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POESIA-CRÔNICA

No documento A poesia social de Drummond: 1970 (páginas 47-51)

2 A POESIA SOCIAL DE DRUMMOND: 1930 A 1968

2.5 POESIA-CRÔNICA

Os poemas-crônica, publicados primeiro no jornal e depois reunidos no livro Versiprosa (1967) têm, enquanto poesia social, a particularidade especial de pormenorizar as circunstâncias de que tratam, as quais são sempre motivadas pelo noticiário mais recente. Trata-se de sátiras, crítica direta da circunstância, mas cujo humor nunca é demasiado agressivo e, por outro lado, é evidente, posto que críticos de algum aspecto social, que não se trata da ironia mais perplexa com os olhos do poeta voltados para si. Nesse sentido, os versos carecem do lirismo a partir do qual, nos livros anteriores, o eu retorcido do poeta faz a crítica do social com ênfase nos problemas do indivíduo em sociedade e mesmo do sentimento lírico mais tranquilo e profundo, cordial, a partir do qual o poeta busca o diálogo com o outro. Eles nunca são, também, propriamente engajados, pois o projeto que esboça uma nova ordem política (ativado após a II Guerra, pelo encontro entre liberdades individuais) é ausente, como é próprio do aspecto chão de uma sátira ligada à crítica detalhada de eventos semanais, em que não é possível descolar-se do presente mais estrito. Alguns versiprosa podem ser ainda meramente informativos, como os comentários de lançamentos culturais da semana. Os poemas-crônica eximem-se, assim, da radicalidade do choque social que motiva a poesia social analisada anteriormente.

De qualquer maneira, Drummond manteve, dos anos 50 até o fim de sua carreira jornalística nos anos 80, uma forte ligação com a discussão bem humorada, e crítica, de questões cotidianas em verso, com ênfase no coloquialismo e próxima do leitor do jornal (proximidade que diz sempre da busca do outro, do diálogo, como forma de cidadania).

entre (...) Claro enigma [1951] e o início da produção cronística do Correio da manhã (1954), o princípio aporético em que se encena a imobilidade da decepção com o projeto de literatura engajada parece ter-se deslocado. O princípio-corrosão de que fala Costa Lima, tão importante para a construção

trágica da alegoria da inação política é substituído, com a participação do veículo de massa que é o jornal, pelo humor, igualmente corrosivo, em que a alegoria (...) corresponde a uma nova forma de engajamento, e de ação pública, é certo que bastante distinta da de A rosa do povo. A poesia sob a forma da prosa cronística passa agora a estar às voltas com o cotidiano urbano, e não mais com a utopia política. (Penna, 2017, p.28)

Em 1967 as crônicas em verso são coligidas e publicadas em Versiprosa (crônica da

vida cotidiana e de algumas miragens). O livro é uma reunião de crônicas “que transferem

para o verso comentários e divagações da prosa” (Andrade, 2007, p.508), e que foram publicadas desde 1954 no Correio da manhã, jornal em que o poeta trabalhou até 1969. No entanto, a reunião das crônicas em livro filtra “algo do sabor jornalístico, do comentário efêmero do noticiário jornalístico”, do espaço de visibilidade conferido ao poeta “para intervir nos negócios da urbe” (Penna, 2017, p.25)

A intervenção na prática cotidiana pelo tratamento de questões sociais, culturais e políticas desde um ângulo satírico, com humor leve, é movida pelo interesse nas circunstâncias da semana. Os textos são, como é próprio do gênero crônica, uma espécie de “relato ou comentário de fatos corriqueiros do dia-a-dia”, à maneira dos fait-divers, “fatos de atualidade que alimentam o noticiário dos jornais desde que estes se tornaram instrumentos de informação de grande tiragem” (Arrigucci, apud Penna, 2017, p.8). Trata-se de um humor propiciado pelo jornalismo moderno e que se submete “aos choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna.” Drummond tinha consciência dessa efemeridade da crônica - gênero submetido ao espaço de produção regular do jornal - em relação à Poesia, fruto de uma “necessidade íntima muito grande”:

A poesia não é uma atividade que exerço continuamente. Pelo contrário, exerço pouco. Passo semanas, meses sem fazer um poema. E só o faço quando sinto uma necessidade íntima muito grande, enquanto que a prosa [ou, digamos, os versiprosa] é feita por encomenda (em função da atividade profissional) ou pelo prazer, simplesmente. A poesia tem uma particularidade especial. Ela não vem na hora que quer. Por um mistério qualquer, ela surge ao acaso. Não quero dizer que seja algo divino, mas de qualquer maneira não é uma atividade cotidiana. É mais uma atividade esporádica. (Andrade apud Penna, 2017, p.7)

Seria excessivo comentar as imagens sociais que aparecem em abundância no livro, mas pode-se indicar alguns temas recorrentes: os desenvolvimentos, no Brasil, da música, da moda (como aparecimento do Rock, do Lp, da biquíni, da miniblusa, minissaia), o acompanhamento de lançamentos culturais comentados ao longo das várias estrofes de uma crônica-poema, o acompanhamento das movimentações políticas (aparecem aí os principais nomes políticos dos anos 50 a 70, como Lott, JK, Jânio, Jango, vários deputados, governadores), discute-se a questão do voto secreto, problemas de censura à imprensa; há poemas-crônica que fazem balanço do mês ou do ano que passam, poemas sobre o Natal, sobre as festas de junho, sempre de uma perspectiva de humor irônico, menos satírico e militante:

quero lembrar que as farpas dirigidas nestes escritos à ação de políticos jamais filtraram paixão ou interesse partidário nem assumiram cunho pessoal. Exprimiram a reação de um observador sem compromisso, que há muito se desligou de ilusões políticas, e, geralmente, prefere falar de outras coisas mais gratas entre o céu e a terra. (Andrade, 2007, p.508)

Certo que depois da II Guerra, a vinculação de Drummond com uma política mais formal, partidária, está ausente. No entanto, ao contrário dos versiprosa, a paixão e o interesse pelo social, a possibilidade de encontro entre os homens, é encarada sem ilusões, sem uma utopia política redentora, até porque, embora a esquerda partidária fosse ainda forte nos anos 1960, o horizonte utópico parecia fechar-se, de modo geral, em razão do excesso da negatividade social. A “política” de Drummond a partir dos anos 1950 é a da busca do entendimento entre os homens, a qual permite, enquanto projeto, a poesia propriamente engajada (o epos revolucionário), e a crítica radical do choque social (crítica que é fundamental para a definição do poema social enquanto gênero) a partir, também, da agressividade satírica. O poema engajado e a sátira, além da mescla possível entre esses dois tipos, definem, na sua complexidade, o compromisso e a poética social de Drummond. Por outro lado, os momentos mais trágicos, irônicos, líricos ou míticos (poesia da infância), embora apontem, de modo geral, a uma ausência da crítica social, podem vir mesclados a essa crítica - pois trata-se quase sempre de um lirismo (poesia) impuro - segundo seu modo de resistência, mais defensivo.

O percurso deste primeiro capítulo foi importante na medida em que indica uma série de elementos próprios ao poema social drummondiano, cujas metamorfoses deles dependem.

No capítulo seguinte, entramos na análise do nosso objeto de estudo: a poesia social de Drummond nos anos 1970, publicada nos livros As impurezas do branco e Discurso de

primavera e algumas sombras. Nossa análise conjuga aí, com maior densidade, elementos da

diacronia analisada nesse primeiro capítulo e da sincronia da época, agitada, como veremos, por importantes questões políticas e culturais.

No documento A poesia social de Drummond: 1970 (páginas 47-51)

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