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Os Platôs Infantis nas práticas formativas como imanência do desejo de “CurrículosCrianças”

4. LINHAS, FLUXOS E INTENSIDADES NAS PRÁTICAS CURRICULARES E FORMATIVAS DOS PROFESSORES: um Corpo sem Órgãos na Educação Infantil.

4.2. Os Platôs Infantis nas práticas formativas como imanência do desejo de “CurrículosCrianças”

Entender um pouco sobre o que povoa, passa e bloqueia a passagem de intensidade por um Corpo sem Órgãos na Educação Infantil se fez pertinente para conhecer e vislumbrar práticas educativas capazes de potencializar outros modos de aprender na infância. O processo de pesquisa no CMEI “Alegria” foi conduzido por esses interesses, não como uma necessidade de “representar, interpretar nem simbolizar, mas apenas a fazer mapas e traçar linhas, marcando suas misturas tanto quanto suas disjunções” (Deleuze e Guattari, 1996, p. 109).

A busca pela cartografia de “mapas infantis” está diretamente vinculada à invenção de novas formas de pensar a Educação Infantil a partir de um questionamento constante de nossa relação com a infância e de nossa constituição como indivíduos que se relacionam com a infância. Essa invenção deve partir dos acontecimentos que tornam as

experiências possíveis, intempestivas e descontínuas. Como nos ensina Kohan (2004, p. 60), “[...] uma experiência, um acontecimento, interrompem a história, a revolucionam, criam uma nova história, um novo início. Por isso é um devir minoritário”.

O autor nos fala do devir minoritário como algo não modelado, sempre em processo, que consegue fugir do controle e resistir, estabelecendo espaços micropolíticos que, mesmo coexistindo com os espaços de macropolítica ou de segmentaridade, trazem possibilidades de se pensar em novas ações para a formação continuada, para as práticas curriculares e para a Educação Infantil. Essa concepção de uma infância minoritária, nas palavras do autor:

[...] é a infância como experiência como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, que se encontram num devir minoritário, numa linha de fuga, num detalhe; a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes “a criança autista”, “o aluno nota dez”, “o menino violento”. É a infância como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do “seu” lugar e situar-se em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados (Kohan, 2004, p. 61).

Falar de uma infância minoritária dentro de um CMEI pode até parecer um pouco contraditório, à primeira vista, mas, como o próprio autor destaca, é preciso resistir aos movimentos concêntricos e buscar traçar linhas de fuga.

A pesquisa estava cada vez mais interessada nos movimentos criados em devir: devir- minoritário, devir-criança. Muitas intensidades produzidas no CMEI “Alegria” compunham acontecimentos, rupturas, novas práticas, saberes, vozes e ações que, de uma forma ou de outra, atuavam na elaboração de si, elaboração individual e coletiva daqueles indivíduos e do currículo escolar.

A infância como intensidade, produzida e experienciada nos espaçostempos do CMEI, nas salas de aulas, nos pátios, nas redes de conversas que os professores estabeleciam, trançavam novos entrelaçamentos para as diferentes redes de saberes, fazeres, poderes e afetos, e, desse modo, desenhavam “mapas infantis” para o aprender na infância, por meio de “CurrículosCrianças”.

“Os CurrículosCrianças”, em meio à tensão das garatujas e das linhas retas que se delineavam no cotidiano escolar, faziam-se sentir durante o processo de pesquisa. Em muitos momentos, não era fácil percebê-los ou senti-los: era preciso um olhar mais atento, um olhar sensível, que toca o corpo e se faz com ele. Como bem diz Rolnik (2007,

p. 15) “o olhar não é do tipo que se debruça sobre as mutações vividas nesse processo, mas daquele que se constrói junto com elas e como parte delas.

A pesquisa caminhou e se constituiu em meio às mutações escolares. As muitas conversas com os professores foram dando indícios de que é possível a elaboração de “CurrículosCrianças”. O que muitos profissionais agenciavam em suas falas eram possibilidades para se criar máscaras de expressão e dar passagem aos muitos afetos e às intensidades que circulam no CMEI. Muitos professores, durante os momentos de formação continuada, agenciavam “CurrículosCrianças”, para que em Devir-Criança pudessem explodir a dureza do dia-a-dia e compor, em platôs infantis, novas práticas formativas e curriculares.

