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PLANO DE PARTO: REVISÃO DE UMA PRÁTICA POTENTE E SILENCIOSA

Nesse contexto de carência de informações, as redes sociais têm possibilitado a divulgação de conhecimentos de maneira sem precedentes, abalando as estruturas de poder da instituição médica, com a difusão de informações técnico- científicas outrora sob monopólio médico. Organizadas em grupos e fóruns, as mulheres recomendam umas às outras que escrevam planos de parto (Despertar do Parto, Amigas do Parto, Artemis)* como meio de comunicar ou exigir o respeito a seus direitos nas maternidades. Trata-se de documento elaborado durante a gestação, no qual a mulher descreve os procedimentos que recusa e os que aceita, com o objetivo de prevenir abusos e também de demonstrar à equipe o conhecimento sobre direitos, rotinas hospitalares e suas indicações.

O acesso a tais informações limita-se, de certa forma, a mulheres de camadas médias portadoras de um capital social que as possibilita fazer parte de um grupo privilegiado econômica e culturalmente. No entanto, é preciso reconhecer que

*

http://www.despertardoparto.com.br/modelo-de-plano-de-parto.html http://www.amigasdoparto.com.br/plano.html

trata-se de tecnologia desenvolvida por e para mulheres, como uma “linha de fuga” para a atual situação vivida nos serviços que prestam assistência ao pré-natal e parto.

Impulsionado pela noção de “decisão informada”, o uso de plano de parto está descrito na literatura de países industrializados desde a década de 1980 e foi proposto inicialmente como maneira de informar e proteger as mulheres, diante da percepção de que era crescente a medicalização do parto na sociedade norte- americana e europeia (LOTHIAN, 2006). Seu uso também está descrito como intervenção visando impactar o modelo das três demoras implicadas na mortalidade materna (demora na decisão da mulher e/ou da família em procurar cuidados; demora para chegar a uma unidade de saúde; demora em receber os cuidados adequados na instituição de referência), como instrumento para melhorar a comunicação entre a mulher e a equipe que atende seu parto e como instrumento de diálogo cultural sobre a experiência do parto entre mulheres filipinas residindo na Austrália (MONTOYA, 2011; WHITFORD et al., 2014).

A orientação para que as mulheres escrevam planos de parto está disseminada em sítios nas redes sociais, é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo National Institute for Health and Clinical Excellence (Nice), consta como direito na lei municipal 15.894/2013, que visa coibir a violência obstétrica no município de São Paulo, e está prevista pela Portaria 1020/GM/MS 2013, do Ministério da Saúde.* Além disso, vem sendo incorporada como uma das ações a serem desenvolvidas pelas equipes que prestam assistência pré-natal na atenção primária à saúde na cidade de Belo Horizonte e também por alunas de Obstetrícia (EACH-USP)* em seu campo de estágio em algumas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) da cidade de São Paulo. Apesar de o plano de parto estar presente na forma de lei, normas e prática dentro do país, não há estudos sobre seu

* http://whqlibdoc.who.int/hq/1996/WHO_FRH_MSM_96.24.pdf?ua=1 http://www.nice.org.uk/guidance/cg62 http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Legislacao&id=740 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1020_29_05_2013.html *

A Universidade de São Paulo (USP) oferece desde 2005 um curso de graduação em Obstetrícia, que pertence à Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH). O curso forma bacharéis em Obstetrícia com entrada direta preparados para atendimento de mulheres gestantes de risco habitual, do pré-natal ao parto, pautado pelo cuidado e por evidências científicas. O modelo adotado segue a

Midwifery inglesa. Segundo a coordenadora do curso, Nádia Zanon, as egressas são registradas e

têm encontrado espaço para atuar na rede pública e privada. Ver mais em: <http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/148/reportagens/o-lugar-das-enfermeiras-e-

impacto no Brasil. A maioria das publicações compreende polêmicas em torno de seu uso, e é oriunda de outros países.

