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A contemplação das artes – principalmente da pintura – é algo inerente a João Cabral e ao grupo de companheiros catalães ao qual ele pertence. Para ele, a pintura não pode ser muito compreensível, pois ela é feita para afetar os cinco sentidos. Um dos artistas que despertaram os sentidos do poeta foi o pintor Antoni Tàpies,323 mais um dos “rios” que formam o mar poético da obra de João Cabral. Tàpies é um dos maiores artistas que se opunham, então, ao franquismo, e que se baseia nos conceitos da estética marxista324. Como o próprio artista plástico esclarece:

[...] Naquele momento o que estava mais em moda e mais interesse despertava entre os pintores e escritores eram as tendências de esquerda, influenciada pelo comunismo russo. [...] Foi Cabral quem, pela primeira vez, alertou-me para o fato de que esse dogmatismo não era muito correto, que era possível preocupar-se com os problemas sociais sem cair no mau gosto do realismo socialista [...]O poeta dizia que cada artista deveria seguir seu próprio estilo, mas sempre incluindo algum tipo de indicação em suas obras que permitisse identificar uma preocupação e uma crítica sociais.325

O período em que João Cabral ancorou sua barcaça em Barcelona ficou marcado pela consolidação do franquismo e de suas fronteiras fechadas. O poeta pernambucano conviveu com Tàpies e Brossa, o que possibilitou para ambos novas ideias e informações sobre o mundo. O franquismo se arraigou na Espanha quando uma nova conjuntura exterior o favoreceu, no final da Segunda Guerra Mundial, pelas relações entre os Estados Unidos e a União Soviética. O anticomunismo ganhou impulso no mundo ocidental e Franco entrou na luta contra a URSS. A aproximação entre os Estados Unidos e a Espanha permitiu a chegada de créditos, tão necessários para a empobrecida economia espanhola. Socialmente, estes anos foram contraditórios. Por sua parte, a Espanha adotou medidas que beneficiaram os trabalhadores, como a introdução de seguros sociais. Por outro lado, o regime continuou reprimindo qualquer

323 Antoni Tàpies i Puig é artista plástico. Nascido em Barcelona, em 1923. Tecnicamente, sua pintura

passou a ser definida como matéria e informalista. Faleceu a 6 de fevereiro de 2012.

324 O poeta João Cabral, pelo seu antidogmatismo, a essa altura, considera-se marxista, mas não adota a

estética marxista em seus poemas.

157 reivindicação e negando a liberdade sindical e, de igual forma, negando a liberdade política e artística.

A arte representava a liberdade tão necessária que simbolizava a evocação de todo o poder criativo para enfrentar as forças da corrupção política e social causadora dessas contradições sociais. Embora seu trabalho remeta a tendências informalistas326 nos anos 1950, Tàpies procurou fugir dos excessos do abstrato por meio da busca intensa por algo mais concreto, alcançando estilo único na história da arte do pós- guerra.

Em suas obras, o pintor espanhol discute com profundidade as questões intrínsecas da criação artística e de seu papel social. Concebe a arte como território para realizar a liberdade. Sua pintura é a demonstração desta liberdade, mesmo em período de proibições– “liberdade frente ao medo de liberdade”, dizia Tàpies327. O pintor mescla a interpretação política em suas pinturas. Algumas de suas obras imprimem a angústia humana e a exploração imposta pelo regime franquista. Pinturas que assimilam às injustiças empreendidas contra o povo catalão, que estava trancado dentro do seu próprio país sem acesso a informações e a possibilidade da crítica. Foi o poeta e diplomata brasileiro João Cabral de Melo Neto quem abriu as fronteiras para Tàpies ao apresentar livros “mais de esquerda”, livros marxistas que eram proibidos na Espanha desde 1939. Livros com conteúdos comunistas foram retirados das livrarias, bibliotecas públicas e de escolas. O general Francisco Franco provocou o isolamento cultural no país, a fim de evitar toda e qualquer influência “prejudicial” à nação. Algumas articulações são realizadas para que a “proteção” a nação ocorresse originando as perseguições aos artistas que, atingidos diretamente pela repressão e pela censura, morreram ou seguiram o caminho do exílio.

