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2. SOBRE O MÉTODO REDE – MATERIALIDADES, ESPACIALIDADES E CIRCULAÇÕES

2.2 Cartografia de Controvérsias

2.2.2 Pesquisadora-Actante: entre o cigano e o cientista

“Quem teria ouvido a longa série de objeções levantadas durante três séculos por adoradores tropicais acusados de fetichismos?” (Latour, B.)

O começo do campo se faz ao perceber que não existe “o” campo. As fronteiras, antes tão bem demarcadas pelos modernos, entre o cientista e o seu objeto, não deixaram espectros. O que ocorre é uma imersão num saber-fazer, operando e narrando (ação-reflexão), tecendo e sendo a rede do conhecimento.

Desfazer os caminhos ao rastreá-los. Intrometer-se na cena do crime. Procurar as pistas da ação significa interpretá-las (modificá-las). Em alguma medida, e somente por isso existe algo de real aqui, o trabalho é feito: também por mim, pesquisadora-actante e além de mim. Na medida em que os caminhos da pesquisa são percorridos, o mapa da experiência é desenhado, a partir de escolhas, edições e observações efetuadas pelo cientista, tal como o futuro pode ser intuído e interpretado por meio da leitura feita pelo cigano das linhas do mapa das mãos. Ambos conectam materialidades e traduções para compor uma narrativa. No entanto, a rede de instrumentos, documentos e práticas que o cientista procura reagregar, por vezes não deixam marcas tão nítidas.

Para lidar com a invisibilidade do social, o pesquisador-actante precisa trabalhar como um imã, compondo uma rede que atraia os elementos participantes da controvérsia a ser desdobrada e faça aparecer os atores a serem seguidos. Para encontrar indícios de ações, por vezes é preciso intuir, mas sempre é necessário vasculhar, questionar, despertar os arquivos e as ligações entre actantes, por fim, alimentar a confusão que faz surgir os emaranhados de humanos e não-humanos.

Um cigano corpulento, de barba indomada e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública do que ele mesmo chamava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos e todo mundo se espantou ao ver que os caldeirões, as caçarolas, os alicates e os fogareiros caíam de onde estava, e as madeiras rangiam por causa do desespero dos pregos e parafusos tentando se soltar, e até mesmo os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria” – apregoava o cigano com sotaque áspero -, “é só questão de despertar suas almas.” (MÁRQUEZ, 2015, p. 43)

No ano de 2005, estive em Porto Alegre, Brasil, participando do Fórum Social Mundial (FSM) – um outro mundo é possível. Naquela oportunidade, eu e um amigo de movimento estudantil fomos surpreendidos pela presença, não agendada, do Ministro da

54 Cultura Gilberto Gil na tenda do Laboratório de Conhecimentos Livres, local onde foram realizadas atividades da MetaReciclagem (rede, que à época eu não conhecia, sobre a qual versam as investigações efetuadas por esta pesquisa). Entre vaias e aplausos, discursos e músicas, o Ministro participava conosco do debate sobre a democratização da cultura no país.

Em 2013, no início da confecção deste projeto, conectei-me por meio de um texto de Felipe Fonseca à experiência dele, como membro da MetaRec23, sobre aquele episódio da passagem do Ministro pelo FSM. Outros significados. Percebi a “MetaRec” como um território que ocupava pessoas, coisas, conceitos e histórias que de uma forma ou de outra também me ocupava. Mas os assuntos tratados, por vezes eram estranhos: HTTP, pixel,

drones, rádio, riseup, linux. Como falar sobre isso ou como deixar isso falar? Interessou-me. Minha intuição era que nesse território estaríamos fazendo e falando sobre possíveis combinações formadoras de realidades sociais mais democráticas, no sentido de uma gestão anárquica e participativa. Ao comentar sobre o tema com alguns professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, cheguei a pistas sobre a tese de doutorado: “Ações Coletivas de Mídias Livres” (COSTA JÚNIOR, 2010). E lá estava ela: a rede MetaReciclagem.

Após leituras, elaboração de projeto, banca de qualificação, pausas, passagens em sala de aula, reelaboração de referenciais teórico-metodológicos, entrevistas, releituras, a rede consolidou-se como um ponto referência para esta pesquisa. Realizar uma sociologia das associações da MetaReciclagem, como caminho para investigar o desmantelamento da caixa- preta do conceito de inclusão digital, configurou-se como nosso objetivo.

Abordar o tema da inclusão digital, em sua querela, é sinônimo de falar de resistência ao capitalismo mais embrutecido: aquele que domina a linguagem, a cultura, os espaços, as técnicas, as artes, as máquinas, corpo e espírito. Para tanto, além de apurar as cadeias que operam para tornar as práticas matizadas pelo conceito em aparentes estruturas, isto é, solução de “cunho social”, precisamos alimentar o contraditório: fazer-falar sobre apropriação tecnológica e possibilitar escapes ao niilismo. Fazer emergir a rede para mapearmos onde é produzido tal efeito estrutural, abrir a caixa-preta do conceito, driblando sua in-formação e possibilitando sua trans-formação. Acompanhando a rede MetaReciclagem teremos a oportunidade de observar a conduta de conexões que constroem um outro lugar: o da apropriação social.

55 Falar sobre o “saber-fazer” da tecnologia digital é dispor sobre a possibilidade de conexão de diversos assuntos, coisas, pessoas, lugares. Minha apresentação aos colaboradores, que mencionou minha profissão, este estudo, a sociologia, havia alterado infimamente aquele território. E aquele território me fazia falar. Faz todo sentido a citação de Camila Bussular (2012), em sua dissertação de mestrado, sobre o pensamento latouriano: “Qualquer estudo, sobre qualquer grupo, feito por qualquer pessoa é também um elemento do grupo em si, que auxilia sua composição e existência, assumindo a presença do pesquisador como parte da rede de influência do grupo.” Neste sentido, o social que tentaremos mapear começa a aparecer.