A prática da construção de planos de parto tem como benefícios: possibilitar que as mulheres expressem suas preferências, elevar sua autoconfiança sobre o parir e a sensação de controle, melhorar a comunicação com a equipe, favorecer o empoderamento das mulheres por aumentar seu conhecimento e compreensão sobre práticas do parto, de modo a ajudar em escolhas informadas (MOORE; HOPPER, 1995; LOTHIAN, 2006; YAM et al., 2007; WHITFORD et al., 2014). Quando encorajada pela maternidade, a prática pode demonstrar o compromisso de profissionais de saúde em reconhecer e apoiar a diversidade de opiniões, permitir a reavaliação de protocolos e práticas clínicas e oportunizar uma melhora da qualidade do serviço (WHITFORD et al., 2014).

A discussão no pré-natal de informações sobre a fisiologia do parto, os riscos e benefícios de possíveis procedimentos realizados na maternidade e direitos da gestante pode constituir-se ainda como estratégia de prevenção quaternária (TESSER et al., 2014). Esta é concebida como atitude e ação de identificação e evitação de situações de risco de hipermedicalização e intervenções desnecessárias (BENTZEN, 2003).

O plano de parto, no sentido de recuperar o direito à voz das mulheres, pode ser entendido ainda como uma maneira de reforçar a “segurança da paciente” (REIS; MARTINS; LAGUARDIA, 2013), já que um paciente assertivo, capaz de chamar a atenção para si em uma situação de emergência, é capaz de reduzir seus riscos, mesmo que seja mal visto pelo sistema.

No entanto, mesmo em países que historicamente optaram por um modelo de assistência ao parto focado no atendimento por midwives e com baixa intervenção, há relatos de que o plano de parto possa perturbar a relação com o atendente (LUNDGREN; BERG; LINDMARK, 2003; LOTHIAN, 2006) e gerar insegurança entre as mulheres (GULBRANDSEN et al., 2004). Justifica-se que atitudes negativas possam decorrer justamente do fato de a prática não ser encorajada como parte de uma rotina, sendo por isso desconhecida e refutada pelas equipes que prestam assistência ao parto (WHITFORD et al., 2014).

A indisposição médica para o diálogo e para uma medicina centrada nas mulheres pode ser reconhecida em diversos artigos já a partir de seus títulos: The

cabeça” (REYNOLDS, 1987), ou mesmo como um First step to the OR?, insinuando que mulheres que muito desejam um parto normal acabam sendo submetidas a cesarianas (OR corresponde a obstetric room, ‘centro cirúrgico’) (WHITE-COREY, 2013).

Há também, entre médicos, posições intermediárias que enxergam no plano de parto uma maneira de “evitar conflitos” e prevenir problemas antes que eles surjam (BURCHER, 2013), ou seja, evitar litígios. BURCHER (2013) afirma que algumas coisas são não negociáveis, e que deve prevalecer a opinião médica. Mas, sendo assim, teriam as mulheres direito de expressar suas questões e preferências e tê-las consideradas por seus cuidadores? (SIMKIN, 2007). Uma resposta possível e mais radical seria a de que “Mulheres precisam mais do que ser ouvidas, precisam de médicos que levem a sério o que elas querem mesmo que isso signifique heresia médica” (PERRY; QUINN; NELSON, 2002).

Segundo LOTHIAN (2006), os planos de parto deveriam responder a três perguntas focadas nas mulheres: o que eu farei para estar confiante e sentir-me segura? O que eu farei para encontrar conforto em resposta à dor? Quem vai me dar apoio no trabalho de parto e o que eu precisarei dessas pessoas? O problema com relação a seu uso talvez seja justamente que as informações sobre plano de parto são direcionadas para as mulheres, enquanto seus cuidadores foram formados para uma prática prescritora e disciplinadora. SHAW antevê o problema e alerta para o fato de que é o encontro em si o evento a ser negociado (SHAW, 2002).

É importante ressaltar que a maioria dos estudos citados é proveniente de países que já passaram por uma reforma de seus serviços obstétricos, apesar de hoje acompanharem a tendência mundial à medicalização. As controvérsias expostas demonstram que há ainda um necessário aprofundamento a ser feito sobre o uso do plano de parto como ferramenta para propiciar diálogo e capacidade de autodeterminação para as mulheres.

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