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Perspetivas da Antropologia Cultural sobre o Património 34

Capítulo  II:   Revisão de Literatura ­‐ A Terra, a Memória e o Corpo 12

II.  1.             O ‘Regresso-­‐à-­‐Terra’ Como Prática Antropológica 12

II.  2.3         Perspetivas da Antropologia Cultural sobre o Património 34

O conjunto de perspetivas críticas que têm sido elaboradas sobre os processos de objetificação e mercantilização do “imaterial”, conduzem-nos a uma reflexão sobre as possibilidades e adversidades no processo de compatibilização do fundo religioso do ritual da Encomendação com as suas práticas patrimoniais. Neste sentido importa refletir sobre o modo como o ritual, outrora marginalizado, se reintroduz agora como um expressão oficializada e institucionalizada. Partindo da ideia de pertença identitária, reintroduzem-se

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práticas outrora marginalizadas15 em expressões oficializadas e institucionalizadas, processo que Hafstein define como a incorporação oficial da cultura como arcaísmo: “…this process demonstrates how residual and alternative culture – like craftsmanship, oral tradition, or ritual – is incorporated into official culture as archaism...” (2007: 95). Este processo é acionado pela implementação do ‘regime patrimonial’, que passa pela construção teórica de legitimação do mesmo “while the patrimonial regime is among other things a formation of knowledge, replete with experts and professionals, journals and conferences, these are largely concerned with means rather than ends...” (2007: 76). Nestes processos tem contribuído em grande medida o trabalho de reflexividade e atuação da antropologia, que tem estabelecido as articulações necessárias entre o conceito de cultura e domínio do património, o imaterial em particular, legitimando assim um conjunto de práticas, pelo seu intrínseco valor cultural (Leal, 2010 e 2013; Raposo; 2004).

Para além dos entendimentos críticos que focalizando-se nas políticas patrimoniais, tendem a reduzir os processos de patrimonialização a um conjunto de ações políticas e económicas sobre a cultura, há que observar estas mesmas questões relativas à propriedade ou à apropriação da cultura sob um outro prisma. Janet Blake (2009) alerta para a importância e necessidade de uma abordagem mais participativa e colaborativa, que não prescinda do envolvimento ativo das comunidades ou que se fique pela informação- consentimento, das ações de proteção e salvaguarda do património cultural imaterial. Um estudo da Encomendação enquanto expressão e prática do património local, permitirá pensar em como convivem diferentes atitudes face ao processo de patrimonialização, que em alguns casos se emancipam de políticas patrimoniais, ou que convivem pacificamente e produtivamente com estas.

Quando se reporta a práticas ou expressões de grupos que se identificam enquanto tal, o património imaterial pode ser entendido como um espaço privilegiado para a interação e expressão de grupos, que procuram ser reconhecidos como tal, e ver os seus ‘saberes’ ou práticas valorizados. Coloca-se então a questão de saber quem são esses sujeitos coletivos e que tipo de grupos eles formam. No caso da Encomendação é a memória do ritual que faz do sujeito um elemento do grupo? É a necessidade ou vontade comum de libertar as almas do Purgatório que define este sujeito coletivo? será o ‘know how’

                                                                                                                         

15   A Igreja tentou combater a prática do ritual da Encomendação das Almas, fazendo com que este

desaparecesse em muitas regiões do país. A urgência da depuração da prática de religiosidade de cariz popular (em que a pureza ortodoxa não fosse respeitada), marginalizou estas práticas (Dias, 1954:96).  

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da magia do ritual o que define a identidade do grupo? ou a vontade ou grau de envolvimento na recriação da tradições? Importa aqui, não tanto delimitar um grupo circunscrito, mas de sublinhar a primazia da ação coletiva de quem pratica as encomendações sobre a sua emblematização ou politização, contrariando uma visão de “individualismo possessivo” (Leal, 2013: 13), por vezes associada ao Património.

