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Pintura holandesa tardia: quadros de gênero e realismo estético

Hegel saúda a pintura holandesa do seiscentos como expressão da liberdade e da “audácia burguesa” (ES III, p. 271). Se a mitologia é o centro firme que reúne o princípio da produção artística grega e onde as obras encontram sua inteligibilidade última, inversamente, quando procuramos entender os quadros holandeses, “devemos perguntar à sua história” (ES I, p. 180). Não há nenhum inventário poético prévio, a arte holandesa é um acontecimento completamente a posteriori. Nem se pode, dos seus quadros de gêneros, esperar a exposição de uma humanidade substancial no sentido grego, mas apenas “este ser humano” (ES III, p. 276, itálicos do autor). O realismo dessa pintura toca de tal modo as raias da insignificância, que não existe uma emulação mais exata do ideal clássico do que o motivo pictórico referido por Hegel na cena em que uma mãe cata piolhos em seus filhos (cf. ES I, p. 181). Porém, o que constitui uma ofensa ao modelo da exteriorização sensível de uma individualidade bela, suportada em um caráter forjado pela necessidade, ganha, nesse limbo da contingência e nesse “jogo

variegado de configurações singularizadas” (ES II, p. 331), justamente pela “ausência de preocupação pelo exterior” (ES I, p. 181), a “liberdade do interior no exterior que o ideal [,agora,] requer” (loc. cit., colchetes nossos). Percebamos aqui a inversão operada, modernamente, precisamente nessa iminente liberação do vínculo com uma exterioridade necessária. Dirá Hegel, depois, no mesmo espírito e a propósito da mesma relação com o exterior, que este deve ser acolhido não para “apenas expressar o interior [Innerliche], mas a interioridade [Innigkeit] que, em vez de se fundir com o exterior, apenas aparece em si mesma reconciliada consigo mesma” (ES II, p. 261, itálicos do autor), o que significa dizer, a nosso ver: ao invés de ser clássica (“se fundir com o exterior”), essa interioridade deve ser apenas moderna (“aparece em si mesma reconciliada consigo mesma”), não devendo, portanto, espelhar o caráter divino que, mesmo se embrenhando no trato com a finitude, retorna sempre à sua típica imperturbabilidade, nem potências substanciais impessoais, mas esplender o ânimo consolidado e fortalecido nos perigos da liberdade. Os holandeses, um povo de “pescadores, marinheiros, burgueses, camponeses” (ES II, p. 333), contra a “enorme opinião” (ES III, p. 274), opuseram-se à “grandezza dos espanhóis” (ES II, loc. cit.) e, ao terem êxito, consolidaram todas as suas virtudes civis e domésticas. Os feitos desse povo são inteiramente consagrados “pela liberdade conquistada por eles mesmos” (ES II, loc. cit.), não há nenhum modelo arquipoético que forneça determinações para suas ações. As matérias artísticas que preenchem as cenas que eles pintaram não surgiram de nenhum material poético a priori, de um passado heróico, mas concernem a um conteúdo que “nenhum outro povo, sob outras relações, teria tido a idéia” (loc. cit.) de transmutar em arte. O espírito desse povo, complementa Hegel, demonstra a completa “satisfação no presente da vida” (loc. cit.), por isso a arte moderna, com a pintura holandesa, aparece, nesse horizonte do risco histórico, não como o que protagoniza o primeiro dia da criação, e sim como momento da comemoração do “domingo da vida” (ES III, p. 275).

É do solo histórico e da prosa da vida que se apronta, para a arte holandesa tardia, uma “base substancial” (ES II, p. 333). A liberdade em sustentar, ou melhor, em configurar um conteúdo que, em meio às “penosas lutas e esforço árduo” (loc. cit.), é antes arrancado à efetividade ao invés de ser prefigurado pela arte, repercute nessa autonomia subjetiva frente a uma exterioridade sensível que não se mostra mais como necessária, inclusive “não se trata de modo algum para o artista, em sua produção, de

nos fornecer mediante a obra de arte uma representação do objeto que ele nos mostra” (loc. cit). A “artificialidade da produção” (ES I, p. 180) ressalta para arte, então, não mais somente em sua dimensão de aprimoramento técnico, mas em sua posição elevada que, além de degradar as figuras sensíveis impróprias, como o clássico o fez com o animalesco, dispensa-se inclusive da clausura de uma figura sensível prioritária, da “forma significativa” exclusiva, pois que “consumiu tudo o que é reciprocamente separado, [...] toda limitação da existência espiritual” (ES II, p. 253).

