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PIAUÍ: UM ACONTECIMENTO DISCURSIVO

INSTITUIÇÕES IMAGINÁRIAS DE BRASILIDADE

1.1 PIAUÍ: UM ACONTECIMENTO DISCURSIVO

As principais referências que embasam nossas análises foram brevemente descritas acima: ao aplicá-las, voltaremos a discutir especificidades de cada uma delas. Gostaríamos, agora, de discutir mais detalhadamente a questão de pesquisa, o ponto de vista do qual partiremos para olhar o objeto. Nosso próximo passo é sistematizá-la antes de iniciar a análise propriamente dita.

Partimos da idéia de que o surgimento de piauí é um acontecimento discursivo na medida em que a revista diverge da configuração padrão predominante na imprensa brasileira, é saudada como novidade no interior da própria mídia, como demonstra o comentário feito por Sérgio Rodrigues no site Observatório da imprensa:

Acredite se quiser: o primeiro número de “piauí” (assim mesmo, sem maiúscula) que terá 50 mil exemplares postos à venda nas bancas de todo o país amanhã, não traz nenhuma matéria de denúncia. (...). Também não encomendaram a um médico um decálogo para uma vida longa, nem a um mísero personal trainer a sua lista de dicas de boa forma. (...). Cadê a entrevista-bomba com o ídolo da música ou o craque de futebol falando de sua primeira broxada? (...) Qualquer que seja o parâmetro, o fato é que “piauí” não se parece com nada que existe no mercado brasileiro. Como toda imprensa fugiu desse tipo de jornalismo, sobrou um vácuo, que eu chamo de orfanato (RODRIGUES, 2006)13.

A idéia de vácuo, de orfanato, presente no texto de Rodrigues, remete à falta de espaço de circulação de formações discursivas não contempladas pela grande mídia, mas talvez presentes em nichos da ideologia do cotidiano, materializadas em enunciados dispersos

em filmes, letras de música, conversas de rua. Ao dar forma a esse sentimento de orfandade, piauí se inscreve como resistência e tenta formar uma nova comunidade de sentido na dispersão do meio social.

Os indícios dessa resistência em piauí se manifestam através da retomada interdiscursiva de elementos da contracultura, gestados no ambiente da esquerda nas décadas de 60 e 70 no Brasil, com propostas de mudanças políticas e comportamentais. Não se trata, porém, de uma visão saudosista. As referências a outros estilos de vida perdidos no tempo se dão numa tentativa de questionamento dos modelos hegemônicos. A revista parece indagar: onde estão os traços de um jeito de ser brasileiro que pode, ao mesmo tempo, afirmar nossa identidade na nova ordem mundial e nos afirmar como nação? Ao fazê-lo, também não se inscreve numa ordem provinciana, nem em modelos rígidos de identidade. Há, na dispersão de enunciados nas páginas de piauí, uma unidade de aspectos relativos à constante construção – nunca finalizada – de uma identidade brasileira possível, sempre tomada na dimensão imaginária. Para buscar essa unidade, pretendemos percorrer o caminho de formações discursivas que constituem o que denominamos de “arquivos de brasilidade”, assim entendidos porque reúnem discursos de construção de uma idéia do que é ser brasileiro. A maioria desses arquivos se constituiu no ambiente de mudanças políticas e comportamentais da década de 60, tais como o Cinema Novo, o Tropicalismo, a imprensa alternativa; e traz, por sua vez, marcas interdiscursivas de momentos anteriores, como a antropofagia modernista, num novelo cujo desenrolar aponta para a constituição discursiva do que é ser brasileiro no tempo histórico, desde a chegada dos portugueses.

Como é próprio do discurso, a cada retomada, constroem-se novos sentidos. É o que ocorre com a irrupção de piauí na sociedade globalizada, num momento histórico em que as identidades nacionais são ameaçadas pelo poder hegemônico dos países ricos e da ideologia neoliberal. A partir desses rastros históricos, dispersos, vamos tentar buscar os novos sentidos da busca de uma memória dos anos 60 no momento atual. Orlandi (2007), ao descrever as características da AD francesa, esclarece que a relação entre a teoria e o texto não é para extrair do último um sentido, mas para “problematizar essa relação, ou seja, para tornar visível sua historicidade e observar a relação de sentidos que aí se estabelece, em função do efeito de unidade” (ORLANDI, 2007, p. 173). Courtine (1981), por sua vez, pontua o campo da AD como aquele que mostra os protagonistas, decompõe os movimentos, mostra os alvos e precisa as estratégias.

O processo de análise em AD dá-se a partir da constituição de um corpus – para nós, as 12 primeiras edições da revista piauí –, da definição de um ponto de vista (a

pergunta que organiza esse corpus) e de intervenções constantes da teoria para reger a relação do analista com o seu objeto (NAVARRO BARBOSA, 2006, p. 70). Partimos do princípio de que o surgimento de piauí retoma e modifica formações discursivas que circulavam na sociedade brasileira nos períodos de resistência à Ditadura Militar, sobretudo pela vertente da contracultura.

Nas páginas seguintes, nosso trabalho vai buscar essas marcas na materialidade discursiva da revista para entender de que forma elas se relacionam com formações discursivas que circulam hoje na sociedade brasileira em tempos de globalização. A circulação de informações em escala global torna, em certos momentos, impossível restringir a movimentação dos discursos a um território (um país): há trocas, deslocamentos, formações discursivas atravessam oceanos em tempo real. Há uma padronização discursiva a nível planetário materializada tanto nas revistas que tratam do mundo das celebridades, quanto nas informativas semanais. Por detrás dessa padronização, se esconde um estilo de vida e o consumo de produtos globalizados, sobretudo entre as classes mais beneficiadas economicamente, como observa o psicanalista Contardo Calligaris:

Basta transitar por saguões de hotéis e salas de espera de aeroportos para descobrir que, pelo mundo afora, proliferam publicações suntuosas (...) cujo tema é o luxo. Nessas revistas, as matérias em geral exaltam a vida prazerosa de quem consome os objetos propostos nos anúncios (CALLIGARIS, 2008, p. 12).

A irrupção de piauí aponta para uma resistência ao discurso capitalista globalizado inscrito numa formação discursiva de cultivo do luxo. A própria escolha do nome da revista – uma referência ao estado mais pobre da Federação – parece buscar um lugar brasileiro para olhar as contradições da ordem econômica a partir do desprezado, da voz dissonante, como nota Bauman.

Em nenhum momento dos últimos dois séculos, mais ou menos, as linguagens faladas respectivamente pelas elites instruídas e abastadas e pelo resto do “povo”, assim como as experiências relatadas nessas linguagens foram tão diferentes entre si (BAUMAN, 2004, p. 103).

1.2 A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO NO DISCURSO: CONSIDERAÇÕES