Antoni Tàpies estuda arte moderna nos livros e revistas catalães e, em 1946, aluga seu primeiro ateliê em Barcelona e passa a se dedicar às criações. Nessa época, une suas forças com a vanguarda catalã contra a censura da imprensa e das artes no

326 Termo usado por Antoni Tàpies para novas pinturas que abrangem os termos abstratos e gestuais. Essa

arte se caracteriza por pinturas abstratas produzidas no pós-guerra na Europa, e estão interligadas ao expressionismo abstrato norte-americano.

327

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n.1, mar., 1998, p.15.

158 regime político de Franco. Em decorrência dos limites impostos pela política vigente, a trajetória artística de Antoni Tàpies foi marcada por uma profunda reflexão sobre o papel social da arte que se dedicou a divulgar textos sobre arte e a discutir as questões essenciais à criação artística para os espanhóis. E consequentemente o artista Tàpies nutre em suas obras uma sua reflexão em constante resistência à ditadura.

Portanto, através desse contexto e desses encontros, diferente do que poderia ser uma propriedade universal da poesia e da expressão artística, em João Cabral é um horizonte produtivo, específico e privilegiado de comunicação e informação. Mas a passagem de João Cabral por Barcelona não foi um mergulho em rios de uma única margem. É na barcaça Barcelona que surge a amizade com outros jovens intelectuais e artistas da vanguarda catalã, como o crítico de arte Arnau Puig. A partir desse intercâmbio, João Cabral passa a influenciar fortemente o grupo, inserindo suas ideias de uma poesia mais voltadas para a realidade social e política. Em entrevista, o crítico de arte e filósofo Arnau Puig comenta a amizade com o poeta: “Cabral representava para nós uma oportunidade de liberdade, de falar de política e de arte, sem que fôssemos perseguidos”.328 Havia uma situação horrível, uma ditadura repressora, sobretudo porque “existia uma perseguição intelectual, uma perseguição da sensibilidade”,329 afirma Puig, que também declara:

De fato, além de ser uma ilha para nossos pensamentos, uma das maiores influências de João Cabral que todos do Dau al Set reconhecemos é que ele nos fez marxistas. Cabral era um marxista seguidor de (Luiz) Carlos Prestes, um stalinista tremendo, era o predicador do stalinismo aqui conosco. E, nesse sentido, posso dizer que uma de suas grandes influências foi que ele também nos fez marxistas.330

Para os intelectuais, a arte contemporânea era rompida pelo regime franquista, a convivência com João Cabral expressava a possibilidade de ter contato com novas informações e ideias sobre os acontecimentos no mundo exterior. Para ocorrer uma maior proximidade entre esses rios companheiros, João Cabral atualizava os amigos em relação à literatura enviando-lhes livros e jornais. Desta forma, ocorreu um intercâmbio de novas e possíveis ideias para a produção artística entre o Brasil e a Espanha. O poeta

328 Correia Filho, João. Revista do Brasil, nº45. Março de 2010.

http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/45/sertao-alem-mar. Ultimo acesso:14/02/2012

329 Idem. 330 Idem.

159 frisava, em entrevistas, a importância do exemplo das amizades espanholas para novas direções também na poesia brasileira, que vivia nessa época o predomínio de formas tradicionais: ''Hoje, acho que a nossa poesia deve se orientar para as baladas, para os romances. A técnica poética, quando não é aplicada a alguma coisa, põe o poeta em um beco sem saída.''331 Sem ter saída, a palavra se normatiza e é padronizada não possibilitando a transgressão dos saberes. Alguns dos poemas de João Cabral sugerem, mesmo refletindo muitas vezes a seca, uma comparação da vida com a natureza do rio. A palavra rio funciona simbolicamente como translado que surge com a procura de boas paragens. Essa viagem implica navegações difíceis, lutas constantes e o olhar para realidades severas, o que põe à prova a capacidade de resistência às durezas as proibições que vida impõe.

