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A constituição de uma corporeidade negra em cena – Caminhos metodológicos

EXERCÍCIO 14 POEMATIZANDO O CORPO

– No intuito de provocar formas estéticas e promover descobertas poéticas no corpo, este exercício terá o aporte de poesias para exercer diálogos com a movimentação expressiva do corpo. Nesse caso, a verbalização não é o foco central, e sim o intercâmbio que pode ser gerado entre essas linguagens. – Foi solicitado para o grupo trazer poemas, para que fossem elementos que contribuíssem com propostas de cenas-coreográficas a serem criadas pelos alunos/artistas.

– A partir dos poemas, foi solicitado aos alunos/artistas que fizessem improvisações de cenas-coreográficas, em que as matrizes corpóreas afrobrasileiras tivessem conexões com a obra poética.

As linguagens artísticas se comunicam desde sempre, no entanto, na contemporaneidade, percebe-se que a utilização de diversos recursos para que chegue ao público e possa atrair o olhar se dá frequentemente, promovendo

192 assim um hibridismo entre as diversas formas artísticas e outras formas de linguagem.

Para esse momento, em que o diálogo foi aberto para outras linguagens que não fosse a dança ou o teatro, Eu, mediador e os demais partícipes, trouxemos à apreciação do grupo poemas que fossem provocações e que os instigassem para uma nova leitura. A propulsão com esses poemas, que traziam a temática da negritude, serviu como abertura de mais reflexões e, consequentemente, despertou novas percepções sobre o assunto da negritude que nos permeia. Os alunos/artistas puderam não apenas reagir às suscitações apresentadas, mas também puderam reorganizar suas ideias e jogar com as propostas que se apresentavam. Ao longo dos jogos, dois poemas ganharam destaques em nosso trabalho, sendo transpostos para o estágio seguinte.

Os poemas referentes são “Me gritaram negra”, da poetisa e coreógrafa peruana Victória Santa Cruz, e “Pixaim elétrico”, da atriz e poetisa brasiliense Cristiane Sobral. A força que esses poemas trazem como contexto de questionamento do ser negro em diversas sociedades foi fundante para o trabalho de cena coreográfica elaborado nesse processo (poemas em anexo), permanecendo no experimento artístico final.

O momento do Constituir Saberes (CS) em que o aluno/artista organiza e projeta propostas em exercícios, torna-se essencial nessa metodologia, para que os alunos/artistas possam exercitar a organização dos saberes em formatos diversos, obedecendo a uma coerência com as discussões abordadas. Portanto, dando vazão aos estímulos subjetivos para que se tornem exemplos de elaborações estéticas concretas, visíveis. Dessa maneira, dar-se-ão ordenações simbólicas ao pensamento imaginativo. O instante da experimentação criativa com as motivações das técnicas e das discussões sobre a negritude e africanidades em seus contextos culturais e sociopolíticos se instaura no corpo. A partir da realidade, novas realidades são criadas, como cita Ostrower:

Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem uma substituição imaginativa da realidade; criar representa uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a realidade; e uma realidade nova que

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adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos. Somos nós a realidade nova. (OSTROWER, 2013, p. 28)

Portanto, analisando as novas realidades que a arte pode nos proporcionar, este trabalho vai em direção de uma criação corpórea que favoreça ao artista cênico novos conhecimentos e que, incorporados como

Corponegritude na cena, possam indagar novas articulações e traçar

complexidades na discussão do corpo e da negritude em nossos diversos palcos. Trago a tradição como ponto de interseção para esse processo, não com o desejo de doutrinar, mas de emergir reflexões nos alunos/artistas envolvidos, pois, segundo expõe Santos,

Admitindo-se esse ser social, os elementos da tradição poderão ser distinguidos nos espaços compreendidos, assim como com a adoção de filosofias concernentes. Esses elementos são, em si, propiciadores do crescimento e da própria transformação. Entretanto, essa possibilidade de transformar dá-se desde que não se queira impor uma doutrina, uma conversão, mas promover uma reflexão entre os participantes. (SANTOS, 2002, p. 115)

