros, mas pela reciprocidade encontrada em outros: “Um mínimo de relacionamento recíproco entre as ações de ambas as partes é, portanto, característica conceitual [da relação social]” (p. 16). Dado que a confiança, conforme definida neste estudo,

refere-se às expectativas de reciprocidade e à reciprocidade nas expectativas, ela pode ser considerada um tipo de relação social.

Estabelece-se assim a distinção entre a noção de confiança como reciprocidade, concebida no âmbito da teoria da estruturação e da etnometodologia, e o conceito que define confiança como uma ação social não recíproca, tal como ocorre na vertente da teoria da escolha racional. Esta última define a confiança como uma aposta no comportamento de outros. Entretanto, para apostar na ação futura dos outros, não é necessário que o outro reciprocamente comprometa-se com uma aposta ou com uma ação de mesmo sentido. Assim, conquanto essas apostas sejam ações sociais, orientadas por outros, elas não necessariamente constituem uma relação social.

De modo a conferir maior precisão à definição utilizada neste estudo, é proposta a seguinte distinção, baseada nos conceitos weberianos: a confiança agencial refere-se a um sentido da ação individual, incluindo as apostas que fazemos nas “jogadas” de outros participantes da interação; já a confiança relacional baseia-se em expectativas de que o outro participe de forma recíproca do jogo interativo, aproximando-se do que Weber define como relação social. Outra diferença fundamental entre as duas modalidades de confiança está em que as expectativas envolvidas na confiança agencial não são constitutivas: estimativas sobre as jogadas do outro fazem parte dos jogos, podendo ser frustradas sem prejuízo para o prosseguimento da interação. Pode-se afirmar que as interações podem normalmente incluir o conflito entre expectativas agenciais. Por outro lado, quando se fala em confiança relacional, há pressupostos constitutivos sobre reciprocidade que, caso contrariados, comprometem a existência da interação, conforme postulado por Giddens e demonstrado por Garfinkel. Enquanto a ideia de confiança como aposta pode ser identificada com a confiança agencial, a noção que envolve indispensavelmente a reciprocidade pode ser designada como confiança relacional.

O presente estudo trata exclusivamente da confiança relacional envolvendo policiais e moradores civis da Grande Brasília. Da noção de confiança presente na perspectiva da etnometodologia decorrem duas das três hipóteses de estudo: (a) para a manutenção de uma interação, em que os movimentos de policiais e cidadãos que coparticipam do encontro devem ser inteligíveis, é indispensável a presença da confiança relacional, da ação coerente com as expectativas de reciprocidade trazidas pelos indivíduos que interagem. Supõe-se assim que as práticas que contradizem essas expectativas tendem a romper a confiança e, caso a primeira

hipótese seja confirmada, as interações policial-cidadão deixariam de existir. Verifica-se a hipótese de que (b) quanto mais intensas forem as expectativas de reciprocidade maior será a percepção da confiança nas interações envolvendo mandatários das organizações policiais e membros da população civil. A terceira hipótese de trabalho deriva do debate em torno da relação entre confiança e instituições, questão que é apresentada na próxima seção.

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