O âmbito internacional de atuação da categoria do Património Cultural Imaterial (PCI), tal como foi convencionada pela UNESCO (2003), exerce uma forte influência sobre os projetos de revitalização e emblematização da Encomendação a nível local e regional. Representantes do poder municipal (ex. presidentes das câmaras, técnicos de turismo, vereadores da cultura, diretores de centro culturais) em conjunção com “ilustres” locais (ex., historiadores, etnógrafos, etc.) elaboram discursos e produzem iniciativas sobre a salvaguarda do “seu” PCI. Contudo, os antropólogos têm-se mostrado resistentes ao projeto da UNESCO de institucionalização do PCI. Chiara Bortolloto no texto “Le Trouble du Patrimoine Culturel Immatériel” (2011), argumenta que desde que a UNESCO expandiu o âmbito do Património, com a introdução da categoria de PCI, têm prevalecido as perspetivas criticas e de desconfiança dos antropólogos em relação às políticas de implementação do mesmo (2011: 22).

Sharon MacDonald numa obra intitulada Memorylands, designa de “memory- heritage-identity complex”, um conjunto de concepções de “património”, predominantes, que parecem limitar-se ao debate em torno de questões da ‘identidade’ ou da ‘propriedade’, estritamente ligadas às práticas classificatórias implementadas por instituições como a UNESCO (2013: 65). Como alternativa, a este modelo dominante, propõe-nos a utilização de um fenómeno empírico que define como ‘past presencing’ que consiste em observar como “… pessoas com experiências diferentes, compreendem e produzem o passado no presente” (ibid.: 65); um novo desafio para os antropólogos seria a compreensão deste fenómeno e de como convive com as políticas patrimoniais. O ressurgimento da Encomendação na atualidade apresenta-se assim como um caso particularmente interessante para pensar este fenómeno de presenciar o passado, num duplo sentido: o de as pessoas sentirem a necessidade de presenciarem (por meio do ritual) a memória dos que partiram (referentes a um passado), e o de re-presenciarem uma tradição do passado das suas terras. Ambos os casos parecem poder ser entendidos como inscrições nostálgicas do passado no presente.

Tendo em consideração a presente revisão de literatura crítica sobre as atuais problemáticas sobre os processos patrimoniais e sobre o que estes implicam no objeto que

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pretendo estudar, compreendo o Património como base na proposta apresentado por Regina Bendix no texto “Heritage between economy and politics” (2009) - como uma ‘construção’ feita a partir de práticas culturais do quotidiano:

Cultural heritage does not exist, it is made. From the warp and weft of habitual practices and everyday experience – the changeable fabric of action and meaning that anthropologists call ‘culture’ – actors choose privileged excerpts and imbue them with status and value. (Bendix, 2009: 255)

Neste sentido o património é aqui entendido como verbo: ‘patrimonialização’, designa um conjunto de ações que consistem numa inclusão e atualização de processos anteriormente analisados – objetificação, folcorização, emblematização e mercantilização. Esta perspetiva é complementar ao entendimento de património, apresentada por Lauranjane Smith (2006), como uma performance multifacetada: “Heritage is a multilayered performance (…) – that embodies acts of remembrance and commemoration while negotiating and constructing a sense of place, belonging and understanding in the present” (Smith, 2006: 3). Essa performance geralmente conduz a versões consensuais da história podendo também servir para desafiar e promover um redefinição de valores e identidades de grupos subalternos (ibid.: 4). A patrimonialização é também um ato discursivo que se apresenta maioritariamente sob a forma de um ‘authorized heritage discourse’, mas que Smith argumenta que pode surgir também vinculado a discursos de recriação ‘identitários’ ou de negociação e regulação social (ibid.: 5). A partir desta formulação de ‘património como construção’, o trabalho da antropologia cultural sobre processos de patrimonialização poderá ser compreendido como a produção de uma ‘estética negativa’ – em relação à que é apresentada em brochuras de turismo e material promocional e informativo, que circula no quotidiano (Bendix, 2009: 255).