E é nesse sentido que aferimos a discussão da corporeidade negra na cena, conduzindo a percepção do corpo constituído de saberes da tradição e também provocando uma educação estética, considerando educação estética como “um conhecimento capaz de ajudar a reduzir a dicotomia entre a razão e o imaginário, integrando a emoção, a aparência e os sentidos, sendo capaz de provocar uma sinergia maior entre o pensamento e o sensível.” (CORDEIRO, 2007, p.115 ).

4.5 – A Reverberação Poética/Criativa - Eixinho D – Projetar Saberes (PS)

O eixinho Projetar Saberes (PS) tem como princípio norteador a criação e a exposição de produções estético-artísticas propostas pelos alunos/artistas. É o instante em que a organização dos saberes apreendidos durante os

194 momentos anteriores possa coadunar-se de forma coletiva (ou individual). O foco está no resultado da forma/estética de uma corporeidade que se apresenta a partir das matrizes negras experimentadas e constituídas no corpo, constituindo-se na memória corpórea. Exemplifico com as imagens a seguir.

FIGURA 45 e 46 - Experimento cênico DA COR QUE SOU – 2013 – foto: Rebecca Religare

O resultado, criação dos alunos/artistas, propõe uma educação por meio da percepção corpórea mediante uma perspectiva interdisciplinar em que se envolvem diversas áreas do saber artístico, filosófico, antropológico, histórico, dentre outras que possam agregar-se a ela.

Essa proposição artística mostra-se como mais um espaço de reflexão para que pensemos o papel das instituições de ensino no que diz respeito aos saberes da tradição negra em nossa sociedade. Mostra-se, aqui, como discussão que perpassa esse fazer no que diz respeito ao corpo nas expressões tradicionais da negritude brasileira. Apresenta-se como mais uma ponta de iceberg nesse imenso mar de gente que compõe este tão vasto mundo. Mundo este que ainda explicita em seus contextos sociais preconceitos racistas que inviabilizam, muitas vezes, a proliferação de experiências que propiciem a compreensão das diferenças.

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FIGURAS 47 e 48 – Experimento cênico “Corpos do Brasil” 2012 – Foto: Jonas Sales

As imagens acima são pontos de partida para início do relato deste estágio do Processo Cênico Pedagógico. Elas retratam cenas-coreográficas dos experimentos cênicos intitulados “Corpos do Brasil” (2012.2) e “Da cor que

sou” (2013.1) mostradas na exposição semestral Cometa Cenas/UnB, como

resultado da elaboração estética deste trabalho de pesquisa. A partir da ludicidade e das características estéticas que evocam, volto-me a dialogar com a professora Karenine Porpino ao anunciar que

a percepção do corpo nas danças da tradição, por vezes ditas folclóricas ou populares, revelam outras possibilidades de compreensão do fenômeno, especialmente pelas possibilidades lúdicas e participativas da relação corpo, dança e meio técnico expressivo que definem esse universo. (PORPINO, 2009, p. 29)

Desse modo, a ludicidade que permeou a prática desse grupo proporciona a revelação de uma postura dos corpos que nos guia a observar um estado de energia emanada pelos alunos/artistas em cena, fruto de um aprendizado técnico e de diálogos do corpo com mundo da expressão popular. Aponta para um corpo como reflexo da africanidade que se teceu ao longo das experimentações, demonstrando as matrizes que se tornaram referências para os sujeitos. Posso aferir esse pensamento, quando relato a fala do aluno abaixo.