Essa proveniência histórica do conteúdo da arte moderna proporciona ao formar um espaço de atuação livre de constrangimentos definidos, o conteúdo não é apenas o que é elaborado para a consecução de um equilíbrio, mas é essencialmente produzido e eleito, ademais ele já está instalado “na representação e no sentimento fora do âmbito artístico” (ib., p. 260), foi conquistado e apropriado diretamente da e na efetividade, não constitui mais uma prerrogativa da arte anunciá-lo em sua necessidade e verdade. O configurar obseda o conteúdo nessa mesma disposição livre que o plasmou a partir da contingência histórica, abrindo-se prodigamente à “invenção arbitrária” (ib., p. 342). “A efetividade superior” (ES I, p. 35) se evade do domínio religioso da arte.

É natural que com a contração do elemento sensível ou a minimização de sua relevância para a unidade estética da obra, não seja mais o mero critério da apreensão intuitiva e do sentimento que apareça como crivo da fruição da arte. Hegel introduz, atento a esse contexto, a necessidade de uma “pedra de toque superior e de uma forma de comprovação diferente” (ES I, p. 34), pois a “impressão que elas [as obras de arte modernas] provocam é de natureza reflexiva” (loc. cit.). Com a introdução dessa nova exigência, Hegel abre uma perspectiva para além de uma estética do gosto, tal como essa recebe sua formulação no formalismo da Terceira crítica kantiana, enquanto nessa obra as regras universais para arte estão fundadas na “validade subjetiva universal da complacência, que ligamos à representação do objeto que denominamos belo” (CFJ, p. 62), sendo que tal complacência é apenas o nome de um assentimento universal de um sentimento específico, que é referido na expressão “beleza”. Vale aqui mencionar o reconhecimento de Ernst Bloch (1982) de que Hegel, em oposição a uma concepção estética que mantém o belo, assim como o sublime, nos limites do jogo formal das faculdades do ânimo, purificados de qualquer tendência e interesse (p. 256), nos lega uma “estética do conteúdo” (p. 269). De fato, a depreender da leitura hegeliana da pintura holandesa tardia, não é mais possível pensar um acordo subjetivamente

estruturado e condicionante da matéria artística que vem de fora, pois esta matéria e a relativa beleza que lhe adere não podem mais ser reconhecidas com base unicamente no parâmetro de um sentimento universal. Gethmann-Siefert (1997) percebe esse novo critério da “comprovação” estética quando afirma que o “sentido” da pintura holandesa não é revelado mais imediatamente, mas precisa ser “reconstituído por um comentário histórico e cultural apropriado” (p. 79). É exatamente esta a perspectiva que é construída por Hegel na Estética, quando reconhece, a propósito dos holandeses, que “o conteúdo universal de suas imagens é constituído [...] pela satisfação e atrevimento no sentimento de si e pelo fato de deverem tudo isso à sua própria atividade” (ES I, p. 180). A relevância artística do conteúdo descortina-se mediante as circunstâncias históricas. Por meio da ambientação histórica o conteúdo “não é tão comum como acreditamos costumeiramente” (loc. cit.). No fato de que a obra agora solicita a participação da reflexão, para seu gozo e apropriação, trata-se, contudo, não de uma reflexão que confirma o que está condicionado subjetivamente a priori, mas de estabelecer uma solidariedade estética através de juízos não simplesmente estéticos, isto é, baseados no apelo a uma complacência universal pelo sentimento: “hoje, diz-nos Hegel, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo” (ES I, p. 35).

O que precisamos destacar da leitura hegeliana da pintura holandesa é a clareza que ganha o princípio moderno que atine à forma, que reside no recuo reflexivo diante de uma exterioridade tornada dependente de um significado espiritual e que se trafica em uma objetividade não mais meramente apresentada, mas recriada. Ao efetuar essa astúcia do subjetivo, o formar se atrela ainda a um conteúdo, mesmo que insignificante, e o medium da pintura mesma concede ainda esta unidade figurativa de um propósito subjetivo com um conteúdo que tende, do ponto de vista estritamente artístico, à completa irrelevância.