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O poder decisório dos médicos e dos familiares em face da vontade expressa do

3 AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

3.4 Do reconhecimento normativo das Diretivas Antecipadas de Vontade no Brasil

3.4.8 O poder decisório dos médicos e dos familiares em face da vontade expressa do

A elaboração de uma Diretiva Antecipada de Vontade – que esteja de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro vigente, ou seja, que não resulte na eutanásia – vincula, no estágio terminal de vida inconsciente de alguém, todos os atores envolvidos na tomada de decisão em seu lugar, notadamente a equipe médica, os familiares, amigos ou procuradores do paciente, que deverão empreender esforços para seguir a sua vontade expressa ou conhecida.

Os parentes têm papel relevante na hora de orientar a equipe médica acerca da vontade conhecida do enfermo, atuando como testemunhas e conhecedores dos valores, preferências, pensamentos e crenças do mesmo. É certo, ainda, que também sofrerão com a morte do ente querido, situação especialmente prolongada no caso da obstinação terapêutica.

Na ausência de disposições prévias do paciente, nesse espeque, é a vontade dos seus familiares e/ou responsáveis que deve ser seguida. Contudo, quando presente, ou seja, diante da existência da DAV, o poder decisório da parentela não pode se sobrepor aos desejos expressos do enfermo, eis que merecem maior guarida os interesses de quem tem a vida em jogo e será diretamente afetado pelo tratamento de saúde.

Cabe trazer ao presente trabalho, no ponto, o acórdão proferido pela Vigésima Primeira Câmara Cível do TJRS, no julgamento da Apelação Civil nº 70042509562/2011, reconhecendo que, na iminência de um quadro terminal de saúde, a vontade da paciente anteriormente

manifestada deve prevalecer em face dos desejos contrapostos de familiar e da própria instituição hospitalar.

No caso concreto, a parte autora (hospital) ajuizou a ação pretendendo o respaldo judicial à sua decisão de submeter, ou não, a interna Irene à hemodiálise, “frente à divergência familiar no tocante a aderência ou não da paciente ao tratamento proposto, principalmente diante das circunstâncias que norteiam as decisões baseadas na ortotanásia” (TJRS, 2011). De um lado, o filho de Irene, Gilberto, requeria a dispensa da hemodiálise, informando que esse também era o desejo da própria paciente, o qual lhe foi informado em momento anterior à internação. De outro, o neto Guilherme, responsável pela internação, teria manifestado vontade diversa, ou seja, exigiu o emprego do tratamento médico.

Os desembargadores, ao julgarem a questão, entenderam que, diante da opção manifestada por Irene quando ela ainda possuía discernimento, junto ao atestado médico de que o procedimento é arriscado, penoso e ineficaz para a reversão da enfermidade, não há motivos para deixar de acatar a Diretiva Antecipada em questão. Prevalece, assim, a opção do familiar que mais se coaduna à vontade da paciente.

De outro lado, no que diz respeito ao poder decisório do médico, ele deve, igualmente, respeitar a vontade do enfermo e conduzir sua atuação com base nesse imperativo ético, regra que vale a qualquer outro profissional de medicina. Tem o direito de não a acatar se entender que a opção do enfermo não for a melhor decisão para a sua saúde diante da possibilidade de cura ou reversão terapêutica, ou seja, quando se deparar com um estado de saúde que não é verdadeiramente terminal ou quando a Diretiva Antecipada de Vontade prever a suspensão de cuidados paliativos. Possui, ainda, o direito constitucional de recusar-se a atender os desejos expressos se eles atentarem contra a sua consciência ou contra sua crença (CF, art. 5º, VI), hipótese em que deverá encaminhar o paciente a outro médico que seja capaz de cumprir a DAV.

Em síntese, de acordo com os ensinamentos de Luciana Dadalto (2010, p. 140) sobre o tema:

Insta salientar que o cônjuge, companheiro e demais parentes do paciente, bem como eventual procurador nomeado estão atrelados à declaração previa de vontade do paciente terminal, ou seja, devem respeitar a vontade do paciente. Vinculada ainda as instituições de saúde e os médicos, contudo,

estes podem valer-se da objeção de consciência, com fulcro no artigo 5o, VI da CF/88, caso tenham fundado motivo para não realizarem a vontade do paciente. Ressalte-se que, neste caso, o paciente deve ser encaminhado par a outro profissional, a fim de que sua vontade seja respeitada.

Atualmente, a inexistência de lei que reconheça a validade das Diretivas Antecipadas de Vontade do paciente terminal e regule a sua aplicação representa uma ampla insegurança jurídica na atuação do profissional de medicina, eis que, qualquer que seja a sua conduta, estará suscetível à responsabilização judicial e/ou administrativa.

Por um lado, se o médico acatar a DAV, embora reste comprovado neste trabalho que não será o causador da morte do paciente, pode ser responsabilizado penalmente por isso, tendo em vista que a validade da ortotanásia decorre, por enquanto, de um esforço interpretativo sistemático da Constituição Federal e das leis brasileiras, o que nem sempre é feito da maneira mais adequada pelos operadores da ciência jurídica (MABTUM, MARCHETTO, 2015, p. 126).

A pouca legislação em sentido próprio existente no Brasil reconhece, tão somente, a autonomia do paciente, mas não a legalidade da prática da ortotanásia pela equipe médica.

Ademais, conforme visto, as resoluções do CFM que tratem explicitamente sobre isso (Resoluções nº 1.805/2006 e nº 1.995/2012), não servem como excludentes de antijuridicidade ou de ilicitude da conduta, eis que vinculam apenas a atuação profissional, impedindo, no máximo, sanções administrativas no âmbito do Conselho Federal de Medicina.