Além de participar da revista Dau al set e dos debates para a sua produção, João Cabral se encontra com frequência, nesse mesmo momento, com o pintor Miró. Com as fronteiras da Espanha fechadas e com muitos pensadores e intelectuais exilados ou obrigados a não produzirem mais, o diplomata João Cabral entra em ação. Por ser vice- cônsul em Barcelona, acompanhou o processo de exclusão de Miró até o seu regresso da França. Porém, ao retornar, Miró estava proibido por Franco de expor na Espanha. Nesse momento da navegação, João Cabral conhece mais profundamente um rio caudaloso, Joan Miró, frequenta assiduamente seu ateliê e acompanha toda a sua produção desde a:

[...] década de 1940, com a ajuda de João Cabral as telas de sua série Constelações chegaram às mãos de Pierre Matisse. Assim, Miró tornara-se o primeiro pintor da vanguarda européia a expor em solo americano no pós-guerra.332

Ao pesquisar Miró e João Cabral, observa-se não somente uma justificativa da obra artística crítica e, sim, elementos importantes para pensar o projeto estético no trabalho de ambos. Em outros termos, a obra de Miró propõe uma luta constante para “limpar” o seu olhar da tradição ao criar algo novo e provocador. E o poeta João Cabral observava a arte de um modo eclético e com uma mistura de estéticas diversas.

331 MAMEDE, Zila. Civil geometria – bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo Neto - 1942-1982. São Paulo: Nobel, 1987, p.131.

332 GONÇALVES, Aguinaldo Transição e permanência: Miró/ João Cabral: da tela ao texto. São Paulo:

160 O projeto estético de João Cabral de Melo Neto tem ligação com a crítica à teorização, a pesquisa e a ação social na poética. Pode-se supor que, de alguma forma, toda poéticaé, em si, proposição teórica de uma estética dinâmica. O que João Cabral dizia era que cada artista deveria seguir seu próprio estilo, mas, ao incluir alguma estética em suas obras, escolhia uma que permitia identificar uma inquietação e crítica social:

Miró sempre me interessou muito pelo que imaginei ser sua teoria da composição. Mas como pintor, me interessa mais um Mondrian, um Malevitch, um Albers, os construtivistas em geral.333

João Cabral desenvolveu, em Barcelona, no ano de 1950, um estudo sobre a pintura de Joan Miró: o ensaio Joan Miró, publicado pelas Edições de l’Oc de Barcelona foi ilustrado com gravuras originais do pintor. Na introdução, o poeta pernambucano faz uma reflexão sobre a produção de Miró e questiona:

Seria possível outra forma de composição? Seria possível devolver à superfície aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente? A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a esta pergunta. Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar à superfície do seu antigo papel; o de ser receptáculo do dinâmico. Ela me parece uma tendência para libertar o ritmo do equilíbrio que o aprisiona e que aprisiona toda a pintura criada com o Renascimento.334

Nesse texto, o poeta analisa o sentido e a história de como Miró expande as normas da criação artística surgida desde o renascimento. A não limitação e a originalidade, para João Cabral, são a revolução que a pintura do pintor espanhol transmite a quem a admira. Por abandonar a terceira dimensão na pintura, compreendeu Miro,segundo o poeta pernambucano, que a “superfície liberta o pintor de todo um conceito de composição”.335 Contrariando os limites a composição artística se equilibra e luta para superar os princípios teóricos herdados do renascimento. Para João Cabral:

Essa simplificação da realidade, essa estilização saída da realidade mais imediata: porém levada a um ponto de abstração sempre crescente, tem mesmo uma importância primordial: formam elas que lhe permitiram desvencilhar-se da terceira dimensão, já que tudo ficava colocado como que num primeiro plano absoluto. Nessas

333 MARTINS, Wilson. Cabral por ele mesmo. Depoimentos apresentados, Jornal de Poesia. Disponível

em: http://www.secrel.com.br/jpoesia/lwmartins08c.html. Acesso em 17/06/2011.