Nesse caminho entre a descoberta e a efetivação, surgem aspectos interessantes nos sentidos de uso dessas matrizes para a construção da cena na contemporaneidade. Depois de dançar e inserir esses

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movimentos em nossa memória corporal, na perspectiva de aludir essas corporeidades, transportou-se essas impressões à cena. Pensar em outras noções de ritmo e fluência inspiradas nessas danças constrói um novo tônus para o corpo em cena; uma nova presença. Este cria imagens que desenham essa corporeidade negra que narra algo na própria composição teatral, no presente da ação. (VITOR HUGO LEITE - Aluno/artista)

Esse depoimento revela, para o nosso processo, que houve uma compreensão e valorização dessa experimentação corpórea como fator que proporciona novas descobertas e que as expressões da tradição popular podem dialogar com a cena na contemporaneidade. Ou seja, é uma espetacularidade contemporânea, que dialoga com o público e traz significados referentes ao ontem e ao hoje. Torna-se visível a constituição de um saber na elaboração do discurso do aluno ao levar suas percepções, desde a aplicação da técnica até a produção de cena-coreográfica exposta ao público. Mostra a percepção de um “novo tônus” para o corpo que está em cena e que narra suas próprias ações. A técnica incorporada, a que se consideram traços da Corponegritude, é exposta como reflexo de um aprendizado técnico/sensível.

No eixinho de Projeções de Saberes, foram pontuados alguns procedimentos para que se chegasse à produção estético-artística final. Vale salientar que essa mostra artística, exposta ao público e aqui relatada, não necessariamente teria de acontecer. As projeções dos saberes constituídos durante o percurso metodológico podem se dar fora do âmbito do espaço da universidade, onde ocorreu o experimento, ou seja, a perspectiva de mostra pode existir ou não e pode ocorrer em outros espaços que não seja a escola, por exemplo. O espaço acadêmico é tido, aqui, como uma possibilidade para essas discussões. É normal, e deseja-se que o aluno/artista possa levar os saberes apreendidos nesse processo para seus trabalhos artísticos além das portas das instituições de ensino. Almeja-se que os reflexos deste trabalho possam contemplar as práticas de arte no cotidiano desses sujeitos.

Tomando como base os eixinhos anteriores – Sensibilização Motora (SM), Brincar com o Movimento (BM) e Constituir Saberes (CS), neste estágio em que os saberes constituídos se projetam em forma de criação artística, revelar-se-á onde se pôde chegar com esse procedimento pedagógico. Há de

197 se deixar claro que o foco deste trabalho está no processo vivenciado pelos sujeitos envolvidos. Busca-se contribuir com o preenchimento de lacunas que perpassam o aprendizado do artista cênico no que concerne aos saberes da africanidade presente nas tradições brasileiras. O resultado estético/artístico ao qual chegamos foi estruturado da seguinte forma:

- estudos e montagem de coreografias, partindo das matrizes corpóreas das danças afrobrasileiras incorporadas pelos sujeitos;

- escolha de poemas que retratassem, em sua composição, a temática negra; - discussão e estruturação de cenas-coreográficas;

- ensaios e readaptações de propostas estéticas, como adereços e figurinos; - Apresentação para a comunidade acadêmica e para o público externo.

Com esse momento de criação, procurei, portanto, proporcionar aos alunos/artistas:

- permitir que, a partir das propostas e colaboração de cada um, pudessem chegar a uma experimentação cênica que comunicasse as matrizes estudadas, revelando a cultura negra brasileira;

- proporcionar a reflexão entre as danças populares da tradição e suas projeções para os palcos formais de arte;

- fomentar um “novo olhar” para a cultura afrodescendente brasileira e, consequentemente, para o nosso país;

- perceberem o estado e estágio da Corponegritude que exercem enquanto vivenciam essas expressões.

198 Diante dessas expectativas apontadas para o trabalho, levanto algumas reflexões, fruto da observação do produto artístico concretizado pelo grupo. Analiso que, mesmo que o processo desenvolvido se caracterize como positivo, os alunos/artistas não conseguiram chegar a um resultado de notória satisfação estética. Quando especulo tal pensamento, aponto para os seguintes fatores como sendo falhas existentes no resultado estético, em que se faz oportuno expor para que se atente para tais situações, podendo ser melhoradas em outros momentos de aplicação dessa metodologia.

