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PODER, LEI E LIBERDADE

No documento Hannah Arendt: ruptura, julgamento e liberdade (páginas 195-200)

CAPÍTULO III – LIBERDADE

3. PODER, LEI E LIBERDADE

Arendt explica81 que o poder é o que mantém a existência do espaço da aparência. Ele existe apenas em sua atualização, nunca depende totalmente de fatores materiais, ocorre potencialmente onde quer que os homens estejam reunidos em atos e palavras, e é ilimitado, só sendo “controlado” por ele mesmo82. Neste sentido, poder é de maneira alguma uma relação de mando e obediência83, ele significa “agir em conjunto” e, como tal, opõe-se à

violência (“onde um domina absolutamente, o outro está ausente”84).

A violência é muda85, instrumental, é capaz destruir o poder, mas de maneira alguma consegue criá-lo. Ela se aproxima do vigor (strength), buscando inicialmente aumentá-lo e depois terminando por superá-lo. Quanto ao vigor, ele é individual, indivisível; é a característica de alguém visto em isolamento86, sendo controlado pela presença dos outros. Neste sentido, nem violência, nem vigor constituem o espaço da aparência, sendo totalmente contrários a um mundo plural.

Assim, o espaço da aparência surge diretamente do agir em conjunto, do compartilhar atos e palavras; contudo, se não houver por parte dos homens o intuito de manter este espaço, ele se dissipará tão logo eles se separem. É por isso que as promessas são tão importantes para o poder, pois são elas que mantêm os homens juntos após o momento da ação, portanto é por meio delas que os homens fundam o corpo político, o qual só durará se o poder for mantido. Na bela síntese de Arendt:

Em contraste com a força, que é um dom e um bem que qualquer indivíduo, em seu isolamento, pode dispor contra todos os homens, o poder só começa a existir quando os homens se unem com o propósito da ação, e desaparece sempre que, por qualquer razão, eles se dispersam e se afastam uns dos outros. Portanto, vinculação e promessa, pacto e associação, são os meios através dos quais o

81 A questão do poder e da Constituição está presente no livro “The Human Condition” no parágrafo 28, entretanto não é possível deixar de levar em conta seus outros textos sobre o assunto: Da Revolução (ARENDT, H. Da Revolução. Trad. Fernando Dímio Vieira. 2. ed. Brasília: UNB, 1990) e Sobre a Violência (ARENDT, H. Sobre a Violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994).

82 Cf. ARENDT, H. Da Revolução..., p. 121.

83 Arendt está contrariando uma grande tradição do pensamento político quando faz esta afirmação. Ela mesma reconheceu isso em Sobre a Violência: “Se nos voltarmos para as discussões do fenômeno do poder, rapidamente percebemos existir um consenso entre os teóricos da política, da Esquerda à Direita, no sentido de que a violência é tão-somente a mais flagrante manifestação do poder”. (ARENDT, H. Sobre a Violência..., p. 31) 84 ARENDT, H. Sobre a Violência..., p. 44.

85 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana…, p. 35 (original: THC, p. 26) 86 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana…, p. 212 (original: THC, p. 200)

poder se mantém vivo; onde e quando os homens logram manter intacto o poder que emergiu entre eles durante a decorrência de qualquer ato ou ação determinados, eles já se encontram em processo de criação, de constituição de uma estrutura material estável que possa abrigar o seu poder conjunto de atuação. Há um elemento da capacidade construtiva do homem na faculdade de fazer e de cumprir promessas. Assim como as promessas e os acordos dizem respeito ao futuro, e asseguram estabilidade no oceano das incertezas futuras, em que o imprevisível pode surgir de todos os lados, assim a capacidade do homem de constituir, criar e construir está sempre relacionada não tanto com nós próprios e com a nossa existência na terra, mas com nossos “sucessores” e nossa “posteridade”. A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que demanda uma pluralidade de homens; e a sintaxe do poder: o poder é o único atributo humano que só tem aplicação no espaço intermundano, em cujo âmbito os homens se relacionam mutuamente, se associam no ato de criação, por força de suas promessas feitas e cumpridas, as quais na esfera pública, podem muito bem ser a expressão da mais elevada das faculdades humanas87.