334 MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 695. 335 Idem, p. 696

161 figuras nítidas e recortadas, mesmo a sensação de relevo era anulada.336

Sem a terceira dimensão, Miró abandonou também o centro do quadro. Por ser contrário a uma classificação de elementos em suas obras, criou quadros dentro do quadro e fragmentou e multiplicou os olhares de seu espectador por meio de uma contemplação descontínua. Esse tipo de arte seduziu o poeta João Cabral que, em seus poemas, também se libertou de rimas e aderiu ao hábito visual de escolher palavras que envolvem o olhar e o sentimento de libertação de regras. João Cabral continua:

Miró não realizou um sistema de composição. Não existe uma gramática Miró. Mas ainda: Miró não só não a formulou jamais como, e estou seguro disso, não possui um conceito exato do que tecnicamente, ou esteticamente, pode constituir sua maneira atual de compor. [...] Eu, por mim, creio que não. Miró não aborda as leis da composição tradicional para combatê-las. Miró não busca construir leis contrarias, uma nova perspectiva paralela à dos pintores renascentistas. O que Miró parece desejar é desfazer-se delas, precisamente porque são leis. Livrar-se, lavar-se delas, coisa a meu ver absolutamente diversa da atitude de substitui-las ou de usa-las pelo avesso.337

Ao falar de Miró, o poeta João Cabral acaba por fazer uma relação com a sua poesia, uma vez que observou no outro atitudes e características que se refletem em sua própria experiência poética. No ensaio sobre o pintor espanhol, o poeta mostra as particularidades da pintura que estariam no diálogo crítico permanente do pintor com a tradição da pintura renascentista e pós-renascentista. O que João Cabral deseja mostrar é que na obra de Miró há aumento no reconhecimento do fazer. Suas pinturas, conforme o poeta, são “pretexto” para a produção do novo modo de fazer arte. “Miró não pinta quadros. Miró pinta”.338 A liberdade está no equilíbrio e na intenção da criação de Miró “é uma libertação não sistemática, interrompida por outras experiências” 339 contrárias às regras no momento em que ela surge. “Talvez pudéssemos chamar a isso, o intelectualismo de Miró, aproveitando o que na palavra possa indicar uma atitude de

336 Idem, p. 695

337 Idem, p. 696. 338 Idem, p. 697. 339 Idem, p. 698.

162 vigilância e lucidez no fazer e, ao mesmo tempo, de contrário ao deixar-se fazer e ao saber fazer, ou por outra, ao espontâneo e ao acadêmico”.340

De acordo com seus biógrafos, o pintor espanhol utilizou todos os tipos de materiais na composição de suas obras. Esse procedimento, marcado, sobretudo, pela mais livre imaginação, demandava uma severa disciplina. Miró tem, como estética de suas obras, a sua ética e desprezo pelas formas objetivas e propõe uma sensibilidade psíquica: “o que ele aceitou foi a ideia de levar até o campo mais profundo e psicológico a busca da renovação formal.”341

Deste modo, João Cabral propõe que o compromisso de Miró com o “novo” pode ser desvendado, não por sua captura a intenções teóricas, mas por sua reflexão constante relativa ao processo de criação. Em Miró, mais vale a luta contínua do gesto criador na procura de transcender os limites temáticos que a cristalização de formas e a profusão de cores. O pintor Miró é analisado como um pintor que está em constante transformação de seus hábitos visuais na luta contra o hábito e a tradição:

O livro do poeta brasileiro trazia as informações de impressão do livro escritas em catalão, como forma de resistência de Miró à proibição do uso da língua durante o período de repressão franquista na Espanha. 342

O poeta João Cabral, no final do estudo sobre a pintura de Miró, apresenta em uma das divisões do texto o título O sentido do “vivo” nas obras do pintor. A palavra “vivo” simboliza a obra de Miró. Viver é um traço relevante para se entender o projeto artístico de modernidade do catalão em pleno regime de opressão. A palavra vida também é uma constante no discurso crítico dos poemas de João Cabral:

Na curta conversa de Miró, uma palavra existe: vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo é o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cortar qualquer incursão ao plano teórico, onde jamais se sente à vontade. Vivo parece valer ora como sinônimo de novo, ora de bom. Em todo caso, expressão de qualidade. Essa palavra a meu ver indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua pintura. Essa sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou desse equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida.

