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O poder complementar dos juízes e a teoria dos instrumentos limitativos da expansão

Capítulo III: A era pós-industrial e o advento da sociedade de risco: o

2. O poder complementar dos juízes e a teoria dos instrumentos limitativos da expansão

Diante de toda seara de dificuldades na qual se encontra mergulhado o sistema de direito penal vigente, surgiu a pergunta problema reitora de nosso estudo, qual seja: o poder de complementação judicial pode contribuir na contenção da ilegítima expansão do direito penal brasileiro? A partir do problema proposto, constatamos que o poder de complementação seria capaz de levar o Judiciário a contornar parte dos problemas apresentados, sem a utilização drástica da declaração de inconstitucionalidade de uma miríade de crimes afetos às situações apontadas. Para tanto, e sempre buscando prestigiar a atividade legislativa, notamos que o referenciado poder de complementação precisaria de instrumentos para sua concretização. E os instrumentos com maior aptidão para responder a contento o problema proposto são os seguintes: i) a dignidade da pessoa humana; ii) o devido processo penal material; iii) o funcionalismo penal; e iv) a interpretação conforme a Constituição.

Demonstraremos que a dignidade humana, como o primeiro instrumento da teoria, deve ser um norte a guiar toda interpretação penal, a qual deve ser pautada sempre na busca da mínima intervenção. Como segundo instrumento, veremos que o devido processo legal teve seu raio de atuação aperfeiçoado pelos juízes e já há algum tempo ostenta uma versão formal e outra material, esta última versão originou o devido processo penal material, com aptidão para contribuir na contenção do direito penal. O funcionalismo penal será estudado como o terceiro instrumento, com potencial de influenciar na formação de um novo direito penal, marcado por uma dogmática mais racionalizada, capaz de sobreviver perante a sociedade de risco. Por fim, o derradeiro instrumento de limitação penal é o princípio da interpretação conforme a Constituição, servindo como uma ponte no cotejo do direito penal ante os princípios constitucionais relativizados pela sociedade de risco.

Cada instrumento foi nominado de forma específica, de modo a facilitar a identificação da essência de sua atividade no campo prático. A dignidade da pessoa humana, dada a sua natureza diretiva e abrangente, foi nominada de instrumento-guia, com incidência concreta conjunta e obrigatória com os demais instrumentos, eis que qualquer norma penal ilegítima tem a capacidade de macular a dignidade do homem. Por sua vez, o devido processo penal material recebeu o nome de instrumento-princípio, haja vista sua reconhecida força normativa principiológica, com disposição suficiente para incidir no campo prático de imediato. O funcionalismo penal, ainda carente de ampla aceitação no Brasil, é o instrumento-doutrina, o qual vem sendo burilado pelos

limitativa. Arrematando a teoria, a interpretação conforme ganhou o título de instrumento-interpretativo, pois terá a missão continua de capitanear toda atividade interpretativa às raias da Constituição.

Algumas observações ainda se mostram importantes para entender a teoria. A primeira observação liga-se à forma de atuação dos instrumentos. Como já antecipamos, a dignidade humana terá incidência sempre. Isso porque ninguém duvida de que a ilegitimidade de uma contravenção penal até um crime hediondo tem força suficiente para restringir a dignidade humana, por conta da própria natureza agressiva da intervenção penal. Razão disso, a realização do poder complementar no campo penal sempre observara a dignidade humana. Quanto aos demais instrumentos, poderão ser aplicados tão-somente com o instrumento-guia ou mesmo em companhia dos demais instrumentos. Assim, por exemplo, um magistrado poderá fazer uso do devido processo penal material (instrumento-princípio) concomitantemente ao uso da interpretação conforme (instrumento-interpretativo) para afastar a aplicação de um crime, mas deverá ter sempre em mente a maximização da liberdade humana evidenciada pela sua dignidade (instrumento-guia).