Com isso, já é possível afirmar que são essas promessas, as primeiras relações que visam manter o poder, aquilo que se denomina de Constituição, cuja autoridade é conferida pelos homens ao reconhecerem que foi sua fundação que impediu que o poder se dissipasse. Deste modo, não existe antagonismo entre Constituição e Poder88, sendo este exercido em seu âmbito, o qual leva a novas relações – leis – as quais deverão estar sempre de acordo com a Constituição, pois do contrário isto significa o próprio fim do poder, tal como destruir as muralhas que cercam a cidade é destruir a própria cidade.

Do ponto de vista histórico, afirma-se que a Era Moderna entendeu essa capacidade de constituir corpos políticos segundo as experiências revolucionárias francesa e americana. Se a primeira pode ser vista, superficialmente, como a consagração do temor pelo poder, principalmente em decorrência do “terror” jacobino, a segunda pode ser encarada como uma bem sucedida experiência da teoria da divisão dos poderes e da capacidade das promessas mútuas de formarem corpos políticos. Todavia, ambas as revoluções fracassaram no seu principal propósito – o estabelecimento da experiência da liberdade.

E, se como Arendt explica89, o domínio da experiência da ação é a liberdade, sendo ela a conditio per quam da política, isto é, sem liberdade não há política, pois ela perde o seu significado, o que está de acordo com o acima ilustrado – a ação como aquilo que constitui a esfera política – então de forma alguma espanta que após as experiências revolucionárias, francesa e americana, várias constituições se sucederam umas as outras na Europa90.

87 ARENDT, H. Da Revolução..., p. 140 (original sem grifo). 88 Cf. ARENDT, H. Da Revolução..., p. 237, nota 19. 89 Cf. ARENDT, H. Que é liberdade?..., p. 192.

90 “Acreditar que as efêmeras constituições européias do após-guerra, ou mesmo suas predecessoras do século XIX, cujo princípio inspirador fora a desconfiança do poder em geral, e o receio do poder revolucionário do

Nesse ínterim, volta-se para as colocações feitas com base em Berlin. Como se afirmou a liberdade liberal ou negativa ocorre em isolamento e, da mesma forma que a liberdade positiva ou democrática, provém da faculdade da vontade. A vontade aparece na tradição com Paulo e Agostinho e remete a questão do livre arbítrio, portanto à situação em que o indivíduo tem que decidir entre o “eu-quero” e o “eu-não-quero”. Daqui surgiu à idéia liberal de liberdade, que significa, em suma, assegurar o máximo de querer para o indivíduo, através do estabelecimento de uma esfera onde ele se encontre seguro da interferência dos demais, a qual posteriormente foi entendida como condição de criatividade, originalidade e unicidade91. Quanto à liberdade positiva ou democrática, ela decorre desta liberdade como não-interferência. Ela, como se mostrou, representa a idéia de um indivíduo que estabelece as leis que regulam seu comportamento; é a liberdade como autonomia92.

O que se quer salientar é que a liberdade liberal é a liberdade do homo faber, do homem em isolamento, impotente, daquele que realmente não sabe se existe, envolvido apenas com seu fabricar, incapaz de compreender o significado, alguém que nunca se revelará. A liberdade democrática é a liberdade de um mundo baseado na idéia de uma vontade geral, portanto sustentada pelo conceito de soberania, aquele que informa haver relações de mando e obediência na esfera pública, o que, segundo o que se viu com Nietsche, afirma-se ser a antítese da liberdade. Todavia, ficar apenas nestas considerações não seria atingir o âmago do problema, pois ele está no fato de que tanto a liberdade liberal, quanto a liberdade democrática possuem como critério o “Eu”, portanto não permitem o mundo de homens, um mundo plural93; não permitem o aparecimento da experiência da liberdade, do modo de vida do cidadão (humanitas94).

povo em particular, podiam constituir a mesma forma de governo que a Constituição Americana, que brotara da confiança na descoberta de um princípio de poder suficientemente forte para fundamentar uma união perpétua, é se iludir por palavras” (ARENDT, H. Da Revolução..., p. 123)

91 Cf. MILL, John S., 2000, pp. 98-9.

92 Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio, 2001, p.144.

