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Pierre Schaeffer e a escritura musical

5 Espacialidade na Música Concreta

5.1 Pierre Schaeffer e a escritura musical

Às 21 horas de 5 de outubro de 1948, em uma transmissão da rádio Paris-Inter organizada pelo Club d’Essai66 e intitulada Concert de Bruits (concerto de ruídos), Pierre Schaeffer emprega pela primeira vez o termo música concreta para descrever as cinco obras/estudos de sua autoria que seriam veiculadas naquela ocasião67. Tal ato, considerado como gesto fundador do gênero (e, portanto, da primeira forma de música eletroacústica), marca o aparecimento de uma poética musical sui generis não apenas pelo fato de ter surgido dentro de uma emissora de rádio, a partir de um radialista até então pouco conhecido, mas principalmente por sua proposta de ruptura com diversos procedimentos fundamentais da composição musical. A bem da verdade, o próprio adjetivo escolhido para nomear o gênero não se referia apenas à proveniência do material constituinte das obras, de origem “concreta”, mas também denotava uma clara oposição à prática musical convencional, mediada pelos processos de alta abstração que constituem a escrita musical. Segundo Schaeffer:

Esta tomada de posição pela composição com materiais extraídos a partir de dados sonoros experimentais, eu a denomino, por analogia, de Música

Concreta, para deixar claro a dependência na qual nos encontramos não

mais em relação a abstrações sonoras pré-concebidas, mas antes a fragmentos sonoros concretamente existentes e considerados como objetos sonoros definidos e inteiros, mesmo e sobretudo quando eles escapam às definições elementares do solfejo. (SCHAEFFER, 1952, p. 22, tradução nossa, grifos do autor)68.

66

Em 14 de Novembro de 1942 é fundado o primeiro estúdio dedicado às experimentações sonoras/musicais na RTF (Radiodiffusion-Télévision Française), o chamado Studio d’Essai, que, em 1946, será rebatizado de Club d’Essai. Já em 1951 Schaeffer fundará, dentro do próprio Club

d’Essai, o GRMC (Groupe de Recherches de Musique Concrète) que, a partir de 1958, abandonará

sua designação exclusiva relacionada à música concreta e passará a se chamar apenas GRM (Groupe de Recherches de Musicales) (cf. GAYOU, 2007, p. 17, 26 e 107).

67 “Se o termo não arriscasse parecer pretensioso, nós intitularíamos nossos ensaios de tentativas de

música concreta, para enfatizar seu caráter geral e que não se trata exatamente de ruídos, mas de um método de composição musical”. No original: “Si le terme ne risquait de paraître prétentieux, nous intitulerions nos essais: essais de Musique concrète, pour bien marquer leur caractère général et qu’il ne s’agit plus exactement de bruit mais d’une méthode de composition musicale.” (SCHAEFER apud GAYOU, 2007, p. 73).

68

“Ce parti pris de composition avec des matériaux prélevés sur le donné sonore expérimental, je le nomme, par construction, Musique Concrète, pour bien marquer la dépendance où nous nous trouvons, nom plus à l’égard d’abstractions sonores préconçues, mais bien des fragments sonores

E lemos ainda em Schaeffer:

O qualificativo de abstrato é aplicado à música habitual pelo fato de que ela é inicialmente concebida pelo espírito, em seguida teoricamente anotada e, enfim, realizada por uma execução instrumental. A música ‘concreta’ é constituída a partir de elementos pré-existentes, tirados de qualquer material sonoro, ruído ou som musical, para depois serem experimentalmente compostas por montagem direta, […] sem o recurso, tornado impossível, de uma notação musical ordinária. (SCHAEFFER, 1952, p. 35, tradução nossa)69.

O compositor e teórico francês enxergará, portanto, uma grande distância entre o processo composicional tradicional, baseado na escrita, e os processos de estruturação do material sonoro concreto. Como realizar uma música cujo interesse principal reside justamente naquilo que a notação musical encontra grandes dificuldades de representar: o timbre, em todos seus detalhes e variações morfológicas? Para Schaeffer, a resposta dar-se-ia pela elaboração de um novo tipo de solfejo, um novo modo de escuta (escuta reduzida) e de um conceito mais abrangente do fenômeno sonoro (objeto sonoro), os quais, embora já apareçam delineados em escritos anteriores – principalmente em À La Recherche d'une Musique Concrète (1952) –, só seriam apresentados de forma elaborada em seu Traité des Objets Musicaux (TOM), publicado em 1966.

