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Capítulo I O Vodu haitiano: origem e evolução

4. Tensão entre o Vodu e o Catolicismo

4.2 Manifestações do sincretismo no Vodu haitiano

4.2.3 Plano das representações coletivas

Erzulie Freda Dahomey. É uma mulata, um lwa que representa a beleza e a graça cuja vida amorosa é feita de infelicidade. Ela corresponde à Virgem Mater Dolorosa (Nossa Senhora das Dores) ou Nossa Senhora do Carmo, pois as jóias que enfeitam a Virgem e seu coração traspassado pela espada evocam a riqueza e o amor próprios de Erzulie.

Agwe ou Agoué. Apresenta-se sob os traços de um rapaz branco tendo como símbolo um barco e um peixe. É o mestre do mar e seu correspondente é Santo Ulrico, que é representado na tradição católica com um peixe na mão.

Legba. É o mestre do portão que separa os homens dos espíritos, intérprete de todos os espíritos, portanto a chave do mundo espiritual, e corresponde a São Pedro.

Damballah Wedo. É o senhor das fontes e rios e tem como símbolo o arco íris e a serpente. É identificado com São Patrício. Este último é representado no cromo católico em traje de bispo, com serpentes embaixo de seus pés. A esposa de Damballah é Aïda Wedo (deusa do Arco Íris) representante da riqueza e fecundidade. Ela é identificada com Santa Isabel da Hungria.

Ogoum Feray. É o lwa guerreiro, mestre do ferro graças ao qual os escravos afrontavam os canhões durante a guerra da Independência. É também o espírito do fogo e é identificado com São Thiago Maior, representado por um cavaleiro.

Os exemplos poderiam estender-se muito mais. No entanto, cremos que já foram suficientes para mostrar a interpenetração que, de fato, ocorreu e ainda persiste entre Vodu e Catolicismo no Haiti.

Tabela 3 - Tabela de repartição dos lwa

Nome Rito Representação católica Atribuição Símbolo

Damballah Rada São Patrício Riqueza

Fortuna

Serpente e arco íris

Aïda Wedo Rada Santa Isabel da Hungria Riqueza Fortuna

Idem

Isolei Radar Virgem Maria. Amor. Coração

Agwe ou Agoué

Radar Santo Ulrico Proteção da navegação Barco

Simbi e Dosou

Petro ? Desgraça Represa

Ogoum Feray

Radar S. Tiago Maior Luta contra miséria Espada

Marinet Petro ? Viagem Coruja

Chango. Radar. S. João Batista. Sorte, chuva. Cordeiro

Ago Tonè Radar Id. Chuva Lagarto

Legba Radar S. Pedro. S. Antônio Protetor do lar Velho enfermo

Loko Radar S. José Cura Camponês

Zaka Radar ? Safra Camponês

Guede, Baron Samedi

Petro ? Malefício Cruz preta,

Moudong Congo

Congo São Roque? O mal ?

* * *

O que fizemos até agora foi mostrar que o Vodu haitiano nasceu durante o período da escravidão. A origem do Vodu está ancorada no contexto da escravidão. Nós não podíamos falar do Vodu ignorando o contexto de sua formação no Haiti. O Vodu do Golfo do Benin é naturalmente da mesma família daquele que encontramos no Haiti, mas há diferenças significativas. A escravidão não teria sucesso e não teria uma longa duração se não fosse o isolamento da população negra de seu clã, de sua tribo ou etnia. A principal estratégia dos colonos era justamente misturar os grupos étnicos. Isso fazia com que a população negra perdesse a sua memória e as suas raízes. Não podemos esquecer que a população negra no Haiti era obrigada a entrar num outro sistema religioso, o Catolicismo do Código Negro. O Catolicismo foi introduzido como justificação da escravidão. Os negros da África foram trazidos para o Haiti sob o pretexto de que lá eram infelizes e agora eles estariam em contato com o mundo civilizado através do cristianismo e iriam tornar-se humanos. O escravizado subverteu esta realidade. O Vodu serviu como um elo social entre os escravos. Quando chegou, o escravo era considerado um estrangeiro e vivia na periferia da sociedade como um indivíduo morto socialmente. Tinha então que reconstruir um mundo, um espaço fora da influência do dono, mesmo dentro da Igreja Católica, e em locais inacessíveis chamados Lakou, zonas de vida, zonas de marronnage. Aí o negro teve o contato com os índios que sobreviveram do genocídio espanhol. O negro retomou o conhecimento da farmacopéia, as plantas, os tradicionais métodos terapêuticos dos índios. A partir da memória africana e com os índios aprendeu a conhecer o ambiente no momento em que temos a reconstrução do Vodu, a reconstrução de um espaço de expressão da dignidade humana. Os escravizados formaram uma comunidade social e tiveram um vínculo entre eles a partir dos rituais e da mitologia que tinham reconstruído. Desde 1750 uma série de revoltas afetou a relação entre o escravo e o seu dono. Os escravizados utilizaram todo tipo de práticas, a magia e o conhecimento das plantas. Rumores de envenenamento dos brancos circulavam desde 1750. Uma primeira tentativa de revolta começou em 1758, e a mais importante foi a cerimônia du Bois Caïman, que suscitou várias controvérsias gerando dúvidas sobre se de fato aconteceu . É verdade que não há textos entre 1791 e 1818 que relatem essa cerimônia, mas uma série de histórias relatou as várias reuniões que aconteceram em várias residências no norte, os escravos se reuniram em várias casas e decidiram, através de um pacto estabelecido entre eles, a não denunciar o plano de uma insurreição geral e o fim, de uma vez por todas, da

escravidão. A revolta iniciou-se na noite de 14 a 15 de agosto de 1791 sob a liderança dos sacerdotes do Vodu, entre eles Toussaint Louverture. No próximo capítulo mostraremos como a Igreja Católica1 e o Estado haitiano marginalizavam o Vodu por ser a religião dos oprimidos.

1 No Haiti não há só a Igreja Católica como religião, há uma presença significativa dos protestantes, mas

optamos pela Igreja Católica porque ela, desde a chegada dos espanhóis foi considerada como a religião oficial e também pelo fato de ter exercido uma maior influência na sociedade haitiana.

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