Eu adoro aprender coisas novas, discutir os problemas e desafios de nossa prática, mas o que vejo nas formações em geral é uma falta de conexão com as coisas do nosso dia a dia. Em cada formação aborda- se uma coisa diferente, e quando vai se pensar de colocar em prática não funciona. Fico pensando: perdemos muito tempo com discussão de assuntos que vêm da secretaria, como campanha salarial. Mas até agora não conheço o PPP da escola, não tenho acesso a ele, não se discute sobre o currículo na educação infantil, que é algo de interesse de todas as profissionais aqui da escola. Quando perguntei pelo PPP, quando sugeri que discutíssemos o currículo, me falaram que tudo isso já está pronto, que já fizeram isso antes de eu chegar na escola. Este é o meu segundo ano nesse CMEI, e acho que tenho direito e tenho vontade também de pensar o currículo (Narrativa da professora Virgínia, 30/04/2010).

As intensidades geradas pela narrativa da professora ao expressar seu desejo de pensar o currículo como CurrículosCrianças, é, segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 18), o que “Bateson denomina platôs, as regiões de intensidade contínua, que são constituídas de tal maneira que não se deixam interromper por uma terminação exterior, como também não se deixam ir em direção a um ponto culminante”.

A vontade de pensar o currículo, mesmo quando há determinações exteriores contrárias, revela a imanência do desejo de questionar os modos pelos quais atuamos como professores, como preparamos nossas aulas, as problemáticas levantadas para que os diferentes conhecimentos possam ser proferidos e aprendidos na Educação Infantil. Esse desejo está diretamente relacionado com a vontade de potencializar as práticas educativas, mobilizando saberes, fazeres, poderes, afetos e pessoas para a tessitura de um outro olhar sobre os processos educativos na infância.

Olhar que encontra hospitalidade em um pensar intensivo sobre o currículo na Educação Infantil, que auxilia na criação/invenção de novas ideias e de novas práticas formativas e curriculares, contribuindo para que essa etapa da educação básica seja reconhecida e valorizada pelo desenvolvimento de intensidades contínuas que promovem as diferentes

maneiras de pensar e de aprender e, não apenas como responsável pelo cuidado de crianças pequenas.

É nesse sentido que se pode pensar a Educação Infantil como um Corpo sem Órgãos (CsO): considerando o cotidiano escolar como uma teia composta por vários CsO e seus platôs. A articulação e a comunicação das intensidades criadas nas salas de aula, nas vozes dos professores e dos alunos, nas diversas leituras e conversas sobre o currículo, na estimulação do pensamento para o aprender, é o que determina um platô infantil e o que potencializa os “CurrículosCrianças” a dar passagem aos conhecimentos e à vida. Deleuze e Guattari (1996, p. 18-9) consideram que “Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem”.

Entre as várias regiões de intensidade contínua misturadas no cotidiano escolar, percebidas durante a pesquisa, uma em especial chamou atenção por atuar como componente de passagem para a valorização dos processos formativos.

Em uma das experiênciasformações estabelecidas com o turno vespertino, no dia 03/08/2010, a ação da professora Alice chamou atenção de todos. Nesse dia, a professora não trabalhara no turno vespertino por conta de uma formação sobre alfabetização na SEME. Estávamos todos reunidos para nosso encontro, que ocorria uma vez por semana após o término das aulas, quando a professora chegou e se juntou ao grupo. Os olhares de todos foram de surpresa e de espanto ao vê-la, pois, sem ter a obrigação de retornar à escola para nosso momento de formação continuada, mas mesmo assim ali estava.

Durante as conversas e relatos estabelecidos nesse encontro, a pedagoga Sônia tomou a fala: “Olha, acho que este compromisso e dedicação que Alice demonstrou aqui hoje pela formação continuada, em retornar à escola somente por causa da formação, só pode refletir o belíssimo trabalho que ela desenvolve em sua sala de aula. O que nós conhecemos aqui hoje, a partir dos relatos e da exposição da professora Alice nos diz por que essas crianças tão agitadas, essa turma tão numerosa e conflituosa está tão bem na leitura”.

Órgãos na Educação Infantil com a vontade de constituir-se a cada dia de um modo novo, ético e estético, de modo a elaborar “CurrículosCrianças”. Entretanto, o Corpo Formativo sem Órgãos que as ações da professora ajudam a povoar também são agenciados por linhas duras que tentam enquadrar as ações de Alice como modelo de perfeição, idealizando um tipo de profissional e de práticas curriculares e formativas para o CMEI. Quando o gesto da professora é utilizado como exemplo, no momento em que todo o grupo de professores do turno vespertino estava reunido, para destacar que o compromisso e o desejo de Alice pela formação continuada reflete em suas práticas como o belo trabalho desenvolvido com a turma, traz à tona a ressonância das linhas molares, a dureza das linhas da vida escolar, pois estabelece um papel principal para a professora naquele momento: a “mocinha” da educação.