93 O espaço público tendo como critério o “Eu” não permite a diferença. Isto levado ao extremo tem conseqüências desastrosas como o século XX pode atestar através da figura do “pária”.

94 Cf. ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. Trad. Denise Bottmann. 3ª. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, p. 31.

Se essas são as conseqüências das liberdades, liberal e democrática, então quando diante o totalitarismo e do fim da tradição95 respondeu-se através da síntese entre as tradições que as informam, que hoje se denomina “neoconstitucionalismo”96, a esfera pública continuou e continua destituída de liberdade, mantendo-se os homens em “tempos sombrios”.

O que mais assusta nisto tudo é que as experiências atuais parecem mostrar que tão cedo da escuridão os homens não irão sair. Vive-se atualmente numa sociedade de massas97, produz-se um direito de massa98, que tudo regula, que tudo certifica, não deixando espaço para o “espantar-se” (thaumadzein), para o homem responder ao mundo diante daquilo que a fortuna lhe oferece. Isso pode levar a alguns a acharem que não são deste tempo, contudo Arendt os corrigiria. Ela lembraria as lições de Agostinho para quem o homem vem ao mundo, não para morrer, mas para iniciar algo novo, como o seu próprio nascimento testemunha ([Initium] ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus fuit – “portanto, para que houvesse começo o homem foi criado, antes dele ninguém existia”.) Mas se mesmo assim estes homens permanecerem descrentes na liberdade, Arendt lembraria Hamlet99:

“O tempo está fora dos gozos: maldito despeito Que eu tenha nascido para torná-lo direito!”

95 “A dominação totalitária como um fato estabelecido, que, em seu ineditismo, não pode ser compreendida mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos ‘crimes’ não pode ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de referencia legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da História Ocidental. A ruptura em nossa tradição é agora um tato acabado. Não é o resultado da escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.” (ARENDT, Hannah. A Tradição e a Época Moderna..., p. 54.)

96 Para o Neoconstitucionalismo as referências são CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madri: Trotta, 2003; e PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. Constitucionalismo Garantista y Democracia [sem referências].

97 Em 1958 Arendt definiu assim a sociedade: “O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade dos detentores de emprego, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas do viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e “tranqüilizada” (ARENDT, H. A Condição Humana..., p. 355) (original: THC, p. 322). Hoje, parece mesmo é que se vive numa sociedade de detentores de bolsa família e de seguro desemprego, haja vista o desemprego estrutural. 98 Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. O judiciário frente à divisão de poderes: um princípio em decadência? Revista USP, São Paulo, n. 21, p. 12-21, mar./maio, 1994; CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2.ed. Campinas, SP: Millennium, 2006, p. 223-237.

Este texto foi iniciado com aquilo que se compreende como a resposta de Hannah Arendt à ruptura da tradição. Foi dito que a resposta de Arendt era a condição humana, o fato de que não é o homem, mas os homens que vivem na Terra e habitam o Mundo, e que esses homens são capazes de pensar, querer, julgar, agir, trabalhar e criar. Afirmou-se que esta resposta permearia todo o texto e de fato isto aconteceu.

No primeiro capítulo se abordou o julgamento de Eichmann em Jerusalém juntamente com as impressões de Arendt antes e depois do julgamento. Como se mostrou no julgamento de Jerusalém duas questões apareceram: a dificuldade de os juízes julgarem um caso sem precedentes e o problema da consciência de Eichmann.

