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Poema pneumático

O bolchevismo na sarjeta

Todas as explosões são revolucionárias Triângulo

E uma bomba de vidro faz parar Explosão

Síncope

Não creio no pneuma dos estóicos Mas os pneumáticos arrebentam Que aborrecimento!

Não há mais 75 cavalos Nem velocidade cor de vidro Os roncos do motor

O vento se estortega

E desmancha meu cabelo seus dedos

Na colmeia dos pulmões o enxame do ar zumbe Bandeira de pó agitada quando passo

Os patos voam

E meu sangue termômetro subindo Rapidez

Pane

Oh! a curiosidade popular! Noite

O sorriso feliz dos transeuntes Letreiros luminosos

Anúncios luminosos

Broadway faz ângulo com a Quinta-Avenida Arranha-céus

Vista pela lente da lua São Paulo é Nova York A vitrina é um palco

Num cartaz o retrato da prima donna Uma índia

Neste cenário não pode ser o Guarani Nem o Guaraná

O bonde na curva berra uma força indômita Não há mais orquestra

Drama de adultério

Uma dama em camisa perto do leito Divã almofada abajur

O povo se aglomera

Meu automóvel chama a atenção

Sou um espectador a quem se pede o que esqueceu o bilhete-posse da sua frisa

Todos me olham Vexado

Coberto de pó Vindo de Santos

A bomba na mão do chauffeur A febre intermitente do motor

A câmara de ar se enche de um orgulho burguês Escrevo este poema concerta o pneumático furado Domingo

8 ¼ na Casa Michel

O poema toma como motivo outro tema caro aos futuristas: o automóvel. No caso, desarmando a celebração futurista da máquina-símbolo da civilização industrial (e cuja posse, até hoje, confere status ao homem moderno) é o fato corriqueiro do estouro de um dos pneus do carro que Luís Aranha transformará num acontecimento de tons extraordinários, ocorrido no coração da metrópole, para susto dos transeuntes. No contexto da releitura modernista brasileira do futurismo marinettiano, por volta da mesma época em que o poema de L. A. foi escrito, Drummond (1969, p. 23) também explorou magistralmente a ideia de pane da máquina – de “afirmar e negar, ao mesmo tempo, a modernidade”, conforme observou Régis Bonvicino em sua análise do poema138 – em seu conhecido poemeto-haicai de traço

antifuturista intitulado “Cota Zero”:

Stop.

A vida parou ou foi o automóvel?

Na primeira estrofe do poema de L. A., o estouro do pneumático é associado, histórica e ironicamente, às explosões das bombas da revolução bolchevique: ambos são estouros e explosões “revolucionárias” na sarjeta – uma espécie de observação sobre a não obediência da máquina comparada à desobediência civil. O poeta identifica o causador do estouro (um caco

de vidro); situa o local do acontecimento (a região do centro histórico do Triângulo) e associa semanticamente o nome da peça do veículo ao conceito filosófico-religioso da pneuma, que seria a essência espiritual formada no ar ou com o auxílio deste.

A estrofe seguinte promove uma apreciação crítica das virtudes e da falibilidade da máquina, detalhando as características e componentes (“75 cavalos”, “roncos do motor”) responsáveis pelo atributo mais celebrado desse meio de transporte então recentemente inserido na paisagem humana: a rapidez, a velocidade. A sequência de versos que vai de “O vento se estortega / E desmancha meu cabelo e dedos” até “E meu sangue termômetro subindo” procura dar conta das modificações operadas pelo automóvel tanto na paisagem natural como na humana.

Associando a rapidez das imagens nas telas dos cinemas com a rapidez das imagens observadas do interior dos veículos, Flora Süssekind (2006, p. 50) abordou essa nova percepção da realidade propiciada pelos novos meios de transporte inseridos nas grandes cidades brasileiras, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo, nas primeiras décadas do século XX:

[...] se o cinematógrafo habituava o olhar à reprodução mecânica do movimento, a popularização do automóvel automatizava, via movimentação mecânica, um modo de olhar as coisas em volta como se fossem puras imagens passando ao lado. Enquanto o cinema parecia tornar ainda mais verazes as imagens técnicas, a movimentação dos automóveis, bondes e trens dava aos objetos cotidianos contornos meio mágicos. Desrealizava-os subitamente.

Também a descrição dos elementos da paisagem urbana ao redor ganha tons meio mágicos ou irrealistas no poema de Luís Aranha, mas, por comportar um olhar crítico-irônico, desmistifica, ao mesmo tempo, essa impressão de desrealidade ao confrontar o instrumento propiciador de tal sensação com o seu defeito ou “Pane”.

O primeiro verso da estrofe seguinte sintetiza o espanto ou a admiração que os novos elementos da sociedade industrial ainda eram capazes de causar na população, pois, diante do estouro do pneu, “Oh! a curiosidade popular!”. O ambiente sócio-geográfico em que se dá o incidente é detalhado: é o centro da cidade, à noite, com seus letreiros e anúncios a iluminar “O sorriso feliz dos transeuntes” de uma São Paulo belle époque, cujo traçado de ruas e avenidas, com seus primeiros prédios sendo erguidos, permite associação a uma Nova York já

pontuada de alguns arranha-céus. No entanto, o próprio eu lírico revela a não-ingenuidade dessa associação, pois, tal imagem é fornecida “pela lente da lua”.