A tentativa de enquadrar o gesto da professora, ao apontar os desafios cotidianos – como “turma numerosa e conflituosa”– como algo “sobrenatural”, supervalorizando as ações dessa profissional, colocando-as como modelo a ser seguido pelos outros profissionais, tende a engessar a vontade formativa dos professores, podendo bloquear a passagem das intensidades que ajudam a elaborar “CurrículosCrianças”.

A elaboração de “CurrículosCrianças” não perpassa o estabelecimento de modelos de profissionais ou de práticas pedagógicas, mas pelas problematizações coletivas das intensidades contínuas encontradas nos platôs infantis, entre as dificuldades e desafios que os docentes enfrentam e entre o desejo e o compromisso com uma educação de qualidade, que os Corpos sem Órgãos vão se constituindo dentro das escolas. Para Deleuze e Guattari (1996, p. 22), “o CsO não pára de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera”.

Para que a coexistências de linhas tão diferentes em um mesmo CsO não seja destrutiva, pelo caráter de engessamento ou de fugas incessantes sem razão, é preciso, segundo esses autores, prudência, para se ter a capacidade de perceber como uma turma numerosa, agitada e conflituosa pode potencializar o estímulo e a inserção dessas crianças no mundo da leitura, desprendendo as intensidades contínuas para um CsO.

O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar- se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga

possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para um CsO (DELEUZE E GUATTARI, 1996, p. 22).

“Um pequeno pedaço de uma nova terra”, era o que o grupo de professores agenciavam em nossas experiências formações. As conversas sobre o currículo escolar apontavam para o desejo de outros processos curriculares, não só prescritos ou só vividos, mas os que pudessem ser postos em questão pelas redes de conversações criadas pela coletividade escolar. O pedaço de uma nova terra seria como criar para o currículo escolar CsO como os “CurrículosCrianças”, haja vista que, para Deleuze e Guattari (1996, p. 26) “há desejo toda vez que há constituição de um CsO numa relação ou em outra”.

Na experiência formação do dia 24/08/2010, quando discutíamos sobre o currículo escolar, os modos de fazimento que os professores percebiam estar presentes na rotina do CMEI “Alegria”, a professora Tatiana, ao destacar sua posição acerca da discussão sobre o currículo a partir das narrativas das experiências dos professores, fez a seguinte explanação:

“A cada história contada, mais eu via este CMEI com outros olhos. Nós ficamos tão presos em nossos espaços e tempos que há vezes em que nem nos vemos. Acho que o mesmo sentimento devem ter as famílias, quase nunca têm tempo para vir à escola, para conhecer o que as crianças fazem. Acho que se contarmos o que elas fazem, do jeito que fazem, do que elas brincam e como esse brincar é importante, muita coisa já mudaria. Acho que eles também olhariam para a escola de outro jeito”.

Produzir “CurrículosCrianças” dentro do currículo escolar é o que a professora agencia quando destaca que outras possibilidades de se pensar o currículo e a escola perpassam também o narrar das práticas educativas, não só entre professores, mas para e com a comunidade escolar em geral. Contar os processos e as relações que emergem no cotidiano escolar, fabular sobre o brincar, pensar, conhecer, afetar e ser afetado na Educação Infantil ajuda a desprender as intensidades contínuas dos platôs para os CsOs. Deleuze e Guattari (1996, p. 14) ressaltam que: “O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo).

Nesse contexto, desprender as intensidade é dar passagem e fuga para os fluxos de criatividade, inovação e experimentação que foram delimitados em territórios fixos,

segmentados e endurecidos. É povoar um CsO com o desejo coletivo de potencializar as práticas formativas e curriculares com os olhares, vozes e ações de professores e alunos. Esse desejo de agenciar outros modos de pensar a formação continuada e, consecutivamente, o currículo escolar precisa ser entendido não como um simples protesto a modelos antigos, mas como desejo de produção coletiva. Produção de linguagens, conhecimentos e afetos que, como “CurrículosCrianças”, buscam o devir, a alegria, a curiosidade, a movimentação de corpos; CsO como lógicas para o pensar, o aprender, o viver nas escolas.

4.3. De máquinas curriculares privadas a máquinas curriculares coletivas na