Desse modo, sobressairá nos estúdios da rádio francesa o método da experimentação, cujas primeiras tentativas de organização do material concreto e de sua possível conciliação com o universo da música tradicional encontram-se descritas já em À La Recherche d'une Musique Concrète (1952). Conforme pode-se ler no seguinte trecho:

O diálogo entre os elementos concretos e o piano de J.J. Grunenwald é mal estabelecido, dois mundos tão diferentes não saberiam entrar em acordo

existant concrètement, et considérés comme des objets sonores définis et entiers, même et surtout lorsqu’ils échappent aux définitions élémentaires du solfège.”

69 “Le qualificatif d’abstrait est appliqué à la musique habituelle du fait qu’elle est d’abord conçue par

l’esprit, puis notée théoriquement, enfin réalisée dans une exécution instrumentale. La musique « concrète », elle, est constituée à partir d’éléments préexistants, empruntés à n’importe quel matériau sonore, bruit ou son musical, puis composée expérimentalement par un montage direct, […] sans le secours, devenu impossible, d’une notation musicale ordinaire.”

tão facilmente. A experiência, em todo caso, valia a pena. (SCHAEFFER, 1952, p. 24, tradução nossa)70.

De fato, se por um lado as especulações do compositor levariam a uma nova fase de descobertas a respeito do som e da escuta, a qual só se deu por intermédio dos gravadores e da possibilidade de escuta repetida e analítica de fragmentos sonoros extraídos das mais diversas fontes, por outro lado, seria justamente por conta das tentativas frustradas de integração dos materiais sonoros que Schaeffer chegaria à conclusão de que a linguagem musical já existente poderia contribuir em nada para o desenvolvimento da música concreta, a qual consistiria em uma espécie de tabula rasa do pensamento musical. Segundo o próprio compositor/inventor francês (1952, p. 90, tradução nossa):

A música abstrata, de base aritmética, é abertamente uma linguagem, um discurso. O compositor exprime ideias, as desenvolve e conclui. Nada de parecido na música concreta. De tal modo, como pode a música concreta se encadear, como fazê-la evoluir?71.

Entretanto, ainda que se possa de fato prescindir do processo abstrato da escrita musical para a elaboração de obras eletroacústicas, não se pode prescindir da própria elaboração musical e de suas regras gramaticais específicas – a qual Menezes (2006, p. 454) denomina escritura musical –, cujo desenvolvimento secular está intimamente ligado à própria história da escuta. É assim que se pode ler em Menezes:

Por meio desse posicionamento, as leis específicas da gramática musical – a qual sempre se desenvolveu ao longo da história em conseqüência das

necessidades auditivas de uma época em relação a outra (fenômeno ao mesmo tempo complexo e multilateral), e a qual somente pode manifestar- se através da escritura musical –, não são apenas ignoradas ou desprezadas, mas sobretudo consideradas como fatos arbitrários e abstratos pelo pai da música concreta. (MENEZES, 2009a, p. 19, grifos do autor).

70 “Le dialogue entre les éléments concrets et le piano de J.-J. Grunenwald est bancal: deux mondes

si différents ne sauraient si facilement s’accorder. L’expérience, en tout cas, valait la peine.”

71

“La musique occidentale, à base arithmétique, est bel e bien une langue, un discours. Le compositeur exprime des idées, les développe et conclut. Rien de semblable en musique concrète. Dès lors, comment la musique concrète peut-elle se enchaîner, comment la faire évoluer?”

Ainda que o próprio Schaeffer tenha, em sua “Carta a Albert Richard” – publicada em 1957 no número 236 da revista Revue musicale e intitulada Vers une Musique Expérimentale (Em Direção a uma Música Experimental) –, empreendido uma revisão de tal postura, manifestando então a necessidade de retorno ao “indispensável abstrato musical72”, e ainda que, em 1958, o próprio GRMC (Groupe de Recherches de Musique Concrète) tenha passado a se chamar apenas GRM (Groupe de Recherches Musicales) – fazendo eco ao processo de diluição da oposição inicial das vertentes em torno dos materiais iniciado pela introdução de sons concretos em Gesang der Jünglinge (1955-56) de Karlheinz Stockhausen e de sons eletrônicos em Haut Voltage (1956) de Pierre Henry –, o distanciamento inicial de Schaeffer em relação à escritura musical teria consequências bastante duradouras, sobretudo no que diz respeito à espacialidade sonora. Tendo sido o principal responsável pelo resgate da espacialidade, o compositor francês logo tratou de incorporá-la como um aspecto mais ligado à interpretação das obras em concerto do que à sua elaboração escritural em estúdio, o que se tornou um dos principais traços da poética da espacialidade na música concreta e de seus desenvolvimentos mais recentes na chamada música pós-concreta ou acusmática.

5.2 A influência da teoria das artes-relé na constituição da espacialidade