Essas duas questões estão ligadas ao segundo capítulo. São elas que em princípio justificam as considerações sobre a faculdade do pensamento e do julgamento, contudo não é apenas isso. As reflexões sobre estas faculdades também se referem ao problema da separação entre pensamento e ação (ou teoria e prática) na tradição ocidental, isto significa que a dificuldade dos juízes julgarem estava muito além da técnica jurídica, a qual num outro contexto se poderia apontar com um dos fatores contribuintes para as suas dificuldades, ela se relacionava com a própria dificuldade que as pessoas têm em julgar, especialmente numa época em que a tradição foi rompida, não se podendo mais recorrer as suas respostas (prontas) para se posicionar diante das situações que a vida apresenta.

No segundo capítulo se estabeleceu que é a faculdade do julgamento que realiza a ponte entre o pensamento e a ação. Diante disso pareceu muito oportuno acrescentar um ensaio sobre a liberdade no final do texto. Então, o terceiro capítulo trata da liberdade em Hannah Arendt, o qual também conta com algumas reflexões sobre a faculdade da vontade e

de sua desastrosa compreensão como a faculdade que realiza a ponte entre o pensamento e a ação.

Estas são as linhas gerais deste texto, porém algumas questões ficaram sem discussão e agora se pretende fazer menção a elas. A primeira questão que se destaca diz respeito à afirmação de Arendt de que Eichmann não imaginava o que estava fazendo e que foi a sua predisposição a não pensar que o transformou em um dos grandes criminosos desta época. Realmente, como se explicou no capítulo II a faculdade da imaginação se liga a faculdade de pensamento, porém o mais importante aqui é a relação entre a faculdade do pensamento e a lembrança. Como se disse no tópico sobre o pensamento “pensar” é sempre um “re-pensar” ou um “re-lembrar” e é notável como cadeias de pensamento surgem espontaneamente quando se lembra de alguma coisa, de modo que só é possível lembrar daquilo que se pensou. E Eichmann jamais lembraria daquilo que ele presenciou nos campos de concentração, pois ele se recusava a pensar no que via e agradecia todas as vezes que ele era poupado de presenciar as atrocidades. Foi por esse motivo que Arendt alterou o seu conceito de “mal radical” para o conceito de “mal extremo”. Para Arendt o mal deixava de ser radical, pois ela compreendera que o mal não tinha raízes, não tinha fundamento ou profundidade, não tinha sequer caráter demoníaco. Pois, todas as vezes que o pensamento procura desvelar o significado do mal, o que ele encontra é simplesmente nada. É por isso que o mal pode se espalhar pelo mundo inteiro como um fungo como Arendt disse a Scholem, porque as pessoas que se recusam a pensar participam da realização do mal sem saber que o fazem. Ao não pensarem elas não lembram, não criam “raízes”, muito menos se encontram em uma situação como a de Ricardo III, de Shakespeare, isto é, em contradição.

Entretanto, esta resposta socrática de Arendt tem um problema. Ao estabelecer que o pensamento é a faculdade humana que em última análise evita o mal tende-se a se esquecer que toda resposta com fundamento no pensamento tem como critério o “Eu”. Sendo assim, aquilo que é mal para uma pessoa não é mal para outra ou aquilo que leva uma pessoa a entrar em contradição consigo mesma difere de pessoa para pessoa. Em carta de 16 de setembro de 1954, portanto muito antes das reflexões sobre Eichmann, Mary McCarthy fez objeções parecidas a esta resposta socrática de Arendt. A questão era “por que não assassinar a avó?”, o que Arendt tinha respondido: “porque não quero passar o resto da vida convivendo com um assassino”. McCarthy disse que a pessoa moderna daria de ombros e diria “Por que não? Qual o problema de ser um assassino?”.

No documento Hannah Arendt: ruptura, julgamento e liberdade (páginas 195-200)

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