- Os alunos/artistas não conseguiram se desprender a ponto de dissolver as referências das formas estéticas apreendidas, limitando, assim, possibilidades de provocar uma subjetividade ou abstração, prendendo-se à mimetização vivenciada na parte técnica do processo. As referências técnicas e estéticas não precisamente devem estar óbvias nas elaborações artísticas nos diálogos com demais técnicas contemporâneas. Não precisam ficar presos às reproduções na criação ou recriação artística. Tem-se que atentar para que os elementos técnicos e estéticos sejam alimentos que não travem ou simplifiquem o trabalho proposto em cena.

- A elaboração dos figurinos como proposta estética não foi o idealizado de fato, fazendo com que chegássemos a uma referência de neutralidade nas cores e fugindo de cores mais vivas que as estampas poderiam oferecer. Para esse motivo, entram dois fatores: primeiramente a financeira, que muitas vezes atrapalha o processo criativo, tendo que podar e levar a moldar outros modelos; e por segundo, a opção de uma tentativa de neutralizar as cores, deixando o corpo em maior evidência como opção estética. Quanto mais mostrar a pele, mais corpo em evidência. Essa foi a proposta.

Aferindo essas ressalvas no sentido de atenção, outras observações são percebidas, como as impressões e descobertas do grupo por meio das elocuções avaliativas elaboradas pelos sujeitos da pesquisa. Poder-se-á adentrar nas consolidações dos saberes constituídos, das percepções corpóreas vividas e das sensações emotivas despertadas. Isso se confirma em falas de alunos que serão expostas, como na seguinte:

Creio que a minha maior dificuldade foi transpor essas matrizes da dança para a cena sem que se perdessem a fluência e organicidade

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que elas apresentam enquanto ritmo original: dançando. Uma caminhada desde o conhecimento técnico das fisicidades do Maracatu e Maculelê, com suas bases corpóreas, até as alusões e inspirações que isso possibilitaria na elaboração de cena. (HUGO PERPÉTUO – Aluno/artista)

Estabelecem-se, na fala do aluno, suas impressões finais, as quais mostram que usufruir das matrizes negras, na tentativa de recriá-las para uma nova cena, insere-se uma dificuldade de organizar o equilíbrio entre a razão e o sensível. Entende-se que o dançar espontaneamente difere de processar as ordenações cabíveis a uma elaboração estético-artística. No entanto, está clara para esse aluno/artista a compreensão do percurso metodológico proposto no trabalho, que parte da consciência técnica à criação artística.

Nesse sentido, Ostrower (2013) nos diz que a criação está relacionada à nossa capacidade de selecionar os dados percebidos por nosso corpo inserido no mundo. Assim, integrando as percepções do mundo externo com as subjetividades e memórias internas do sujeito, os meios de criação artísticas se confirmam na concretização da produção de arte. A agregação de valores, de técnicas, de saberes é refletida na cena quando se é provocado, despertando para novos caminhos na criação do artista/aluno, como o relato a seguir aponta.

Faz três anos que vivo intensamente minha experiência como atriz e muito dela está ligada a descoberta da movimentação, já que, anteriormente, apesar de sempre estar praticando exercícios, eu não era sensível aos aspectos criativos do movimento, a percepção de que a expressão corporal condiz a diversas formas de ver e se colocar diante do mundo. (CLARICE CÉSAR – Aluna/artista)

No discurso da aluna, apresenta-se a descoberta da percepção do corpo para que se consolidem, a partir de então, saberes que desemboquem em criação artística e que o corpo em cena possa ser revelador de mundos em constantes trocas pessoais e coletivas. Pois, se fosse possível dissecar a imaterialidade do corpo, como o faz com sua substância concreta, também seriam encontrados vértices em comum com outros corpos e pontos ímpares próprios daquele corpo específico.