A segunda observação refere-se ao campo de incidência dos instrumentos. A bem da clareza, nosso estudo se dirige ao direito penal material, mais precisamente na ideia de corporificar um sistema penal calcado no minimalismo, por ser essa a diretriz extraída da nossa Constituição. A partir daí, o intuito é de contribuir no combate a qualquer forma de alargamento ilegítimo do direito penal. Apesar disso, nada impede que todos os instrumentos, com exceção do instrumento-doutrina, sejam transportados para o processo penal. Como exemplo disso, basta analisar o julgamento pelo STF do Habeas Corpus 103.362/PI, cuja relatoria coube ao Ministro Celso de Mello, quando sua Excelência, fazendo uso do devido processo penal material, entendeu ser inconstitucional a vedação de liberdade provisória prevista no art. 44 da Lei 11.343/06 e determinou a soltura do acusado que foi preso em flagrante ao portar 66 gramas de sementes da substância vulgarmente conhecida como maconha.195

195 Vale trazer os seguintes trechos do r. julgado: “ Essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória (art. 44 da Lei 11.343/06, Lei de Drogas) não pode ser admitida, eis que se revela manifestamente incompatível com a presunção de inocência e a garantia do dues process of law, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República, independentemente da gravidade objetiva do delito”. E, mais adiante, Sua Excelência conclui: “Vê-se, portanto, que o Poder Público, especialmente em sede processual penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo

A terceira e última observação cuida-se da didática utilizada. Nesse aspecto, tivemos o cuidado de trazer informações reputadas por nós como essenciais sobre cada instrumento proposto, de modo que seria incompatível com o objetivo de nosso estudo discorrer de forma exaustiva sobre cada um deles, sob pena de incorrermos em fuga do tema principal. Porém, não seria adequado trazer apenas o conceito dos instrumentos, eis que pecaríamos pela insuficiência. Buscamos, então, o meio termo. As informações sobre os instrumentos foram correlacionadas ao poder de complementação dos juízes e, com a finalidade de demonstrar a utilizada prática da teoria, trouxemos exemplos reais, por meio dos quais o leitor pode observar a teoria já em funcionamento e, ainda, elencamos exemplos imaginários, em demandas penais carentes de solução racional doutrinária e legislativa, embora com perfeita realização empírica. Outrossim, os casos suscitados no capítulo terceiro, versando sobre crimes de perigo abstrato e delitos cumulativos, somente agora receberão suas respostas, à luz da teoria em destaque.

O importante daqui para frente é perceber a maneira por meio da qual cada instrumento é associado ao poder complementar dos juízes, contribuindo na contenção da expansão ilegítima do direito penal. O foco principal é rejeitar toda e qualquer abordagem do sistema penal que não encontre respaldo na racionalidade, reduzindo as intervenções espúrias e recheadas de simbolismo, de maneira a realçar o caráter subsidiário do direito penal, ou seja, reafirmando seu posto de ultima ratio. E não podemos deixar de reafirmar que o poder complementar deve ser captado como a capacidade legítima do Poder Judiciário e de todos os seus membros de densificar cláusulas abertas, conceitos jurídicos indeterminados e princípios constitucionais e infraconstitucionais, incluindo a matéria penal que ora nos interessa, de modo a conceder uma interpretação consentânea com a essência garantista da nossa Constituição, caso contrário, a declaração de inconstitucionalidade é o caminho a ser adotado.196

princípio da razoabilidade”. Conferir, ainda, nesse sentido, o Habeas Corpus 92.299/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgado pelo STF.

196 Desde logo, sublinhamos que o poder complementar somente poderá ser aplicado em prol da maximização da liberdade humana, restringindo o campo de intervenção penal. Contudo, de maneira alguma haverá prejuízo a modalidade interpretação extensiva, onde o juiz também complementa o direito em situações excepcionais onde “as palavras do texto legal dizem menos do que sua vontade, isto é, o sentido da norma fica aquém de sua expressão literal.” (BITENCOURT, 2014, p. 196)

3. O reconhecimento judicial da dignidade humana como diretriz