É a esse vivo que parece aspirar a pintura de Miró. Isto é, a algo elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o habito e a algo que

340 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Organização Marly de Oliveira. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.712.

341 Idem, p.714.

342 GONÇALVES, Aguinaldo Transição e permanência: Miró/ João Cabral: da tela ao texto. São Paulo:

163 vá, por sua vez, romper, no espectador, a dura crosta da sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa região onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito, o não aprendido343

Para entender a concepção atribuída à palavra “vivo”, é permitido edificar conscientemente como o poeta se apresenta à práxis artística de Miró, onde no território, a criação liberta de suas formas acadêmicas a vida que parece instável e complicada. Do lugar da permanente luta contra o hábito, principalmente os visuais, de uma cultura que reprime o novo. Nesse contexto, entende-se que o pintor pretendia com sua arte colorida e viva fazer a leitura metamórfica de uma realidade também metamórfica, na qual todos os objetos estão sujeitos a contínuas mutações. O resultado dessa ação é a anulação da linguagem artística, desprendida do objeto artístico que fere a adaptação habitual. O adjetivo “vivo” implica, portanto, uma postura reflexiva do artista e a sua luta obscura e lenta pelo dinamismo na pintura que ajustaria a subversão da linguagem e a sua constante renovação.

A segunda esposa de João Cabral, Marly de Oliveira, afirma que ambos os artistas estariam absorvidos com um novo tipo de arte, “cuja qualidade seria o ‘vivo’ da coisa, o inquietante território ‘onde a vida é instável e difícil.”344 Com base em observações de algumas pinturas e de relatos biográficos, é possível analisar, no processo de construção do artista espanhol, a sintonia com os poemas de João Cabral. Em seu livro sobre Miró o poeta define: “Essa sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou desse equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida”.345 Para Cabral, a obra de Miró busca entender o desejo de compreender a realidade, não como ódio ou com qualquer idealismo, mas como vida mais humanizada e possível.Em carta ao primo Manuel Bandeira, com de 17 de fevereiro de 1948, comentou o encontro com o pintor Joan Miró, que lhe vinha provocando aprendizados novos:

Atualmente, esse problema da possibilidade de expressão numa seleção me obceca. Ainda há pouco tempo, reconheci toda a pintura de Miró, ou melhor, seu mundo, num pequeno museu que ele tem em casa, e onde agrupa desde esculturas populares até pedras achadas ao

343 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Organização Marly de Oliveira. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.718.

344 Idem, ibid, p. 718. 345 Idem, ibid, p. 718.

164 acaso na praia, pedaços de ferro-velho com uma ferrugem especial etc. É impressionante como tudo aquilo é Miro.346

A poesia de João Cabral se encontra muitas vezes com artistas plásticos como Mondrian ou Joan Miró e tem afinidade com os cubistas em diálogo com o urbano, essencialmente social, das cidades onde ancorou. O poeta contava que, quando conheceu Joan Miró, no fim dos anos 1940, o artista plástico o recebeu no segundo andar de um prédio de quatro andares na travessa do Comércio, em Barcelona. O apartamento era decorado com móveis austeros, ar pesado. Herança do pai. Depois de um tempo, o artista levou o então cônsul do Brasil em Barcelona para outro andar, seu ateliê, onde trabalhava, decorado com móveis modernos e obras inacabadas. As cores vivas de Miró impressionaram João Cabral. Além do ensaio, o poeta escreveu um