A última estrofe do poema, aproveitando-se dos elementos urbanos ao redor, transforma o acontecimento do estouro do pneu num verdadeiro espetáculo. O local específico em que se dá o incidente é visto como o cenário de uma ópera, em que as vitrines, com suas luzes e cartazes, são associadas a um palco: a imagem da índia estampada no cartaz da vitrine, a qual desempenharia o papel de “prima donna” – isto é, a cantora principal – sugere-lhe O

Guarani, de Carlos Gomes.139 A paronomásia dos nomes da ópera de motivo indianista e do fruto amazônico aparece em meio à dedução de, na verdade, o anúncio não dever se tratar da obra de Carlos Gomes – por destoar do ambiente luxuoso do cenário – mas, sim, de um “Drama de adultério”, cujos elementos retratados no cartaz, “Divã almofada abajur”, combinam com a sofisticação do cenário maior, composto pela vitrine-palco.

Luís Aranha, atento aos indícios da nascente espetacularização dos modos de viver nas grandes cidades, aponta o lado patético da situação ao colocar-se no meio dessa plateia (“O povo [que] se aglomera”) como “um espectador a quem se pede o que esqueceu o bilhete- posse da sua frisa”. Todos os olhares se voltam a esse sujeito deslocado e destacado da multidão (“Vexado / Coberto de pó”) por ser o coadjuvante da situação desencadeadora do fato inusitado.

Na análise do poema, destacando a habilidade de Luís Aranha em manejar o procedimento de associação de imagens, Mário de Andrade (1974, p. 64) também ressaltou a capacidade do poeta em recriar a paisagem em movimento como se de dentro do automóvel, antecipando parte da análise anteriormente citada de Flora Süssekind:

Um dos seus últimos poemas, do livrinho Cocktails, foi este Poema

Pneumático por muitas razões interessantes, e que demonstra bem a

virtuosidade do poeta na associação de imagens. O delírio associativo o leva não apenas a substituir a entrada em assunto pelas associações desse assunto em toda a primeira estrofe, como em toda a segunda estrofe, realiza uma paisagem derivada das sensações de automóvel em viagem, provocada pela associação com a panne indesejável. Mas esta viagem associada termina com uma panne, o que reconduz o moto lírico ao assunto da poesia. Porque como inteligência do assunto do poema, este só começa na terceira estrofe!

139 Escrita originalmente em italiano, a ópera estreou no Teatro Scala de Milão, em 19 de março de 1870. No

verso “O bonde na curva berra uma força indômita”, Luís Aranha faz referência a uma das árias mais famosas da obra de Carlos Gomes. Conforme José Eduardo da Silva (2007, p. 138): “A frase melódica ‘Sento una forza indômita’ do dueto final do Ato I, responde à de Cecília que indaga por que Peri tem por ela certos cuidados: ‘ma dimmi perchè tal cura hai tu di me?’”.

Este processo, costumeiro no poeta, de não se perder na associação, mas fazer com que ela o reconduza ao assunto do poema, é aceitável como mecanismo psicológico do subconsciente [...]. Neste mesmo Poema

Pneumático, desde o verso “A vitrine é um palco”, toda a parte final que é

uma tempestade de associações de toda a casta, usa o mesmo processo. Com hábil elasticidade a noção “drama (de adultério)” leva a espetáculo, a povo espectador, e reconduz ao assunto inicial, pois tem gente espiando o conserto do automóvel.

O aspecto vanguardista ressalta-se na passagem final por localizar, ao modo de um relato jornalístico acerca do acontecimento, o contexto (direção, data, hora, localização) de escritura do poema: “Vindo de Santos” /.../ Domingo / 8 ¼ na Casa Michel”. Por fim, a posse da máquina como índice de status é apontada ironicamente, até mesmo pelo uso do galicismo, na imagem da câmara de ar que se infla “de um orgulho burguês” através da bomba acionada pelas mãos do chauffeur.

Sem aura nem torre, o poeta moderno escreve seu poema em meio a uma situação bastante prosaica: enquanto o pneu do carro é consertado em frente a um dos símbolos- templos da comercialização, na São Paulo de inícios da década de 20, de produtos extremamente valorizados e cobiçados pela elite (elite da qual ele, assim como a maioria de seus companheiros de movimento modernista, também faz parte, não nos esqueçamos).140 Isso numa época em que se começava a assistir a desvalorização crescente da poesia em concorrência com o cinema, o jornal, os espetáculos teatrais, antes que outros meios de maior alcance viessem roubar ainda mais o espaço da literatura e da poesia no cenário dos bens culturais.

140 A Casa Michel foi uma das mais luxuosas joalherias de São Paulo. Seu imponente edifício, construído entre

1912-1913, situava-se na Rua 15 de Novembro, na esquina com a Rua da Quitanda. Como notou Marie-Christine del Castillo (In: ARANHA, 2012, nota 40, p. 211), o prédio paulistano era retratado em muito impressos publicitários em alusão ao Flatiron Building, um dos primeiros arranha-céus de Nova Iorque (ver figuras 15 e 16). Construído em 1902, o Flatiron Building, por sua vez, forma a esquina entre a 5ª Avenida e a Broadway, o que Luís Aranha também aponta, através da associação entre os dois endereços: “Broadway faz ângulo com a Quinta-Avenida”.