Na iminência de um processo judicial, mesmo que a sentença venha a reconhecer a validade da ortotanásia através da correta interpretação da ordem jurídica vigente, só o fato de enfrentar a persecução penal já́ é razão suficiente para causar, ao médico, enormes prejuízos, dentre eles as custas processuais, a difamação na sua carreira profissional, a repercussão do caso na família e amigos e a sua própria aflição interna pelo receio de ser condenado penalmente.

De outro lado, se o médico se negar imotivadamente a realizar a vontade declarada do paciente terminal, ou seja, sem justificar-se por razões éticas, morais, religiosas ou qualquer outra de foro íntimo, estará praticando, com isso, uma infração ética, passível de reprimenda civil e administrativa. Pior ainda se essa vontade é a de suspender tratamentos extraordinários infrutíferos e, mesmo assim, o profissional continuar com a obstinação terapêutica, sem

promover nenhum benefício ao paciente e ampliando seu sofrimento contra o seu desejo expresso.

No que se refere à possibilidade de responsabilização administrativa, esta decorre da regra disposta no art. 41 do Código de Ética Médica69, que impõe ao profissional de medicina o respeito pela autonomia dos seus pacientes, proibindo, especialmente, a recusa infundada.

A propósito da possibilidade de condenação civil perante o judiciário, por sua vez, esta ocorre em razão de prejuízos morais e materiais que o não cumprimento da vontade do enfermo lhe causa. Para tanto, faz-se necessária a configuração da responsabilidade civil, exigindo-se a comprovação do nexo causal entre a conduta do médico (de restringir a autonomia do paciente) e o resultado (dano moral ou material).

Como explica Fabrício Zamprogna Matielo (1998, p. 15):

O liame entre dano e responsabilidade é fundamental para a existência da obrigação de reparar, vista aquela sob o ângulo subjetivo. (...) Essa espécie é dita subjetiva porque estratificada na convicção de que está presente, no caso concreto, a ligação psíquica do agente com o resultado danoso, de modo que este quer diretamente produzir o efeito que efetivamente veio a ser constatado ou no mínimo se porta de modo a aceitar como perfeitamente viável a ocorrência do evento a partir da conduta assumida.

Conforme as observações do autor, é imprescindível, ainda, a demonstração de que o médico agiu com culpa na sua conduta (negligência, imprudência, imperícia ou dolo), tendo-se em mente que a responsabilidade civil, neste caso, decorre de uma prestação de serviços regulada pelo Código do Consumidor70 como sendo subjetiva, em que os serviços médicos encontram-se pautados por uma obrigação de meio e não de resultado.

A esse respeito, continua Matielo (1998, p. 53):

Obrigação de meios é a que vincula o profissional à aplicação diligente de todos os recursos disponíveis para a melhor condução possível do caso

69 Assim prevê o ato normativo em questão, in verbis: “É vedado ao médico: (...) Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. (BRASIL, 2009).

70 V. nota 2.

clínico que será alvo de seus préstimos. O médico não fica adstrito a um resultado final, mas tem de envidar todos os esforços e utilizar-se dos aparatos técnicos que estiverem razoavelmente ao seu alcance. A cura do paciente não é, certamente, o objetivo jurídico da contratação, embora se coloque como finalidade primacial do atendimento prestado. (...) A existência da obrigação de meios é a única solução que pode justificar a liberdade de atuação do profissional de saúde, pois se fosse ele jungido a um resultado específico, fatalmente estaria derrubada até mesmo a teoria da contratualidade nas relações médico/paciente. (...) O compromisso de curar definitivamente um canceroso em etapa terminal, ou um aidético nas mesmas condições é carga insustentável face ao estado atual de evolução da ciência.

Aceitar o encargo de curar, (...) equivaleria a estabelecer no contrato obrigação juridicamente impossível. (...) Na relação que envolve obrigação de meios o objeto do contrato é a atuação zelosa e tecnicamente correta do médico, mantendo-se dentro dos parâmetros apontados pela ciência.

Diante disso, em que pese o médico não ser obrigado a curar a enfermidade, deve atuar com zelo pelos parâmetros apontados pela ciência médica, dentre eles, o de respeito pela autonomia e dignidade do paciente.

Os danos causados em decorrência do desrespeito por estes direitos podem ser, primeiramente, de natureza moral, decorrentes de um sofrimento psicológico que atinge valores íntimos do enfermo e seus familiares. Nessa perspectiva, é inegável que o descumprimento da vontade do paciente, especialmente no sentido de se posicionar contra a distanásia, é conduta médica que causa abalos e angústia passível de responsabilização moral.

Com relação aos danos patrimoniais, estes decorrem dos custos gerados pelo prolongamento do processo da morte, quais sejam, os valores elevados dos tratamentos e da tecnologia utilizada, a remuneração dos serviços profissionais envolvidos, as taxas de internação em quartos de hospitais e UTI, além das custas judiciais e advocatícias supervenientes do processo judicial.

Diante de todo o exposto, resta evidente a insegurança jurídica que decorre da tomada de decisões no fim da vida, notadamente para a equipe médica, que, atendendo ou não a vontade do paciente a respeito da ortotanásia, pode sofrer sanções éticas, morais e materiais.

Faz-se urgente, nesse sentido, a regularização das Diretivas Antecipadas de Vontade, para solucionar esse problema ao qual estão expostos, cotidianamente, os profissionais envolvidos com pacientes terminais.